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Correia da Fonseca: Sem Limites

Ao contrário do que segundo consta acontecia na Antiguidade, Roma já paga aos traidores. Vários deles não só prosperam a olhos vistos, e contam com assídua presença na mídia, descendo sempre mais baixo na tentativa de justificar retroativamente velhas traições. São repugnantes. Como é repugnante a Roma que lhes paga.

Por Correia da Fonseca, em O Diário .info

1. É uma criatura repugnante. Salvo melhor opinião, naturalmente. É-o tanto e de tal modo que para muita, muita gente saudável e honrada se tornou o exemplo mais óbvio da traição, da passagem de uma trincheira difícil para uma outra bem remunerada por vários modos, de tal modo que nem trincheira pode ser chamada mas antes camarote de luxo, frisa de boca, poltrona de primeira fila. Olha-se para a sua imagem ainda que apenas no televisor e logo se torna necessário dominar a náusea, reprimir o ímpeto do vômito, afastar a sensação de mau cheiro que parece desprender-se da tela e invadir-nos a casa. No caso das mais vulneráveis sensibilidades, só mesmo o dever do ofício explica que não se passe a outro canal mais higiênico, digamos assim, nem que nele esteja em antena um detergente para limpeza de sanitários. Contudo, decerto porque há profissionais com não apenas sólido estômago mas também elevado sentido de profissionalismo e alargado entendimento dos deveres de pluralidade, há quem convide aquela sinistra figura para abrilhantar uns minutos de conversa. Deveria dizer-se que para uns minutos de opinião, se fosse aceitável que argumentos autojustificativos, ou pagamento de favores sob a forma de imposturas ou calúnias, podem ser aceitos como opiniões.
 
2. Era uma entrevista e falava-se de política, como é normal naquele canal e àquela hora. O clima geral da conversa era o de um vincado apego à democraticidade, sentimento que naquele caso surgira aparentemente de um momento para o outro, ou quase. Para quem porventura ainda se recorde como aquilo aconteceu há já um bom par de anos, dir-se-ia que houve a súbita libertação de um cérebro obstruído, iluminado como que por ora e graça de uma aparição sobrenatural no gênero de milagre vindo diretamente dos céus, que é boa fonte para tais maravilhas. Era, pois, um testemunho acerca de vários aspectos da atualidade mas sempre radicado numa linha que bem podia ser definida como sendo a de «tudo pela democracia, nada contra a democracia». O que, escusado será dizê-lo, é ótimo e sempre muito apreciado. Aliás, como bem se sabe, o amor à democracia funciona muitas vezes como uma escada rolante que se move no sentido ascendente: a gente coloca-se no degrau inferior, fica ali sem precisar de se mexer, quando muito apenas é conveniente um ligeiro apoio no também deslizante corrimão para assegurar o equilíbrio, e a escada transporta-nos sem exigir mais esforço até ao topo. Muitos se têm transportado deste modo e não há indícios seguros de que brevemente deixe de ser assim.

3. Ora, a dada altura surgiu a ideia de avançar com uma comparação, com um paralelismo. Não, é claro, uma qualquer comparação: teria de ser uma que tivesse a força de uma síntese e viesse reforçar o já extenso currículo de preciosos serviços prestados à democracia no peculiar sector do anticomunismo sem princípios mas com fins. Saiu, então, esta verdadeira preciosidade: não há diferença entre o fuzilamento do prisioneiro num campo de concentração nazista e um fuzilamento praticado por Che Guevara. Quem conduzia a entrevista e ouviu a arrojada fórmula nem sequer pestanejou, muito menos solicitou esclarecimentos acerca daquela novidade de Guevara ter andado pessoalmente a fuzilar prisioneiros: decerto estava de acordo com tão elevado grau de argumentação democrática ou bem sabia que para coisas daquelas é que o convite havia sido feito. Mas, de qualquer modo, ficou ali bem claro que a impostura e a manipulação anticomunistas integram um território sem limites e, naturalmente, sem pudor. Designadamente quando surgem como floração pútrida de uma traição que se perpetua na segregação de vãs tentativas para se justificar retroativamente, mesmo recorrendo às mais óbvias ignomínias. Na verdade, contra o que muitas vezes pode parecer, é triste e de fato interminável o percurso da traição. Mesmo quando, como agora e ao contrário do que segundo consta acontecia na Antiguidade, Roma já paga aos traidores.

Correia da Fonseca é jornalista e escritor português