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Luiz Bernardo Pericás: Gonzalo, Malcolm e Fidel

O Hotel Theresa foi o mais alto, belo e imponente edifício do Harlem durante seis décadas. Com seu estilo neorrenascentista, onze andares e 300 quartos, destacava-se das construções à sua volta e chegou a ser comparado até mesmo ao Waldorf Astoria. Ainda que durante um bom tempo a gerência só aceitasse hóspedes brancos e algumas poucas celebridades negras, a partir dos anos 1940 os novos donos, desta vez afro-americanos, mudaram a cara do lugar.

Por Luiz Bernardo Pericás, no blog da Boitempo

O fato é que o Harlem entrou num processo de decadência e empobrecimento paulatinos, especialmente nos anos vinte, levando boa parte dos moradores endinheirados a se transferir para bairros distantes dali. Por outro lado, enquanto ocorria esse processo de pauperização e depreciação imobiliária, a população negra começava a afluir em grande número para os prédios residenciais e negócios locais, e tomou conta da área. Eram trabalhadores, migrantes, em sua maioria da Virgínia, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Geórgia. Entre 1920 e 1930, em torno de 118. 792 moradores brancos se mudaram de lá, enquanto, no mesmo período, 87. 417 negros chegaram para viver naquele bairro. Foi então que o Harlem tornou-se, de fato, a “capital” da Black America. Entre seus mais emblemáticos landmarks, como o Cotton Club, o Savoy Ballroom e o Apollo Theater, o Theresa certamente também deve ser incluído.

Projetado pelos arquitetos George e Edward Blum, e construído pelo alemão Gustavus Sidenberg, um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, mais tarde, depois de ser “dessegregado”, teve como hóspedes ilustres, artistas como Louis Armstrong, Lena Horne, Josephine Baker, Duke Ellington, Jimi Hendrix, e muitos outros. Velhos tempos… De lá para cá, muita coisa havia mudado…

Na esquina da Adam Clayton Powell Jr. Boulevard e Martin Luther King Jr. Boulevard (anteriormente, a 7ª Avenida com a rua 125), um vulto pequeno e magro se misturava à massa anônima que transitava de um lado ao outro, apressada. Pernas finas, levemente arqueadas, repletas de estrias; os braços delgados, elásticos, pendendo displicentemente nos ombros; a singela barriga flácida despontando do tronco pouco desenvolvido; uma boca grande, rasgada, escondendo a comprida língua negra e enrolada; a pele musguenta e pegajosa, com as rugas de sempre; e os olhos, dilatados, de cor amarelada, enfeitados por pés de galinha nas laterais e duas olheiras que mais pareciam sacos de areia. Sim, leitor, você já sabe de quem se tratava: era Gonzalo, o polêmico sapo argentino, de visita à terra do Tio Sam, numa quentíssima tarde de verão.

Dava para ver que precisava de mais uma grande xícara de café amargo. E logo. As duas canecas do Java aguado que tomara depois do almoço numa lanchonete pulguenta nas imediações não haviam sido suficientes. Queria algo mais a seu gosto. “Café de hombre”, pensava sempre em momentos como aquele.

Pelo menos estava num país onde muitas pessoas falavam espanhol. Afinal, boa parte do território dos Estados Unidos havia sido do México. A população hispânica, e principalmente a mexicana, era enorme e cada vez mais crescia e retomava, paulatinamente, o que antes havia sido seu. Gonzalo, portanto, podia se comunicar em castelhano com garçons, taxistas e atendentes, o que certamente ajudava. Como preferia ficar sempre do lado dos underdogs, estava bem acompanhado.

O café não saía de sua cabeça e ele cogitava ir para alguma Deli logo, logo. O clima excruciante (principalmente com a barriga cheia após uma “refeição” composta de corantes, aditivos químicos e gordura saturada) lhe dava tonturas. Mas antes de entrar em qualquer recinto com o ar-condicionado ligado na potência máxima e que tivesse um letreiro de neon em cima de sua porta principal, o batráquio queria tirar uns minutos para apreciar, diante de si, aquele que fora o antigo e clássico “monumento” do bairro. Afinal de contas, se até 1967 (ano em que foi fechado) aquele era um hotel de renome internacional, desde 1971 havia se transformado no “Theresa Towers” e usado como espaço para salas, escritórios comerciais e apêndice de algumas universidades. Ah, o bom e velho Theresa… Quantas mudanças!

