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Teoria: Gênero e emancipacionismo – o clamor da radicalidade

Neste artigo, publicado originalmente na revista Presença da Mulher,  Loreta Valadares (1943-2004) joga luz sobre a problemática do conceito de gênero e a teoria emancipacionista. Confira:

Loreta Valadares

Gênero e emancipacionismo – o clamor da radicalidade

Vai longe o tempo em que Simone de Beauvoir, ao iniciar sua famosa obra O Segundo Sexo, dizia ter “hesitado muito tempo em escrever um livro sobre a mulher” e perguntar-se “em verdade, haverá mulher?” e “que é uma mulher?” (1980:7).

No decorrer destes 50 anos de O Segundo Sexo, publicado pela primeira vez em 1949, na França, rompida a hesitação inicial pelo arrojo de Beauvoir e sua abordagem corajosa, muito se tem escrito e elaborado sobre a problemática da mulher. Ao pioneirismo de Beauvoir (sempre um marco na elaboração teórica, na tomada de consciência e nas práticas feministas), seguiu-se intenso debate teórico e político prático no processo de construção dinâmica do movimento feminista, resultando em uma pluralidade de correntes que, se, por um lado, enriquecem o feminismo dando-lhe vitalidade e força, por outro, às vezes colocam-no em estagnação, despindo-lhe de perspectiva e de crítica libertária. De todo modo, o que ressalta como fator mais importante é o desenvolvimento plural do feminismo, o que lhe tem permitido avançar na teoria e multiplicar as práticas na luta pela transformação das relações de gênero.

É no calor deste desenvolvimento que hoje se pode considerar como vitórias do movimento a incorporação da agenda feminista em uma miríade de organizações, governamentais e não-governamentais, a assimilação do conceito de gênero nas proposições políticas, no discurso político, as tentativas de elaboração de políticas públicas sob a ótica de gênero, a realização de inúmeras conferências internacionais, das quais se destaca a IV Conferência Mundial, com sua Plataforma Beijing 95, compromisso firmado, em meio à intensa luta, pelos governos ali presentes, e ratificado por inúmeros países, inclusive o Brasil.

É assim que se têm generalizado projetos de cotas no poder, programas por igualdade de oportunidades, leis de proteção ao trabalho da mulher, planos contra a mortalidade materna e pela saúde integral da mulher, entre outros. São importantes conquistas que não se pode deixar de reconhecer, mas que encerram em si riscos não desprezíveis, como a institucionalização do feminismo e seu aprisionamento organizacional, a cooptação governamental, ao tempo em que as práticas e a implementação de programas firmados guardam limites impossíveis de ultrapassar nos marcos do modelo neoliberal, em franca e vertiginosa aplicação no mundo. Em nome da globalização, conquistas retrocedem, leis não são aplicadas, compromissos firmados são violados.

Como todo o movimento, sujeito a vitórias e derrotas, percorrendo caminhos e descaminhos, em marcha plana ou saltando obstáculos, o feminismo alcança encruzilhadas em que, como Ariadne, precisa puxar o fio para não perder o rumo.

E do emaranhado das teias que tecem o feminismo, o fio a ser puxado, desde sua gênese, é o da radicalidade. Radicalidade que se pode resgatar em Beauvoir, ainda que suas ideias, por seu viés unilateral, se tenham desenvolvido de modo a colocar barreiras quase intransponíveis entre o feminismo e o marxismo e, em suas concepções, se encontrem limites de tempos e espaços. Radicalidade engendrada na essência mesma do caráter da opressão da mulher na sociedade. Radicalidade que se encontra nas ideias dos primeiros que, elaborando o materialismo histórico como teoria do processo de desenvolvimento da sociedade, deslindam o nó que amarra a mulher em sua condição de subalternidade e desvendam o caráter de sua opressão.

São Marx e Engels estes desbravadores e não é ao azar que sua visão ainda hoje se coloca como centro polarizador do debate feminista.

Nada mais revolucionário do que a formulação posta por Engels em 1884, quando, ao citar d’A Ideologia Alemã (texto escrito com Marx em 1846) a ideia segundo a qual “a primeira divisão do trabalho é a que se faz entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”, diz em A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado: “(…) hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes com a do sexo feminino pelo masculino” (1973:168).

E é exatamente a descoberta desta coincidência histórica que joga por terra o essencial das críticas de pensadoras feministas ao “reducionismo econômico” do marxismo que negaria a opressão de gênero por embuti-la no conflito de classes: ao contrário aqui o que se tem a destacar é que Marx e Engels “atribuem o mesmo peso teórico ao conceito de classe social e ao conceito de ‘opressão do sexo feminino pelo masculino’ ou, como se diria hoje, relações de gênero” (Rangel e Sorrentino, 1994:47).

Ainda, sempre é bom relembrar que às críticas ao “reducionismo economicista” do marxismo, Engels, em Carta a Bloch, responde de forma límpida e direta à questão: “(…) segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fator econômico é o único fator determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda” (Engels s/d: 285). A mesmo tempo, também atribui o mesmo status aos conceitos de produção e reprodução.

É bem verdade que Marx e Engels “concentram seus esforços na análise do mundo do trabalho, das relações de produção” (Rangel e Sorrentino, 1994:48), não desenvolvendo as categorias e os conceitos de modo a permitir uma análise mais geral e mais profunda sobre a condição de opressão da mulher, seu papel na história e na sociedade.

