Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya
Por Jorge de Sena
Publicado 18/11/2011 17:09

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juizo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25 junho 1959.
(In poesia II, pg 125 a 128.)
Dar de nós mais do que nós mesmos: retrato de um poeta
Por Beatriz Helena*
Jorge de Sena (1919 – 1978), português, naturalizado brasileiro em 1963, foi ensaísta, crítico literário e estudioso da literatura, com destaque para seus estudos sobre a obra de Luis de Camões e Fernando Pessoa; além de ter escrito vários contos, um romance e uma novela. Foi, acima de tudo e como ele mesmo se intitulava, poeta, mantendo a postura de dar “de nós mais que nós mesmos, testemunhamos do mundo que nos cerca” (SENA, 1961, p.11). Compõe parte importante de seu legado as correspondências que trocava com outros poetas, algumas já editadas em volume, como as com José Régio, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço e Sophia de Mello Breyner Andersen, entre outros.
Em 1959 chega ao Brasil, iniciando assim aos 39 anos de idade seu exílio voluntário, motivado pela ditadura em seu país, junto com sua mulher – Mécia de Sena, que hoje continua editando sua obra – e sete filhos. Outros dois filhos nasceriam aqui. Até 1962 integrou o Conselho de redação do jornal anti-salazarista Portugal Democrático, publicado em são Paulo desde 1956. Em 1964 obtém o título de Doutor em Letras e Livre docência pela Faculdade de filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, onde lecionou. Mudou-se em 1965 para os EUA, novamente devido à ditadura.
Atendo observador da humanidade e da sociedade de sua época, e também do nosso passado, dono de uma escrita inicialmente nada fácil de ser lida e entendida, a começar pelos enormes parágrafos que caracterizam seus estudos, bem como alguns extensos poemas, vem cativando desde sempre admiradores entre os que se permitem dedicar-lhe leitura. Em 1963 publica o volume Metamorfoses, composto na parte principal por vinte poemas surgidos a partir da observação de obras de arte, na maioria, sendo um deles Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya; uma foto de um dançarino índio e uma imagem do satélite russo Sputnik I.
Em 1999, foi criada na Faculdade de Letras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) a Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros, que editada a revista Metamorfoses e mantém a página http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena, um importante espaço de divulgação de sua obra e ressonâncias.
De tudo que já li dele e sobre ele, desde que fui tomada de assalto por seus escritos e compelida a tê-lo como objeto de mestrado, creio que o que melhor define Jorge de Sena, bem como melhor dimensiona sua obra, foi entendido por ele mesmo, e cito: “É que à poesia, melhor que a qualquer outra forma de comunicação, cabe, mais que compreender o mundo, transformá-lo.” (SENA, 1961, p.11)
*Beatriz Helena é professora e mestranda de literatura portuguesa na UFF – Universidade Federal Fluminense