O anuro argentino olhava para as janelas cintilantes da ampla fachada, que refletia a luz do sol. Em total silêncio, não emitia palavra, um grunhido sequer, permanecendo estático, enquanto os pedestres esbarravam vez por outra em seus ombros, aos encontrões, ou então cruzavam por ele, sem sequer notá-lo.

Passou um lenço na testa; quase cambaleou. O calor era tanto que dava para fritar um pedaço de bacon no asfalto.

Tirou um maço de American Spirit do bolso e colocou um cigarro amassado entre os lábios. Como não tinha isqueiro, e não queria parar ninguém na calçada para pedir um fósforo que fosse, decidiu encostar a ponta do palheiro “totalmente orgânico” num poste de luz, pelando, e deu uma tragada. Estava tão quente que acendeu o fumo na hora!

Um vapor escaldante subia do chão de concreto; algumas figuras ao longe pareciam se liquifazer, suas silhuetas dançando como se pulverizassem no ar, à semelhança de miragens no deserto. Um senhor, idoso, abriu um hidrante, e crianças brincavam com os jatos d’água. Calor insuportável! As solas dos pés do hermano já ganhavam as primeiras bolhas; a cachola parecia ferver; e os lábios, ardiam como carvão em brasa. Mas ele, apesar de tudo isso, aguentava…

Até que sentiu um toque gelado no ombro, como se um pé-de-vento acabasse de cutucá-lo. Estranhamente, parecia até que era alguém tentando chamar sua atenção. Quando virou o rosto para ver do que se tratava, levou um susto; um arrepio percorreu sua espinha inteira, de baixo para cima. Os olhos arregalados de Gonzalo, saltados para fora do rosto, pareciam dois ovos de avestruz; as pupilas tremelicavam; pequeninas artérias, como relâmpagos escarlates, se irradiavam da íris irritada.

“Boa tarde”, disse o estranho.

Gonzalo não sabia o que falar.

O homem continuou:

“Belo edifício, não? Já esteve dentro dele?”

O mutismo do batráquio prosseguia.

“Você pelo jeito não é de falar muito…”

Foi então que Gonzalo balbuciou:

“É que estou um pouco surpreso…”

“Já sei, você está me achando um pouco estranho…”

“Não foi isso que eu quis dizer…”

“Tudo bem, compreendo. É sempre assim da primeira vez…”

“Você é, por acaso…”

“Sugar Ray Robinson. Ou melhor, o que restou dele”.

O homem esticou as mãos calejadas, putrefatas, as unhas sujas e levemente compridas, os nódulos dos dedos ossudos, ainda bastante inchados. Cumprimentou Gonzalo, que tentou apertar a mão do interlocutor, mas só encontrou o ar.

“E-e-eu m-m-me chamo Gonzalo… Estou aqui de férias…”, respondeu, gaguejando, tentando se recompor.

Percebendo o desconforto do sapo, Sugar Ray tentou tranquilizá-lo.

“Você deve ter notado que estou um pouco pálido… É que desde que fiquei neste estado lastimável, perdi aquelas bochechas coradas. Acho que é algo transitório… Pelo menos, é o que eu espero…”

“Você está dizendo…”

“Sim, ser um ectoplasma nos dias de hoje não é coisa fácil…”

“Um fantasma!”

“Não gosto muito desta palavra. Mas, tecnicamente, você está certo… O mais estranho é poder ver através do seu próprio corpo. Really weird… A gente se toca, mas não sente nada… Uma sensação bem esquisita mesmo…”

“É verdade”, respondeu o jia riplantense, já mais calmo. “Posso imaginar pelo que você está passando. Mas não desanime. Olhe só, você está igualzinho à imagem que tenho de seus tempos de boxeur na ativa. Vi muitas fotos e filmagens de suas lutas, na época em que você estava no auge. A cara é a mesma! Talvez só um pouquinho caquético, mas isso passa… Ainda tem a talha do velho campeão!”

