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Frances Fox Piven: Os novos desafios da desigualdade nos EUA

O Movimento Ocupa Wall Street está finalmente desafiando décadas de guerra contra os pobres nos EUA, um conflito que apesar de ser devastador, tem passado despercebido até agora.

Por Frances Fox Piven

Estamos em guerra desde há décadas — não apenas no Afeganistão ou no Iraque, mas aqui mesmo, em casa [nos EUA]. Domesticamente, tem sido uma guerra contra os pobres, e não surpreende se não se deu conta. Não se encontram muitas vezes os números das baixas neste conflito particular nos jornais locais ou nos noticiários televisivos. Apesar de ser devastadora, a guerra contra os pobres tem passado despercebida — até agora.

O movimento Ocupar Wall Street (OWS) já tornou a concentração de fortunas na sociedade um assunto central na política americana. Agora, promete fazer algo semelhante sobre as realidades da pobreza neste país.

Ao adotar Wall Street como o seu alvo simbólico, e designar-se como o movimento dos 99%, o OWS redirecionou a atenção pública para o problema da desigualdade extrema, a qual foi essencialmente diagnosticada como um problema moral. Até há pouco tempo, a “moralidade” na política significava preferências sexuais, comportamento reprodutor ou o comportamento pessoal dos presidentes. A política econômica, incluindo a redução dos impostos aos ricos, subsídios e proteção do governo para as seguradoras e farmacêuticas e a desregulação financeira, foi encoberta por nuvens de propaganda ou simplesmente considerada demasiado complexa para que os americanos comuns pudessem entendê-la.

Agora, no que parece ter sido um instante, o nevoeiro levantou-se e o tópico em cima da mesa em todo lado parece ser a moralidade do capitalismo financeiro contemporâneo. Os manifestantes conseguiram chegar a isto principalmente através do poder simbólico das suas ações: nomear Wall Street, o coração do capitalismo financeiro, como o inimigo; acolher os sem-abrigo e sair para os seus locais de ocupação. E claro, o slogan “Somos os 99 por cento” reiterou a mensagem de que quase todos nós sofremos devido aos lucros irresponsáveis de uma pequena minoria. (De fato, não estão longe disso: o aumento do rendimento dos 1% mais ricos nas passadas três décadas é mais ou menos o mesmo que as perdas dos 80% mais pobres.)

O apelo moral do movimento é reminiscente de momentos históricos anteriores, quando os levantamentos populares invocavam ideias de uma “economia moral” para justificar as exigências de pão ou cereais ou salários – pois isto é uma medida de justiça econômica. Normalmente, os historiadores atribuem as ideias populares de uma economia moral aos costumes e tradição, veja-se o exemplo de quando E.P. Thompson ligou a ideia de “preço justo” para os alimentos básicos invocados pelos sublevados ingleses do século 18 às estatuetas isabelinas que já tinham centenas de anos. Mas os revoltosos pobres nunca foram simplesmente tradicionalistas. Perante violações daquilo que consideravam ser os seus direitos consuetudinários, não esperaram que os magistrados atuassem, mas encarregaram-se a si próprios várias vezes para exigir aquilo que consideravam ser a fundação de uma economia moral e justa.

Ser pobre em números

Certamente que a economia moral para o nosso tempo estaria contra a acumulação desenfreada de riqueza à custa da maioria (e do planeta). Também condenaria de forma especial a criação de um estrato cada vez maior de pessoas as quais chamamos “os pobres” que lutam para sobreviver na sombra do consumismo exagerado e o desperdício do 1% mais rico.

Alguns fatos: no início de 2011, o Gabinete do Censos dos EUA anunciou que 14,3% da população, ou 47 milhões de pessoas — 1 em cada 6 americanos — vivem abaixo do limiar da pobreza cujo valor é, atualmente, 22.400 dólares por ano para uma família de 4. Cerca de 19 milhões de pessoas vivem naquilo que é chamada pobreza extrema, o que significa que o seu rendimento familiar é menos de metade do limiar da pobreza. Mais de um terço destes extremamente pobres são crianças. De fato, mais de metade de todas as crianças abaixo dos seis anos que vivem apenas com a mão solteira são pobres. Extrapolando a partir destes dados, Emily Monea e Isabel Sawhill do Brookings Institute estimam que estão no horizonte do futuro americano crescimentos acentuados tanto na pobreza como na pobreza infantil.

