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Polícia, violência e corrupção: um caso (policial) de amor

Na última semana, a greve dos policiais militares cearenses – e principalmente o “Dia em que Fortaleza parou” – foi aqui abordada. Propositadamente, excetuando-se a conclusão do artigo, absolutamente nenhum comentário foi tecido a respeito da coerção, da corrupção e da violência policial, bem como do papel fundamental que essa instituição exerce como mantenedora do status quo. Este, pensei, era assunto para muitas outras linhas.

*Por Artur Pires, do Blog Impressões Mundanas.

Pois bem, trago o assunto à tona agora, instigado por mais um caso de agressão policial truculenta e gratuita. Dessa vez, filmado e amplamente divulgado nas redes sociais e pela internet afora: nas imagens (veja aqui), o sargento da PM, André Luiz Ferreira, agride covardemente o estudante da USP, Nicolas Menezes Barreto, durante a desocupação de um espaço que estava sendo utilizado pelo DCE daquela Universidade.

Em um momento da agressão, o policial chega a sacar a arma da cintura para ameaçar o estudante. Além do modo inexplicável e violento como se dá a abordagem, o racismo do policial se configura claro na medida em que, no instante da ação, há diversos estudantes tentando dialogar com o “todo-poderoso” PM sobre o porquê da necessidade de retirá-los dali, mas ele escolhe para bode expiatório de sua truculência inveterada justamente o único negro no local.

Vale lembrar que, há pouco mais de dois meses, estudantes da USP ocuparam o prédio da reitoria para protestar contra a presença repressiva e autoritária da Polícia Militar nos campi da Universidade, entre outras reivindicações. O resultado todos sabem. Foram violentamente retirados do local por uma tropa de guerra da PM, após determinação da Justiça – poder constituído no qual a grande maioria dos seus componentes com poder de decisão (juízes, desembargadores e ministros do STJ e do STF) não pode nem ouvir falar em greves de trabalhadores e manifestações estudantis que se apressa a decretar atos dessa natureza como ilegais -, cumprida obedientemente à risca pelo governador tucano paulista Geraldo Alckmin e por seu fantoche na USP, o reitor João Grandino Rodas. 

Abrindo aqui um parêntese, à época da ocupação da reitoria pelos alunos, a mídia burguesa – capitaneada pela rede Globo, pela revista Veja e pelos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo – e a sociedade civil conservadora, sempre de plantão, prontíssima para defender os “valores da família e dos bons costumes”, alcunharam os estudantes de “baderneiros que só queriam fumar maconha no campus”, enfatizando que a PM lá era importante porque “manteria a ordem e a lei”.

A mesma mídia empresarial que defendeu a repressão policial na USP canta loas e  espetaculariza a invasão e ocupação, pela PM, com ajuda das Forças Armadas, de comunidades no Rio de Janeiro: as famigeradas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O que não é retratado por esta mesma imprensa é que há uma quantidade absurda de casos de moradores que estão tendo seu direito de ir e vir cerceado pelos policiais – e militares do Exército, em alguns locais -, além de serem comuns denúncias de agressão e violência gratuita (veja aqui). Ademais, ainda surge agora a recente campanha de “higienização” que a PM paulista promove no centro de São Paulo, na cracolândia, onde expulsa à revelia os adictos daquela região da cidade, e, ao mesmo tempo, se omite a auxiliá-los psicossocialmente. Fecha parêntese.

Passados pouco mais de dois meses do episódio da ocupação da reitoria da USP, o que se percebe, principalmente após a divulgação das recentes imagens que correm as redes sociais, é que os estudantes desde sempre estavam cobertos de razão: a Polícia não tem nenhum preparo para lidar com o movimento estudantil e com qualquer outro movimento social e sindical. Age com a mesma coerção e violência que se acostumou historicamente a tratar aqueles que cruzam seu caminho – claro, desde que estes que cruzem o seu caminho não sejam ricos e poderosos.

Como dito nas primeiras linhas desse texto, a instituição Polícia existe para manter o estado das coisas, deixar tudo do jeitinho que está: uma minoria rica em detrimento de uma maioria miserável; uns morando em mansões, outros em casas de taipa e papelão; uns com um número infindável de oportunidades e escolhas à sua frente, outros em que as únicas oportunidade que lhes aparecem é se conformar com o seu destino de miséria ou partir para o tudo ou nada através de uma saída que se mostra de braços abertos a recebê-los: o crime… que não é o creme!

Funciona dessa maneira o modus operandi policial: protege-se a elite, que os classifica como defensores da lei e da ordem, e criminaliza-se a pobreza e a raça negra. Se for pobre e preto, meu deus, é um criminoso em potencial. Mas aí, quando a Senzala, não mais aguentando ser mantida por tantos séculos à margem dos processos sociais, políticos, econômicos e educacionais do País, parte para o confronto – que não é nada mais do que consequência direta e anunciada de um sistema que exclui e desiguala por natureza -, quem está lá para defender a Casa Grande? Logicamente, a Polícia, que presta proteção fiel aos “sinhôzinhos” – que, ainda assim, se encastelam em suas casas grandes rodeadas de muros altos, cercas elétricas… e uma Ponto 40, engatilhada, guardada em cima do guarda-roupas, por via das dúvidas.

À parte essa simpatia toda para com os donos do poder e o olhar vulgar e atravessado aos herdeiros da Senzala, grande parte dos policiais ainda se empenha, disciplinados que são, em doutorar-se na “arte” de abarrotar os bolsos com extorsões e práticas de corrupção de toda ordem. “Comer o troco”, gíria para pegar dinheiro de extorsão, é linguajar comum entre os “puliça”.

Diante de todo o exposto acima, o mais preocupante é constatar que, apesar de todo o papel coercitivo e violento que a Polícia representa para a sociedade, esta, de tão anômala, não é sequer capaz de andar com as próprias pernas sem aquela seguradinha no ombro acolchoado do militar – vide o recente caso de um dia sem Polícia nas ruas de Fortaleza. O resultado desse condicionamento social é trágico: a anomalia da nossa sociedade, mergulhada num sistema desigual e alienador, que privilegia o dinheiro e, portanto, serve aos donos desse capital, casa perfeitamente com a função “social” de coerção e repressão que a Polícia desempenha. É isso o que vivemos! É isso o que queremos?

*Artur Pires é jornalista e e especialista em Docência do Ensino Superior.