Conspiração no Guadalupe – Capítulo 1

Os peitos de Gertrude eram fendidos por estrias. Aos trinta anos, podia ter quarenta; três filhos, um de cada vez, prostraram-lhe as mamas, mesmo com os bicos em riste. No ônibus, em qualquer lugar, punha o mamilo na boca do filho; punha com graça, incitando moças e velhas sem filhos.

O amante, também vindo de núpcia gorada, não a emprenhara. Agora, julgava-a vencida. No começo, amaram-se garimpando cada penugem do corpo. O sulco abaixo das costas de Gertrude, dividia com justiça suas nádegas. Ele o via murchar, obedecendo à exaustão dos seios. Montava-a no escuro para não ter que olhar suas mamas piongas. Queria falar, acanhava-se, fingia dormência, deprimia-se.

A rumba epiléptica

Na rua salpicada de bordejos fluorescentes, a rala procissão de notívagos seguia para a bilheteria. Maújo foi o primeiro a descer do táxi; dobrou com adulação o banco para Chica descer. Gertrude achou-o remelento, riu sem esconder o riso. Andavam, sentavam distantes um do outro; apostavam nos resíduos de desejos que os uniam.

O Estrela, no sábado, era um borrifo de sêmens. A orquestra estrilou a rumba, infundindo gozo na crença de que logo a República seria livre. Maújo chamou Chica para dançar, dançar como velhos rumbeiros. Chica, pernas e coxas bastas, cintura móvel, a corola fechada; seios duros no ritmo da rumba epiléptica, rosto suado e cabelos incivis. Maújo cegou sob os raios das luzes. A orquestra emendou a rumba com um frevo. Seus olhos, duros, chisparam-na. Puxou-a pela cintura, beijou-a demoradamente.

O ar corrupto incitava o desvario.

Xisto preferia ser proscrito a ter que frequentar festas de família. Convidara Chica, inquietou-se com a ausência dela. Crescera entre os dois uma relação apropriada a desagravos. Mais dia, menos dias, ela se sentiria dependente, entregar-se-ía. Caetano, seduzira-o a combinação impossível entre a compleição miúda de Gertrude e sua inteligência ligeira.
– Aquela mulher tem o diabo no corpo – dissera a Xisto.

Por agora, entretinha-o com o fogo das palavras movidas pelo raciocínio veloz; chamuscava-o. Ele se dava o prazer da imolação. Inda que suspeitasse, ela não se punha rédeas; comprazia-se na porção dos miúdos e incisivos sons de suas palavras. Caetano mexia-se de um lado e de outro. Ela não se dava conta. Isso o deixava furioso.

Último acorde da orquestra. Luzes brancas. A psicodelia dos refletores dá lugar ao negrume da cal borrada nas paredes. O piso, antes oculto, mostra uma poeira incolor cujo bafo se mistura à oxidação dos cigarros. A luz é baça, doentia. Os rostos não têm o viço da gênese.

Os cinco descem a ladeira. Não estão cansados. Xisto abaixa os braços, deprimido; oculta-se na imprecisão das luzes dos postes. Gertrude, ligeira, ao lado de Maújo:

– Não precisa me dizer nada, Maújo. Faça o que tem vontade. Tome seu anel de volta.
– Quero me despedir de você.
– Você já deu adeus, lá do meio do salão.
– Quero lhe dizer o quanto lhe sou grato. Não quero que pense que sou irresponsável.
– Não quero julgá-lo agora. Tenho medo de perder a calma; é o mais provável.
– Tem o direito de pensar o que quiser de mim. Digo isso embora com receio da repercussão de suas palavras em meu peito. Por isso, me dê a chance de dizer o quanto você foi importante para mim.
– Tá bem… Na frente de todo mundo. Une petite réunion!

Deus do céu! Ela tem mesmo o diabo no corpo…

Gertrude se confessara ao primeiro marido com um discurso rápido, com vistas à ruptura da incômoda virgindade. De modo igual confessara seu amor a Maújo, na frente de um e de outro, com vistas à celebração. Odiava enfeites no raciocínio. O marido, sem esperar, fez votos de fortuna ao novo consórcio e foi curar-se do revés sozinho. Maújo falou com as mãos, bebeu com engasgos. Amaram-se como dois alforriados na mesma noite. Gertrude comemorou o resultado de sua logística fria.

A familiaridade começara na segunda ou terceira entrevista. No pátio de um hospital administrado por freiras, freiras novas, de intrigante virgindade.

– Tenho pena de vê-las com o hábito…
– Por quê?
– Deviam amar de outro modo.
Gertrude riu um riso miúdo.
Reencontraram-se cinco anos depois, ambos com o casamento em crise.
– Você era a freira que me impressionava.
– Não quis dizer nada. Eu estava bem com o meu marido.
– Se você fosse freira, seria capaz de jogar o hábito fora.

Ela riu o mesmo riso de há cinco anos. Esperou para dizer ao marido que o casamento morrera. Dormiriam em quartos separados. Tinha novo parelho e instinto muito para ser só de um.

Maújo amou-a até descobrir-lhe a carne murchar. Queria separar-se para se ver livre de remorsos. A moção de reunião, à queima-roupa, inquietou-o. Gertrude era persuasivamente invulgar.

Vulgar era o uso de fichas de radiola com duas fendas de um lado e de outro; a cor de chumbo sujo por dedos suarentos, de nicotina. Ele trouxera fichas juntadas nas folganças com Gertrude. Quando brigavam, era o único butim, indício de perdas, que estendia no criado-mudo. Tilintando, reavivaram os acordes do bolero, trilha sonora da despedida. Trouxera-as com o propósito de outras vezes: usar o que restara intacto do desarrumo com Gertrude. No Estrela, o maestro orquestrara sua opereta com Chica. Interpretara, ele, com realismo; desceu do palco. Agora, longe da primeira coadjuvante, usaria as fichas para o deleite da dama substituta. Mostrou-as. Ela viu em cada uma a marca dos costumes noturnos de Maújo; riu. Entreviu uma sequência de delírios. Maújo enfiou uma na greta da radiola, lembrando as estrias nos peitos de Gertrude.

A madrugada tem sais. A manhã a espreita e ela cede o lugar por renúncia. A radiola, imitando-a, soou notas derradeiras, de rogo.