“Obrigado, você é muito gentil. Se você visse a aparência do Rocky Graziano e do Jack Dempsey nos dias de hoje, me acharia um galã! Aqueles branquelos estão horríveis, as fuças mais amassadas do que se tivessem levado umas pancadas do Mike Tyson depois de doze rounds! Parece que foram atropelados por um caminhão! Lembra daquele cantor, o Michael Jackson? Andava um pouco estranho nos últimos tempos, não acha? Pois Graziano e Dempsey estão com um aspecto pior do que o dele… E olha que isso é bem difícil… Já eu… A mulherada aqui da outra dimensão até que me elogia bastante… Mas o que o traz aqui? Digo, ao Harlem. Por acaso conhece a história do Theresa?”

“Um pouco. É, de fato, um belíssimo edifício”.

“É mais do que isso. Cada um de seus quartos e corredores traz a memória viva deste bairro. Eu mesmo me hospedei muito aqui. Foi construído um ano antes de eu nascer. É um lugar especial para mim…”

“Parece que Joe Louis vinha sempre comemorar suas vitórias no restaurante do hotel. Dizem que quando ganhou o campeonato mundial de pesos pesados pela primeira vez, superlotou o lugar com milhares de fãs negros”.

“Isso. E Muhammad Ali também vinha muito aqui”.

O ectoplasma brilhoso de Sugar Ray meneava a cabeça, sorrindo com as lembranças dos velhos tempos.

Robinson continuou:

“Ali que, por sinal, virou as costas para Malcolm X, o homem que mais o apoiou quando ainda era Cassius Clay, em sua busca para conquistar o cinturão dos pesos pesados. O líder muçulmano esteve sempre a seu lado, dando total apoio, lhe injetando ânimo e insistindo que venceria a luta contra Sonny Liston, algo que ninguém acreditava. Clay se tornou campeão mundial e, no dia seguinte, se converteu ao islamismo e ingressou na Nação do Islã. Tudo isso por causa de Malcolm, seu principal mentor no momento”.

“É verdade. E depois de tudo isso, Clay, mesmo assim, preferiu ficar do lado de Elijah Muhammad, o líder da NOI, que lhe deu o novo nome de Muhammad Ali. Por falar nisso, Malcolm também tem sua história ligada ao velho Theresa. Pois foi aqui que ele manteve a sede da Organization of Afro-American Unity”.

“Isso! A primeira vez que Malcolm esteve diante do Theresa, em 1942, provavelmente não imaginou o papel que a hospedaria teria em sua vida. Bem aqui onde estamos, em frente ao prédio, ele fez vários discursos em manifestações públicas, com centenas e centenas de pessoas a sua volta, e no interior do edifício, deu diversas conferências para a imprensa. O Theresa se tornaria o headquarter da OAAU… Mais especificamente, a suíte 128, na prática, um enorme aposento no mezanino do hotel. Você vê como as histórias de todos nós, músicos, artistas, políticos, atletas, se cruzam aqui! O Theresa era onde a nata da cultura negra norte-americana se encontrava! Mas talvez o auge do velho hotel tenha sido em 1960, quando nosso querido Fidel e sua comitiva se hospedaram nele”.

“Já ouvi sobre esse episódio. Aquele deve ter sido um evento inesquecível”.

E foi. A visita de Fidel, de fato, foi um grande acontecimento…

Em outubro de 1995, Fidel Castro era recebido por quase 1. 600 moradores do Harlem, que lotaram entusiasticamente a Igreja Batista Abissínia para ouvi-lo discursar. Aquela era a volta triunfal do presidente de Cuba, que três décadas e meia antes, ainda como primeiro-ministro, fora recebido de braços abertos pela população daquele bairro pobre de Nova Iorque.

No dia 18 de setembro de 1960, Castro chegou aos Estados Unidos para participar das comemorações dos quinze anos da fundação das Nações Unidas e discursar na Assembléia Geral da ONU. Não é preciso dizer que ele era a principal estrela do evento.

Um dia antes de sua viagem, ele havia assinado decretos nacionalizando três subsidiárias de bancos norte-americanos na ilha, e a esta altura, já era visto como uma pedra no sapato de Washington, que cada vez mais o considerava um inimigo. A CIA, como se pode imaginar, já andava elaborando planos mirabolantes para assassiná-lo, sem êxito.

