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O pênalti que Bebeto não bateu e o paradoxo de Djukic

"Os jogadores de ambas as equipes, o público, até mesmo os policiais e os fotógrafos, que até esse instante se amontoavam às centenas atrás do gol, haviam desaparecido. No estádio de Riazor – e no mundo – só estavam ele, o goleiro e o árbitro". Por Julio Llamazares.

O Deportivo de La Coruña entrou a rodada como líder. O Barcelona, um ponto atrás, era segundo. Em 14 de maio de 1994, o Campeonato Espanhol chegou à derradeira rodada com o título em mãos incertas. O Barça venceu sua partida. E ficou no aguardo do resultado em Riazor, o principal estádio da Galícia, onde o Deportivo empatava em zero. Com a camisa azul e branca dos galegos, o brasileiro Bebeto compartilhava a opinião geral sobre a motivação do Valencia, adversário da tarde – em sétimo lugar, só poderiam ter objetivos mais econômicos do que esportivos para estar jogando a vida.

“A todo momento, Bebeto nos chamava de vendidos e perguntava se não tínhamos vergonha”, contou, anos mais tarde, o então zagueiro valencianista Fernando Giner. “É claro que houve um bônus oferecido pelo Barça. Mas veja o que são as coisas: quando apitam o pênalti, me dirijo e Bebeto e digo que tinham a vitória nas mãos, que haviam conseguido o que queriam. Ele desapareceu da minha vista, e quem teve que bater foi Djukic”. A algumas semanas da consagração na Copa do Mundo dos Estados Unidos, Bebeto ficou marcado pela recusa em bater o pênalti que poderia dar o primeiro título nacional ao Deportivo, na época uma equipe modesta e recém-saída de um período de dezoito anos na segunda divisão. Bateu o defensor Miroslav Djukic. E perdeu.

Djukic passou à história como o mártir da derrota, a grande vítima da covardia de Bebeto. Os fatos de o baiano ser a grande estrela do time e ser o segundo na ordem de cobradores (abaixo do também brasileiro Donato, que já havia sido substituído), além da suposta fuga de responsabilidade, ganharam o destaque nos noticiários do fracasso no dia seguinte. Parecia imperdoável que Bebeto não tivesse cobrado o tiro, mesmo que a escolha por ele como chutador não fosse tão óbvia assim – ao longo do mês que precedeu a partida, o brasileiro havia errado dois pênaltis, um deles na rodada anterior. Mesmo assim, a maior parte dos críticos colocou Djukic, o terceiro na lista de cobradores, como uma vítima das circunstâncias, um atleta menor engolido pelo medo.

E poucos se ocuparam das razões e do drama particular do iugoslavo que por aqueles minutos teve todos os olhos da Espanha sobre si. O jornalista e escritor Julio Llamazares foi um destes. Apresentado a Djukic por um amigo comum, Llamazares extraiu das conversas com o jogador a matéria-prima para um conto-reportagem escrito meses depois dos acontecimentos. “Tanta paixão para nada (o paradoxo de Djukic)”, de 1995, voltou a ganhar destaque em 2011 com o lançamento, em fevereiro, de um livro de contos intitulado a partir do texto – “Tanta pasión para nada”, ainda sem versão em português.

Llamazares nasceu em Vegamián, uma pequena cidade mineira “donde no había ni un libro, seguramente”, e onde apesar disso cismou que seria escritor. Mais tarde, Vegamián foi afundada pelas águas de uma represa e Julio acabou numa faculdade de Direito, mas a alteração súbita da realidade não amoleceu a vocação. Ele exerceu advocacia por um ano, abandonou o ofício e foi ser jornalista – era a maneira mais rápida de se sustentar escrevendo, antes de abrir caminho para as pretensões literárias. Mas mesmo quando só podia viver dos livros seguiu com o cacoete da reportagem, como prova o conto sobre Djukic. “Tanta paixão para nada”, disse, tem a mensagem de que “as guerras acabam sendo ganhas pelos perdedores, porque a derrota é moralmente superior à vitória. Sobrevivem aqueles que sofrem uma derrota heroica”.

Daí a atenção destinada às divagações solitárias de Djukic na marca do pênalti. O jogador, longe de ser um ingênuo massacrado pelo momento, era o homem que acreditou na própria fortuna e negou as advertências da mulher, Ceca. O conto começa assim: “Quando pegou a bola, Djukic se lembrou do que sua mulher havia dito naquela tarde; parecia que havia profetizado. Se tiver a oportunidade, dissera Ceca, que nem te ocorra a ideia de bater um pênalti”. Mas ele assumiu o peso do chute mais importante da história do clube. Certa vez, quando discutia o lance com Llamazares, o iugoslavo recordou que o minuto em que teve a bola nas mãos transcorreu como se cada momento da vida pudesse ser revisto rapidamente, uma sucessão de convergências para aquele instante acontecer.

No texto, Miroslav Djukic tem sua figura atravessada por memórias dos Bálcãs. O pai sucateiro que furava suas bolas de futebol para que estudasse. O irmão morto num acidente. A frase supostamente repetida pelo pai – “tanta paixão para nada” – cada vez que a vida o desiludia. O começo jogando na sua Savac natal e a ida para o Rad de Belgrado: “Djukic ainda se recordava algumas vezes – agora com um sorriso – da viagem de trem de volta a Savac, comentando com Ceca, com quem acabava de casar, se teriam tempo, em toda a sua vida, de gastar todo o dinheiro que acabavam de lhe pagar”. Lembrava-se, finalmente, da saída da Iugoslávia para o La Coruña em 1990, a tempo de fugir da guerra que fragmentou o país, graças a um olheiro que havia ido à Iugoslávia ver o Estrela Vermelha e o Partizan e, entediado, assistiu também ao Rad.

O zagueiro concluiu que muitas vezes tivera sorte. E, diante do gol, considerava-se sustentado por ela o suficiente para cobrar aquele pênalti. O conto de Llamazares não deixa transparecer qualquer sentimento de raiva em relação a Bebeto – há, antes, uma autoconfiança nervosa. “Parecia que uma estrela o iluminava. Se não, como se explicava o fato de ter sempre acertado nas decisões mais importantes, dessas que determinam a vida de uma pessoa, ou que, nos piores momentos, quando tudo ia mal, algo ou alguém o empurravam para a frente? […] Se então – pensava Djukic agora – o acaso e a sua boa estrela o iluminaram (desde que chegou ao Deportivo tudo tinha sido êxito), por que não haveria de ser assim agora que enfrentava o momento possivelmente mais importante da sua vida esportiva?”

A estrela de Djukic desapareceu na corrida até a bola. O chute saiu ruim, fraco e à meia-altura, quase no meio do gol. Apenas um pouco à direita do goleiro, que agarrou firme. Por dois segundos, não mais, o iugoslavo agarrou a cabeça em pleno desespero, e depois tentou voltar ao jogo que terminou mesmo empatado. O Deportivo de Djukic havia perdido aquele Campeonato Espanhol. Mais tarde, os dois teriam sua redenção, um sem o outro: o Deportivo curaria o trauma conquistando o título inédito ao final da temporada de 2000. Djukic venceu a competição em 2002. Desta vez, ironicamente, vestia a camisa do Valencia.

Fonte: Sul21