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Cap. XII – Conheço você, moça…

Os dois chegaram a Tracunhaém num domingo de janeiro, meio do mês. Não se via na praça dos artesãos um rosto catando novidades no ano entrante; salvo meia dúzia de aposentados trocando uma prosa miúda, a praça estava deserta. Turistas de pele brancosa visitavam ateliês, lojas; pensavam que os artesãos, todos, viviam em comunhão com musas saídas do barro escavado, soprando curvas para cada modelo de santo.

Maújo e Chica não sabiam se portar como turistas; desajeitados, foram recebidos como vindos de outro Estado. A casa de Bibiu era um sobrado igual aos de Olinda, com janelas mouriscas, varanda apoiada em cantaria. Esculturas e quadros no pavimento de cima; o acesso, uma escada em caracol, degraus de madeira sobre três hastes de ferro, Bibiu tivera o cuidado de ocultar com pinturas de inspiração telúrica. O propósito era resguardar as pernas das mulheres que subiam e desciam de saia.

Uma mulher de meia idade, roupa florida, atendia a visitantes no pavimento de baixo; indicava a escada, e administrava com zelo de hotelaria um livro de presenças sobre um balcão com gravuras de santos; ali, quem saía, tinha que assinar e pôr a data da visita. No andar de cima, outra mulher, irmã da primeira, recebia pagamentos, dava trocos, conferia cheques.
No meio de estátuas, quadros, Chica portou-se como se estivesse vendo pela primeira vez a obra de Bibiu. Mostrou a Maújo a estátua de São Francisco onde o artista, truqueiro, escondia a liamba; as pombas rijas, presas nos ombros e braços da estátua, não tinham indícios de remoção recente nem cheiravam a cânhamo. O velho aposentara costumes e emoções fortes. Seus trabalhos, muitos já conhecidos de Chica, do tempo em que ela, inábil, enlameara o rosto no amanho do barro. Pusera de lado, ele, o uso da liamba, sentiu-se incapaz de moldar, riscar o traço de artista maduro; os braços se acanharam, quadros e esculturas mostravam linhas incertas, curvas imprecisas. Chica procurou o quarto dos fundos, onde se trancara com Bibiu, puxara o fumo e posara nua. A porta estava aberta. Sobre a velha bancada de trabalho, pincéis limpos ao lado de latas pequenas de tintas; no cavalete, uma tela em branco com pintas de mofo; estiletes, paletas, lâminas, espátulas, tudo lavado numa bacia de barro; costume do bruxo antes de descer para as refeições ou para dormir.

No lugar onde havia o sofá, nenhum outro móvel fora posto; só o biombo de tecido com quadrículas escocesas, onde ela tirara a roupa, agora lhe parecendo estranhamente transparente. Ela olhou para os quatro cantos do aposento velho; virou-se para trás, viu na parede frontal à dos fundos, um lençol amarelado, poeirento, cobrindo um quadro retangular. Descerrou o pano, viu seu corpo aos 19 anos de vida, capturado com precisão por Bibiu; para sua surpresa, não havia um rosto postiço, de dublê. Ele não resistira, achara que colar outro seria tirar o relevo do corpo que dera origem à tela; pusera um rosto estranho só para mostrar o quadro feito à modelo. Ela não distinguira diferenças; quando viajou sem promessas de volta, Bibiu apagou-o e pôs o de Chica. Traços vivos, como sua mente capturara. Apreciara-os toda noite antes de se deitar; depois, quando sentiu a marcha irreversível da doença, cobriu com um lençol com a recomendação de que não estava à venda.

– Não está à venda, senhora. Nem à visitação pública.

Chica ainda não se recuperara do susto quando a mulher, responsável pelas vendas, tocou em seu ombro para dizer que ela havia entrado no ateliê de trabalho de Bibiu, proibido a visitas, a estranhos.

– Desculpe!

Virou-se, saiu olhando para baixo; não queria ser reconhecida.

– Espere… Você é a moça que posou para Bibiu!

Chica segurou o lençol, recobriu a tela. A mulher ajudou-a puxando as pontas do pano para trás do quadro.

– Não sou eu. É um rosto parecido com o meu.

– Eu não me engano, moça. Quer ver Bibiu?