Nos dez dias que permaneceriam na cidade, Fidel e sua entourage de cinquenta pessoas (o historiador Manning Marable nos conta que eram “oitenta e cinco”) seriam supostamente “protegidos” por 258 homens do Departamento de Polícia de Nova Iorque. A delegação cubana inicialmente ficou hospedada em vinte suítes no caro e confortável Shelburne Hotel, na Avenida Lexington com a Rua 37, perto da ONU. Fidel, contudo, estava extremamente incomodado com o tratamento dado pelo hotel: não concordava que a gerência exigisse dos cubanos um depósito prévio de dez mil dólares em dinheiro vivo. Por seu lado, o hotel não queria a presença daquela comitiva, e só aceitou recebê-la por insistência do Departamento de Estado. O pessoal do Shelbourne alegava que os cubanos fritavam galinhas nos aposentos e teriam causado estragos nas instalações que acarretavam em prejuízos no valor de ten grand. Por isso, a exigência daquele depósito.

A situação tornou-se desagradável o suficiente para que o Comandante, irritado, decidisse abandonar o local, indo, em procissão, por oito quadras, até o edifício da Secretaria Geral da ONU, na Primeira Avenida, para fazer um protesto formal ao próprio secretário Dag Hammarskjöld. Fidel e mais sete companheiros seguiram num Oldsmobile preto, acompanhados de outros automóveis, membros da delegação a pé, policiais e jornalistas.

O líder cubano chegou a dizer que, se fosse o caso, levaria sua comitiva inteira para acampar no Central Park. Afinal de contas, eram todos guerrilheiros, haviam lutado na Sierra Maestra e podiam muito bem montar barracas e levantar um acampamento completo no gramado do maior parque de Manhattan. Quando o governo norte-americano, preocupado com a repercussão negativa dos fatos, ofereceu à delegação aposentos “de graça” no luxuoso Commodore Hotel, a três quadras da ONU, o barbudo recusou.

Pois foi neste exato momento que um grupo ligado ao Fair Play for Cuba Committee (vários deles militantes do Socialist Workers Party), propôs aos cubanos que fossem para o Harlem. O gesto de Fidel de levar, pela primeira vez na história, uma comitiva diplomática estrangeira para o famoso bairro negro nova-iorquino, seria simbólico e certamente apreciado e admirado pelos afro-americanos de todos os Estados Unidos. O Jefe Máximo imediatamente aceitou o convite e reservas foram feitas para quarenta quartos no histórico Hotel Theresa (há quem diga que foram oitenta aposentos, por oitocentos dólares por dia).

Ao chegar lá, Fidel seria recepcionado pelos membros do Fair Play, que ficariam no sétimo piso e colocariam vários de seus militantes em frente de cada elevador e saídas do prédio, para garantir a segurança. Os cubanos, assim, estariam “protegidos”!

No Harlem, Fidel teve uma recepção calorosa. Junto com o Comandante Juan Almeida (o Chief of Staff das Forças Armadas Revolucionárias, que fora trazido às pressas para a ocasião, por ser negro e simbolicamente mostrar a inclusão racial e oportunidades para todos em Cuba) e outros delegados, Castro caminhou pelas ruas do bairro, cumprimentando moradores, tomando suco de laranja e comendo cachorros-quentes, em clima festivo. O dirigente histórico do Partido Comunista dos Estados Unidos, Benjamin J. Davis, também negro, ainda organizou uma manifestação a favor de Fidel, que contou com a presença de grande público.

Em sua suíte, no nono andar do Theresa, o Jefe Máximo receberia a visita de importantes líderes mundiais, como Gamal Abdel Nasser, do Egito, Jawaharlal Nehru, da Índia, Antonin Novotny, da Tchecoslováquia, Kwame Nkrumah, de Ghana e Nikita Kruchov, da União Soviética. No dia 19, também conversou com Malcolm X, que anos mais tarde chegaria a conhecer e se tornar amigo e admirador de Che Guevara. Um dos membros da Nação do Islã presentes na reunião com Fidel, Benjamin 2X Goodman, afirmou que Malcolm tentou convencer Castro a se unir aos Black Muslims (algo que parece duvidoso). O que foi discutido, de fato, entre os dois naquele dia, contudo, ainda é algo bastante difuso. O que se sabe é que Malcolm foi convidado várias vezes a visitar Cuba (mas nunca aceitou) e que deu ordens, num discurso no Mosque No. 7, em 21 de setembro, para que os homens da Nação do Islã ali presentes ficassem em estado de alerta 24 horas por dia, enquanto Fidel permanecesse no Harlem, já que o revolucionário era, de acordo com ele, um amigo dos muçulmanos.