Alguns peritos negam estes números, afirmando que nenhum deles tem em conta o impacto da assistência que os pobres recebem principalmente através do programa alimentar (cupões), nem as variações regionais do custo de vida. De fato, embora muito maus, os números oficiais não contam a história toda. O valor oficial da linha de pobreza é o triplo do valor mínimo do orçamento alimentar introduzido em 1959, depois ajustado à inflação dos custos alimentares. Por outras palavras, não tem em conta o custo da casa, do combustível, dos transportes ou dos cuidados de saúde, os quais estão todos subindo mais rapidamente que o custo dos alimentos básicos. Portanto, a medida da pobreza subestima bastante o custo real de subsistência.

Mais: em 2006, o pagamentos de juros sobre a dívida de consumo já ciolocou 4 milhões de pessoas, não oficialmente na pobreza, por baixo da linha tornando-os “pobres da dívida”. De forma semelhante, se os cuidados com as crianças, estimados em 5.750 dólares em 2006, forem deduzidos do rendimento bruto, muitas mais pessoas serão oficialmente consideradas pobres.

Estes níveis catastróficos de pobreza são uma consequência temporária do crescente desemprego ou reduções dos ganhos reais resultantes da grande crise econômica de 2008. Os números contam a história e é claro o suficiente: pobreza já estava a crescer antes da Grande Recessão. Entre 2001 e 2007, pela primeira vez, a pobreza aumentou durante um período de crescimento econômico. Cresceu de 11,7% em 2001 para 12,5% em 2007. Neste ano, a taxa de pobreza entre as mães solteiras era 49% mais elevada que noutros 15 países desenvolvidos. Igualmente, a taxa de emprego e o rendimento entre a população negra estavam a cair antes de a recessão acontecer.

Em parte, tudo isto deriva da quebra inevitável de décadas de mobilização empresarial para reduzir os custos do trabalho, enfraquecendo os sindicatos e mudando as políticas públicas que protegiam os trabalhadores e mesmo os sindicatos. Resultado, as decisões do Conselho Nacional do Trabalho tornaram-se menos favoráveis aos trabalhadores e aos sindicatos, as regulamentações do local de trabalho não foram aplicadas, e o salário mínimo não acompanhou a inflação.

Inevitavelmente, o impacto geral da campanha para reduzir a parte dos ganhos do trabalho significou que um crescente número de americanos não poderia nem garantir uma vida ao nível da linha da pobreza – e isto não é tudo. Os pobres e os programas de ajuda foram objeto de uma veloz campanha dirigida especificamente contra os mesmos.

Campanha contra os pobres

Este ataque começou mesmo quando o Movimento Liberdade Negra estava no auge, nos anos 60. Em 1964, já era evidente na campanha perdedora do candidato republicano Barry Goldwater, assim como nas campanhas recorrentes do então governador democrata e segregacionista do Alabama George Wallace. A corrida de Richard Nixon em 1968 retomou o tema.

Como muitos comentadores apontaram, a sua estratégia de campanha triunfante aproveitou para aumentar as animosidades raciais não apenas dos brancos do Sul, mas também dos brancos da classe trabalhadora do Norte que de repente se encontram condenados a competir com os recém urbanizados afro-americanos pelos postos de trabalho, serviços públicos e habitação, assim como nas campanhas pela desagregação das escolas. O tema racial depressa se misturou com a propaganda política, tendo como alvos os pobres e os programas de ajuda da altura. De fato, na política americana “pobreza” tal como “bem-estar”, “mães solteiras” e “crime”, tornaram-se códigos para “negros”.

Durante o processo, os republicanos tentaram derrotar os democratas nas urnas ao associá-los com os negros e com as políticas liberais dirigidas a aliviar a pobreza. Um dos resultados foi a infame “guerra às drogas” que, em geral, ignorou os grandes traficantes em prol dos pequenos ofensores nas comunidades dentro das cidades. Com isto surgiu também um programa massivo de construção de estabelecimentos prisionais e detenções, “reforma” generalizada do principal programa de assistência, Ajuda às Famílias com Crianças Dependentes. Este ataque aos pobres é testemunho do drama resultante de décadas de campanha lançada pelo sector empresarial e pela direita organizada contra os trabalhadores.

Isto não foi apenas uma guerra contra os pobres, mas uma verdadeira “guerra de classes” que os republicanos usam agora para classificar qualquer ação de que não gostam. De fato, a guerra de classes foi o objetivo abrangente da campanha, algo que ficou rapidamente patente em políticas que levaram à redistribuição massiva da taxação, à canibalização dos serviços públicos através da privatização, aos cortes salariais e enfraquecimento dos sindicatos, e à desregulação das empresas, bancos e instituições financeiras.

