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Ditadura: investigações podem levar militares ao banco dos réus

No esforço de investigar violações cometidas no regime militar (1964-1985) sem esbarrar nos limites impostos pela Lei da Anistia, o grupo de trabalho “Justiça de Transição”, composto por procuradores da República, deverá trabalhar com a tese dos crimes permanentes, como a ocultação de cadáveres.

A interpretação do grupo, explicou o procurador da República Ivan Cláudio Marx (Uruguaiana), é de que os responsáveis pelo sequestro e desaparecimento das vítimas do regime, ao se negarem a fornecer o paradeiro dos corpos, continuam praticando o crime de ocultação até hoje.

A tese pode ajudar no esclarecimento de crimes que há décadas estão sem resposta. De acordo com o livro “Direito à memória e à verdade”, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos do governo Lula, 475 pessoas morreram ou desapareceram por motivos políticos naquele período. Oficialmente, cerca de 140 pessoas ainda continuam desaparecidas — o que sustenta o argumento de que os crimes de ocultação de cadáver ainda persistem.

Desde esta segunda-feira (12), integrantes do grupo estão reunidos em Brasília, para definir estratégias de apuração. Uma delas é a abertura de procedimentos investigatórios criminais, em vez de inquéritos, para os casos de violação. Como o procedimento é uma etapa inicial, conduzida internamente pelo Ministério Público Federal, sem a participação da autoridade policial, os procuradores entendem que a investigação fica menos exposta a eventual pedido de trancamento.

Desaparecimentos no Rio

No Rio, o Ministério Público Federal quer investigar, a partir dessa teoria, os casos de quatro desaparecidos políticos: Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, militante da VAR Palmares – o único procedimento já aberto -, Stuart Edgard Angel Jones (MR 8), Mário Alves (PCBR) e o deputado cassado Rubens Paiva. Criado em novembro do ano passado, com objetivo dar uma resposta à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil por violações na Guerrilha do Araguaia, o grupo mobiliza procuradores da República do Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Pará. Coordenador do projeto, Ivan Cláudio disse que os participantes ouviram nesta segunda-feira doutrinadores das universidades americanas de Stanford e Harvard para saber o que pensam dos crimes imprescritíveis (quando nunca se esgota a possibilidade de punição dos responsáveis).

O promotor de Justiça Militar Otávio Bravo, responsável pela abertura de investigações sobre 29 casos de desaparecimento no Rio, disse que o trabalho dos colegas do MP Federal não atrapalha o andamento das suas apurações. Se constatar que os sequestros terminaram antes de 15 de agosto de 1979 (data da Lei da Anistia) com a morte das vítimas, ele reconhecerá a prescrição dos casos, mas encaminhará tudo aos procuradores da República, que têm atribuição para investigar ocultação de cadáver.

“É talvez a única possibilidade de ver um militar sentado no banco dos réus”.

Crimes em Minas

O Ministério Público Federal em Minas está investigando casos de mortes ocorridas no Estado cometidas por agentes do governo durante a ditadura. A procuradora dos Direitos do Cidadão Silmara Goulart, que atua em Belo Horizonte, já instaurou inquéritos civis públicos relacionados a seis casos. Foram cinco mortes ocorridas entre 1969 e 1979 e um desaparecimento em 1975.

O objetivo é apurar as circunstâncias em que os crimes ocorreram e apontar ou não a responsabilidade civil de agentes e órgãos de governo nos casos. De início, a procuradora não vai atentar para aspectos criminais. O MPF fala na importância do restabelecimento da verdade. Mas após as investigações, o órgão vai avaliar se haverá a possibilidade de propor ações penais contra os responsáveis.

A iniciativa da investigação foi tomada após a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão em Brasília ter enviado às procuradorias de cada Estado em 2008 nomes de mortos ou desaparecidos citados no livro "Direito à Memória e à Verdade". O livro foi publicado em 2007 com a chancela da Presidência.

Silmara dedica-se aos casos ocorridos em Belo Horizonte e região metropolitana. Os demais estão com outros procuradores do Estado. Alguns já foram arquivados.

Investigações

As investigações estão mais avançadas em dois casos: o do ex-sargento da Aeronáutica João Lucas Alves, que se juntou ao Comando de Libertação Nacional (Colina) e foi acusado de participação em ações armadas em Belo Horizonte e Rio em 1968. Entre eles do assassinato de um militar alemão no Rio confundido com o oficial boliviano que matara Che Guevara. Em 1969, autoridades anunciaram que Alves se suicidara numa delegacia em Belo Horizonte — versão contestada pela família e por companheiros de prisão.

O outro caso cujas investigações estão adiantadas é a do desaparecimento de Nestor Veras em 1975. Veras era militante do PCB. Nascido em Ribeirão Preto (SP), tinha 60 anos quando sumiu, segundo depoimentos, na capital mineira.

Os demais inquéritos referem-se às mortes de Carlos Antunes da Silva, acusado de organizar o chamado Grupo dos Onze em Mariana; de Lucimar Brandão Guimarães, ex-militante do PCB e depois da Var-Palmares — mesmo grupo do qual participou a presidente Dilma Rousseff; e de Therezinha Viana de Assis, que teria sido integrante da Ação Popular, e que acabou supostamente cometendo suicídio em decorrência dos traumas provocados pela tortura em Belo Horizonte.

O único caso que não se refere a um militante de grupos contrários ao regime é o do tratorista Orocílio Martins Gonçalves, morto a bala durante uma passeata de trabalhadores da construção civil em Belo Horizonte em 1979.

O MPF se baseia por enquanto na lista do "Direito à Memória". Mas a Comissão da Verdade da OAB de Minas e o Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania estão preparando uma relação adicional de casos.

Fonte: O Globo e Valor Econômico