Do lado de fora do hotel, todas as noites, centenas de pessoas olhavam para as janelas lá no alto, tentando receber um aceno que fosse de Fidel. O frenesi era tanto que o New York Times chegou a dizer que aquele era o maior evento na rua 125 desde o funeral do famoso bluesman W. C. Handy, em 1958.

Desde a chegada da comitiva, entretanto, a mídia local não cansou de atacar a delegação da ilha caribenha com todo tipo de acusações e falsificações. Jornalistas até mesmo afirmaram que os cubanos, “barbudos de uniforme verde-oliva, coturnos e boina na cabeça”, convidavam prostitutas para seus quartos e corriam atrás de galinhas nos corredores do hotel, para agarrá-las e cozinhá-las em seus aposentos. Notícias sensacionalistas e preconceituosas… Na verdade, nem o discurso de quatro horas e meia que Castro proferiu nas Nações Unidas, no dia 26, teve tanta repercussão quanto sua presença no Harlem.

O Comandante não deixava de trabalhar naqueles dias. Era comum que participasse de conferências telefônicas com seu gabinete em Havana (para estreitar laços diplomáticos com a China e a Coreia do Norte) e que se reunisse com Célia Sánchez e o capitão Nuñez Jiménez para discutir questões de Estado.

Certa noite, porém, num momento de folga, convidou o staff do Theresa para jantar com ele e Almeida, como agradecimento pela forma carinhosa pela qual haviam sido tratados pelos funcionários do hotel. Como prato principal, arroz e frango, trazidos de um restaurante da esquina… Em outra ocasião, recebeu os poetas Langston Hughes e Allen Ginsberg para um bate-papo informal.

No dia 29 de setembro, Fidel finalmente partiu de volta a Havana, num turbohélice soviético Ilyushin 18, para não arriscar que alguma aeronave da Cubana de Aviación fosse confiscada pelas autoridades norte-americanas como parte das indenizações que os cubanos supostamente lhes deviam. De volta à capital do país, ele seria recebido com entusiasmo por 150. 000 pessoas nas ruas. Já os moradores do Harlem daquela época, e boa parte da comunidade negra dos Estados Unidos, nunca se esqueceriam de sua visita e sempre se lembrariam dele como um irmão.

O sapo ouvia a história, emocionado. A maioria dos transeúntes mal notava que ele estava ali. Alguns poucos, porém, ao ver o pequenino batráquio, achavam que se tratava de um louco, falando sozinho. É que ninguém conseguia ver Sugar Ray Robinson. Só Gonzalo.

Sem se dar conta disso, ele gesticulava para o velho lutador. E Robinson continuava a falar.

“Bem, acho que chegou a hora de ir… Estão me chamando…”

“É São Pedro que te chama, Sugar? Ou quem sabe outro santo?”

“Que nada! É minha esposa que me aporrinha o tempo todo, dizendo que nem no além eu fico em casa! Pode uma coisa dessas?! Você consegue entender isso?! Achei que ia ter um pouco de paz na outra dimensão, mas nem assim a velha para de gritar nos meus ouvidos! Ora essa! Vai dizer que estive bebendo com meu treinador, que saí com mulheres, que meus amigos são todos uns vagabundos! Vou te contar!”

“Parece que as coisas não mudam…”

“Pois é, Gonzalucho! A gente se vê por aí! Uma hora dessas apareço e conversamos um pouco mais. Agora vou embora, senão terei problemas”.

“Até mais, mi querido. Foi um prazer conhecê-lo. E muito obrigado pelas histórias!”

Sugar Ray, acenando com uma mão, lentamente foi se tornando cada vez mais etéreo, transparente, sua silhueta desaparecendo na frente do sapo. Até que sumiu de vez. E Gonzalo, finalmente, foi tomar seu café. Sem açúcar!

*Formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.