– Quero comprar essa tela. Diga-me o preço.

– Provavelmente será sua. Não será preciso pagar. Desça comigo, vamos ver Bibiu. Ele não fala, mas pisca os olhos quando concorda com o que falamos.

– Quem é a senhora? O que é dele?

– Eu e minha irmã somos suas sobrinhas. Administramos a exposição e as vendas. Uma enfermeira cuida dele o dia todo. Ele está lá embaixo, no quarto vizinho à cozinha. Espere na porta, do lado de fora. Eu digo que você está aqui. Se ele piscar concordando, abro a porta e você entra.

Bibiu recebeu Chica sem se mover; estava deitado com um ventilador ligado em sua direção, de lado, para o caso de necessidades; o pijama listrado estava babado na altura do tórax. Alimentava-se por um tubo externo, não o digestivo. Olhou-a com dois olhos inertes, o rosto inteiriçado, pálido, funéreo.

– Ela quer o quadro, Bibiu.

Ele piscou só uma vez, e deixou cair uma lágrima do olho mais próximo do travesseiro. Ela deu notícias da oficina, das beatas censurando suas estatuetas, do secretário, das ameaças; e da decisão favorável do Tribunal; não disse que agora tinha um parelho, par de teto, de cama; para quê? O velho estava mesmo no fim; morreria com a lembrança de tê-la visto nua, no sofá de veludo rutilante, com o véu branco de bordado cobrindo o seio tenro, o ventre ainda crescendo.

Um odor de vegetal cozido veio da cozinha. Bibiu pensou na fome que sentia à hora do almoço, do jantar; a memória juntou ao cheiro o odor de terra virgem que emanara do cânhamo que puxara com Francisca. Despediu-se, ela, com um beijo mudo em sua cabeça de fios ralos; subiu com Maújo, que ficara do lado de fora, para pegar a tela. Sugeriu que não visitassem mais ateliês ou lojas. Na viagem de volta, disse:

– Ele está morrendo.

Em casa Maújo propôs comerem uma moqueca.

– Não tenho fome.

A tela foi pendurada em frente à cama dos dois, na manhã seguinte. Toda a semana ela regou zelosa, como de regra, begônias, margaridas e açucenas. No domingo, depois de enfeitar os jarros do ateliê e da loja, comprou o jornal ao moleque de sua estima, leu o que esperava: Mal de Parkinson mata Bibiu.

Suspeitou do fluido homicida que sua visita levara; esperou a morte do amigo na resignação de seu juízo cabalístico. Quando o vira quase cadáver, não teve dúvidas de que era a derradeira visita. A intuição fora o aviso do orixá padrinho de artesãos, da iminente morte do mestre. O último suspiro, supunha, fora com saudades felizes. Bibiu cumprira o ofício com tolerância, morreu com a melancolia do desterro irreversível.

– Não está arrependida da viagem?

Maújo catava remorsos como se cata bicho-de-pé.

– Não. Bibiu só fez o que gostava. Não carregou arrependimentos. Foi feliz do seu jeito e ensinou aos mais novos. Não será mais esquecido.

Chica não pôs luto fechado nem aberto em suas roupas; pôs uma tarja preta, retangular, numa das duas portas de sua loja, a que se mantinha fechada. No portão da oficina, na casa da tia, também pôs tarja. Na segunda à noite, cozinhou feijão fradinho, assou inhame, dispôs em panela de barro com velas azuis; foi à beira-mar de Maria Farinha, depôs a oferenda a Ogum; não tirou a roupa para Maújo, nem acendeu a liamba; ficou dez minutos em pé, sem chinelos ou sapatos, olhando a oferenda.

Na volta, pediu para parar no primeiro boteco à beira da praia. Tomou cachaça em vez de daiquiri. Maújo bebeu cerveja, cismando seu futuro ao lado de Chica Dolores.

Dia seguinte, com o travo de cachaça na saliva, regou as plantas; regou com animação nos braços. Experimentou pela primeira vez mágoa, embrulhada num desejo de vingança contra a vidinha ordinária de toda a vizinhança. Ficou na oficina, não foi à loja. Só viu no outro dia que as lojas dos outros artesãos estavam de luto.