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Saramago e as paredes de cristal do salazarismo

Comunista e crítico feroz da ditadura e suas misérias, José Saramago não se deu ao luxo do descanso nem no túmulo. Dois anos após sua morte, o Prêmio Nobel de Literatura volta a ser notícia com a descoberta de um romance perdido: Claraboia. A obra, publicada no Brasil em novembro de 2011, está sendo lançada também na Espanha e Portugal. Não só: está prevista nova publicação de inédito do autor no final de 2012.

Por Christiane Marcondes

Claraboia

Saramago figura entre os escritores latinos mais lidos na América do Sul e no Caribe. Antes e depois de haver recebido o prêmio Nobel de Literatura, editoras cubanas e brasileiras imprimiram muitas de suas obras.

Escrito nos anos 1950, Claraboia sofreu censura por apresentar críticas ao regime ditatorial de Antonio de Oliveira Salazar. A editora portuguesa que recebeu os originais decidiu não publicar o texto por considerá-lo “duro e transgressor” para a época. Portugal vivia a ditadura salazarista e muitos de seus cidadãos, como Saramago, estavam enfrentando desde a clandestinidade ao exílio, além da repressão e violência policial.

A via-sacra de um manuscrito

O romance de Saramago sataniza em cerca de 300 páginas as convenções sociais e políticas dos anos 1950. A publicação póstuma atende a um desejo do escritor, que queria que o conteúdo de Claraboia fosse levado ao público após sua morte.

Sabe-se que o manuscrito foi entregue a um amigo em 1953. Esse o levou a uma editora, que deixou Saramago sem resposta até 1989, quando finalmente houve um contato, relatando que o livro havia sido encontrado durante uma mudança de suas instalações.

A primeira novela de Saramago, Terra de Pecado, havia sido publicada em 1947, e recebeu tanta crítica e indiferença que o autor não voltou a escrever outro livro durante 20 anos, segundo declarou sua viúva, Pilar del Río.

Pilar disse que Saramago chamava Claraboia de "livro perdido e achado no tempo", do qual lhe mostrou uns cadernos com as anotações que fazia enquanto escrevia a novela, bem como o manuscrito original da obra e o recuperado, enviado à editora.

Uma luz inventada

Em 1952, ano em que escreveu o livro, Saramago tinha pouco mais de 30 anos, já estava casado e tinha uma filha. O autor enfrentava, então, grandes dificuldades econômicas e não tinha a quem recorrer, pois seu pai e avô integravam as filas de dezenas de milhares de portugueses analfabetos.

Sensibilizado pela situação particular e social, o autor recorreu a metáforas e ao realismo fantástico para criar o enredo do romance, no qual há um narrador que penetra pela claraboia de um velho edifício nas proximidades de Lisboa e converte em paredes de cristal toda a estrutura do imóvel, recriando no cenário inusitado as penúrias e a opressão reinantes.

É um livro no qual a família, pilar da sociedade, se apresenta como “um ninho de víboras” no qual há violação, amores lésbicos e maus tratos, segundo indica a apresentação da obra.

Saramago em Cuba

Defensor da Revolução Cubana em todas as tribunas, Saramago sentia orgulho por ter integrado as fileiras do Partido Comunista Português desde sua etapa clandestina e, depois, ter se incorporado à Revolução dos Cravos de 1974, movimento de militares e forças de esquerda que reinstalou a democracia no país lusitano.

Agora, a fim de ressaltar sua imortalidade nas letras, anuncia-se a publicação no final de 2012 de outra obra inédita: Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. O título faz referência a  versos do poeta e dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536). A novela denuncia o armamentismo e o tráfico de armas no mundo.

Claraboia – sinopse

O romance se passa em Lisboa de meados do século 20. Num prédio existente em zona popular não identificada, vivem seis famílias. No térreo, moram um sapateiro com esposa e um caixeiro-viajante casado com uma galega e com um filho; um empregado da tipografia de um jornal com esposa e uma mulher solteira residem no 1º andar; uma família de quatro mulheres (duas irmãs e as duas filhas de uma delas) e outra formada por um empregado de escritório com esposa e filha adolescente residem no 2º andar.

A história tem início com uma conversa matinal entre o sapateiro, Silvestre, e a mulher, Mariana, que discutem a conveniência, ou não, de alugar um quarto que têm vago e, assim, conseguirem obter algum rendimento extra.

A conversa segue, o dia vai nascendo, a vida no prédio recomeça e o romance avança revelando ao leitor as vidas daquelas seis famílias da pequena burguesia lisboeta: os seus dramas pessoais e familiares, a estreiteza das suas vidas, as suas frustrações e pequenas misérias, materiais e morais.

O sapateiro acaba alugando o quarto vago para Abel Nogueira, personagem que incorpora as questões sociopolíticas e existenciais do autor, dando voz a um diálogo com Fernando Pessoa que, 30 anos depois, viria a ser o tema central do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis: “Podemos nos manter alheios ao mundo que nos rodeia? Não teremos o dever de intervir no mundo porque somos dele parte integrante?”

Claraboia: trecho ( versão em português de Portugal)

“Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de louça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rigidamente as articulações dos braços. Por baixo do camisolão, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia enfiar-se nela, sem sangrar, uma agulha.

Num movimento mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe.

Contemplando com desalento os pés descalços pousados no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas, em cuecas, o emaranhado dos cabelos enbranquecidos, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam.

Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou:

– Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças?
(Voz de dentro)

– Já lá vai!

Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa.

Silvestre teve de esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
– Estão aqui.

Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:

– Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho de passar a pregá-los com arame…

A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona.”