No desenrolar de sua trajetória desde os tempos de Beauvoir, o feminismo avançou: elaborou conceitos, diversificou práticas, rompeu preconceitos, chegando a conquistar espaço como interlocutor da sociedade civil, em todos os seus terrenos: cultural, social, sindical, estudantil, acadêmico, além de estabelecer relações diálogo/luta com os governos. Como este não pretende ser um texto sobre a história do feminismo, e dos diversos feminismos, se não que tão somente assinalar os avanços feministas na formulação teórica partindo do ponto de vista marxista, queremos destacar a formulação da importante categoria gênero, como ferramenta de análise na ciência social e colocar-nos ao lado das feministas marxistas, sem perder de vista a amplitude e a diversidade do movimento feminista.

Seja para situar-se no curso do movimento feminista e enfrentar as diversas concepções em luta, colocando-se em oposição ao viés sexista da questão de gênero, seja para combater o feminismo reformista burguês “que limita as conquistas no patamar das desigualdades legais” (Moraes, 1989:188), seja, enfim, para encarar o desafio de tentar contribuir na identificação de lacunas e avançar na formulação do ponto de vista marxista sobre a questão de gênero, surge o feminismo emancipacionista, que visa a tão somente puxar o fio da radicalidade até o patamar da transformação da sociedade e continuar puxando até o processo de construção de uma nova, em todas as suas etapas, enquanto persistir a força estrutural/cultural da opressão de gênero.

Em que bases teóricas, então, se situa o feminismo emancipacionista? (sem ordem hierárquica):

– Na compreensão de que à divisão sexual do trabalho entrelaça-se a divisão social do trabalho e que mulheres e homens irão participar de modo desigual da produção e da reprodução;

– no entendimento de que a opressão de classes interliga-se com a opressão de sexo, coincidindo historicamente e se desenvolvendo entrelaçadas no decorrer da história. A elas entrelaça-se a opressão de raça;

– na visão de que o gênero passa a ser construído alocando atributos culturais às distinções de sexo, estabelecendo um sistema de valores e práticas que vão criar uma distinção do feminino em relação ao masculino;

– na formulação do ponto de vista de que, ao surgir entrelaçado com a opressão de classes, este sistema irá impregnar os espaços sociais, as instâncias políticas, as formas culturais, entendendo, assim, que as relações desiguais de gênero se dão em todas as esferas da sociedade fundada nas relações desiguais de classe;

– no estabelecimento da ótica segundo a qual a opressão de gênero tem bases estruturais, mas se constrói culturalmente, adquirindo, portanto, relativa independência, passando a interagir, de maneira própria, com a opressão de classes e as demais formas de opressão da sociedade, como a de raça, por exemplo;

– na compreensão da necessidade de que a luta contra a opressão de gênero se insere na luta contra todos os elos de opressão e pela conquista de uma sociedade radicalmente nova, sem discriminação de sexo/gênero, de raça e de classe;

– no significado da radicalidade da luta de gênero visando a romper tanto o elo estrutural, levando-a para a luta de emancipação social, como o elo cultural, percorrendo caminhos próprios nas diversas esferas da sociedade;

– enfim, na afirmação da ideia de que, mesmo tendo sido derrotado em sua primeira experiência histórica, o socialismo é, ainda, o único projeto capaz de abrir passagem ao processo que vise ao fim das discriminações de gênero, de raça e de classe, entendendo-se o campo de luta em três frentes, sendo a de classes a mais abrangente.

Por concisa que seja esta sistematização das bases do feminismo emancipacionista (extraída de Valadares, 1998: 40, 41, 42), ela não deve ser vista de forma esquemática. Assim como não há modelo de revolução, não há tampouco modelo de emancipação da mulher. Há que se levar em conta as condições históricas, o grau de desenvolvimento da sociedade, as condições objetivas da luta de classes, o nível de luta contra a opressão de gênero. No entanto, queremos reafirmar aqui que nossa concepção da luta de gênero tem bases históricas, busca desenvolvê-la teoricamente sob a ótica do marxismo e enfatiza sua realização prática na luta revolucionária pela transformação de toda a sociedade até a construção de uma outra, socialista, sem qualquer tipo de opressão.

Não será fácil uma luta desse tipo. A força estrutural/cultural da opressão de gênero será, certamente, sentida em todo o processo de construção do socialismo. Assim, não pode ser formal a garantia de igualdade nas relações de gênero. Serão necessárias medidas concretas que retirem do confinamento privado a “economia doméstica”, redimensionem o papel da mulher na produção (“o trabalho tem dois sexos”), estabeleçam a função social da reprodução, ao tempo em que promovam real participação política da mulher em todas as esferas do poder (Valadares, 1998:42).

Ao feminismo emancipacionista urge enfatizar a luta ideológica sobre o real caráter da opressão de gênero e concentrar seus esforços no chamamento às ações concretas de luta em todos os terrenos da sociedade perpassada pelo gênero.

* Loreta Valadares (1945-2004) era professora aposentada de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia e membro do Conselho da União Brasileira de Mulheres (UBM).

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo, Nova Fronteira, Fio, 1980.
ENGELS, F. El Origen de La Familia, La Propriedad Privada y La Sociedad, Editorial Cartago, Buenos Aires, 1973.
__________. “Carta a Bloch”, in: Obras Escolhidas, vol. III, Alfa-Ômega, SP s/d.
MORAES, Jô. “A Luta pela Emancipação da Mulher”, in: A Política Revolucionária do PCdoB, Anita Garibaldi, SP, 1989.
RANGEL, Olívia & SORRENTINO, Sara. “Gênero: Conceito Histórico”, in: Princípios , n. 33, Anita Garibaldi, SP, 1994.
VALADARES, Loreta. “A Visibilidade do Invisível”, in: Presença da Mulher, n. 31, Anita Garibaldi, SP, 1998.