Os pobres — e os negros — foram um acessório útil à retórica, uma distração propagandística usada para ganhar eleições e conseguir avanços. Contudo, a retórica foi importante. Um conjunto de novos pensadores, organizações políticas e lobistas em Washington D.C., promoveu a mensagem de que os problemas do país eram causados pelos pobres cuja imobilidade, inclinações criminais e promiscuidade sexual, eram permitidas por um sistema de bem-estar demasiado generoso.

Seguiu-se rapidamente um sofrimento genuíno, assim como grandes cortes em programas que ajudavam os pobres. A encenação dos cortes estava ela própria envolta em nuvens de propaganda, mas ao mesmo tempo desgastaram a rede de segurança que protegia tanto os pobres como os trabalhadores, especialmente os que tinham baixos salários — o que significava mulheres e minorias. Quanto Ronald Reagan entrou na Sala Oval em 1980, o caminho já tinha sido suavizado para grandes cortes nos programas de apoio aos pobres, e, em 1990, os democratas, à procura de estratégias eleitorais que recolhiam fundos de campanha das grandes empresas para recolocá-los no poder, tomaram o slogan. Foi Bill Clinton quem, apesar de tudo, fez campanha sob o lema “acabar com o estado de bem-estar tal como o conhecemos.”

Um movimento para uma economia moral

A guerra contra os pobres a nível federal foi igualada nas capitais dos Estados, onde organizações como a Federação Americana para as Crianças, o Conselho Americano de Trocas Legislativas, o Instituto para a Liberdade e a Rede de Políticas Estaduais começaram a trabalhar. A sua agenda era ambiciosa, incluindo a privatização em larga escala dos serviços públicos, cortes nos impostos para as empresas, o retrocesso nas regulamentações ambientais e proteção de consumidores, enfraquecendo os sindicatos do setor público e medidas (como a exigência da identificação fotográfica) que restringem o acesso que estudantes e pobres tinham ao voto. Mas os últimos foram o alvo principal, e uma vez mais, houve consequências nas vidas reais — cortes no sistema de bem-estar, particularmente no programa de Ajuda às Famílias com Crianças Dependentes, e uma campanha de segurança e lei que resultou numa encarceração massiva de homens negros.

A Grande Recessão acentuou estas tendências. O Instituto de Economia Política declarou que um agregado típico e ativo, que já sofreu perdas em cerca de 2.300 dólares no rendimento entre 2000 e 2006, perdeu mais 2.700 dólares em 2009. E quando a “recuperação” chegou, ainda que incerta, foi em indústrias de baixos salários, o que representou quase metade do crescimento em causa. A produção continuou a contrair enquanto que o mercado de trabalho perdeu 6,1% de trabalhos pagos. O novo investimento, das poucas vezes que ocorreu, era dirigido para a maquinaria em vez de para novos trabalhadores, portanto, os níveis de desemprego mantiveram-se incrivelmente altos. Por outras palavras, a recessão acelerou as tendências que já existiam relativamente aos baixos salários e ao cada vez mais inseguro emprego.

A recessão também desferiu maiores cortes nos programas de assistência. Uma vez que o dinheiro das ajudas se tornou cada vez mais difícil de obter, graças à chamada reforma do sistema de bem-estar, o desinvestimento nos programas foi ainda maior, o programa de cupões para comida começou a sofrer uma forte pressão para fornecer ajuda aos pobres. Renomeado como “Programa de Assistência Nutricional Suplementar”, foi apoiado por fundos da Lei da Recuperação, e os benefícios subiram temporariamente, assim como os pedidos. Mas o Congresso tentou várias vezes cortar os fundos, propondo até que fossem dirigidos para subsídios agrícolas, enquanto foram feitos esforços, para já sem sucesso, para negar cupões a todas as famílias que incluam um trabalhador em greve.

A direita justifica as medidas draconianas com argumentos morais. Pensadores e blogs de direita, por exemplo, ponderam o efeito negativo que a “dependência” da assistência do governo possa ter em crianças deficientes, ou escrutinizam a ajuda alimentar do governo a mulher pobres grávidas e a crianças numa tentativa de refutar os resultados positivos dos mesmos.

A ignorância propositada e a crueldade podem deixá-lo espantado – e espantar-nos foi tudo o que fizemos durante décadas. É por isso que precisamos desesperadamente de um movimento para um novo tipo de economia moral. Ocupa Wall Street, que já mudou a conversa a nível nacional, pode ser o seu início.

*Frances Fox Piven é autor de inúmeros livros, incluindo o recente “Who's Afraid of Frances Fox Piven? The Essential Writings of the Professor Glenn Bleck Loves to Hate”

Fonte: Esquerda.net