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Cap. XVIII – Grite, peça ajuda a Ogum

– Minha barriga vai crescer. Logo vou ficar pesada. Quero agradecer. Venha comigo. Dois meses prenha, quis entregar o último […]

– Minha barriga vai crescer. Logo vou ficar pesada. Quero agradecer. Venha comigo.

Dois meses prenha, quis entregar o último donativo do ano a Ogum; imaginou uma cerimônia com pompas, cortejo de negras, fragrância de lírios. As luzes do salão iluminando os cantos, suas pálpebras suadas, brilhosas. Dois círios enormes, acesos, um de cada lado da estátua do guerreiro. No altar, rodelas maciças de inhame, feijão preto em abundância na gamela de barro. Nas paredes, estamparias azuis, tecidos e papel. Na noite de uma terça-feira.

Ele não quis. Puxou-o pelo braço, insistiu. Mas lembrou-se, ele, da promessa que fizera, de acompanhá-la em cerimônia de homenagens. Cedeu, rendido à lembrança de quando a vira sob a hipnose.

Na casa da tia, trocaram-se. Ele pôs uma calça branca, camisa de seda azul e uma rodilha de pano na cabeça zonza. Ela saiu na frente. Pôs a cabeça de fora, ele. Ninguém o conhecia no largo do Amparo. Beneficiou-se do horário da novela, prendendo a atenção da vizinhança. Evitaram a ladeira da Misericórdia, subiram pela rua Saldanha Marinho, onde não o veriam com os trajes novos.

Chica paramentou-se num aposento dos fundos. Os bombos rugiram. O babalorixá cantou. As negras fizeram a roda, balançando panos, longas tranças nas cabeças. Descalça, escondeu no vestido solto os dois meses de prenhez. Não pusera panos na cabeça, só um véu azul, fino, na mão direita. Os cabelos, lavados, secaram com o calor.

Não demorou e soltou bufidos pelas narinas, urrando na garganta; foi para o meio do salão, empurrada com jeito pelas negras.

O pai-de-santo, pretas, hogãs, filhas e netas de pretas, repetiram a saudação:

– Emi Neji Ogum Lacae!

Chica, grunhindo sons arrevesados. Maújo, observando de um canto, repetiu as duas últimas locuções. Não se encostara na parede para não parecer estranho, juntou-se à vozearia. Ela bateu no chão com a sola dos pés, subiu uma poeira fina sob seu vestido; segurou o pano como um estandarte, rodopiando. Rolou feito uma trouxa nos braços das negras. O pai-de-santo, para manter a lisura do rito, vistoriou com os passos o núcleo dançante. Ao fim de cada saudação, ordenava novo toque de tambores.

Ogum, inquieto senhor de guerras, devia ser chamado só uma vez em toda a noite. Sons de guerra, gritos de confronto. Chamado mais de uma vez, se não lhe pedissem ajuda, arremeteria contra o próprio filho. Chica sacudiu-se como se estivesse no meio de um tumulto de capoeiristas. Ogum mostrou força, urrando desafios, exigindo submissão. As negras, à sua passagem, curvavam-se. Chica foi ao altar, pegou um punhado de feijão preto, abocanhou-o; engoliu-o sem mastigar, olhos chorosos, rosto incendido. Os bombos repicando.

O rito teve fim às dez da noite. Um banquete fora preparado, para depois da cerimônia. Mesa para doze pares, a nata do candomblé. O babalorixá, à moda de discurso, deu as boas-vindas, reiterando o compadrio na comuna. No fim, disse que a prenhez de Chiquinha seria protegida pela espada de Ogum.

– Emi Neji Ogum Lacae! – gritaram negras ufanas.

Comeram por duas horas, em pratos de argila lisa, colheres de madeira. Feijão-fradinho, arroz branco, batatas e vagens cozidas, farinha d’água, carapebas assadas. Cervejas, muitas cervejas.

Com as barrigas cheias, a vozearia afrouxou.

Chica e Maújo, cansados, com sono, despediram-se agradecendo. As negras recomendaram chás, rezaria.

– Nem precisa dizer. Tá na alma do filho de Ogum.

Quando passaram pela cortina da porta de saída, não ouviram quando o pai-de-santo disse à negra de seu lado:

– Ninguém segura uma filha de Ogum. Chiquinha é mulher, mas tem cabeça de homem; gosta de liberdade, não quer ninguém de seu lado para lhe dizer o que deve fazer. Tomara que dê certo.

– Se ele for filho de Oxumarê… – arriscou a negra.

Teria, Maújo, muitas escolhas para não pôr em risco o compromisso com Chica. Orixás corteses, cobiçosos de oferendas. Chica imaginou-os nas ladeiras com Maújo no meio, com cacaréus de variada ordem.

Os dois fizeram o mesmo caminho de volta. Chica com a roupa que rodopiara. Ele coberto de suor, confuso, zonzo. Quando fora católico, aprendera a rezar, ajudara missas; paramentara-se de vermelho e branco, crendo-se com asas de anjo nas costas. O celebrante, pronunciando um latim sonoro, confortara-o no sonho de se tornar sacerdote. O sonho durou três anos, no escuro do dormitório dos alunos internos, no deslize da mão no corrimão de mármore. Fora flagrado na horta com mais dois, ocultos na base de uma cova comprida, com talos de macaxeira. Com estilingue, atiraram nos pombos para assar numa fogueira clandestina. O padre alemão, feição dura, sentenciou-os a ficar um mês em pé, movendo-se sem sair do lugar, no horário do recreio. Leu um evangelho de bolso, com liberdade para a escolha de profeta. Escolheu São Mateus por ter o nome Levi, o ídolo do clube. Folheou as páginas sem ler, contando os capítulos. Alemão escroto! Comedor de chucrutes! Rezou, Maújo, no escuro do relicário, para o alemão se apiedar, tornar nula a sentença. Dia seguinte, em pé, em frente à coluna circular. A aula de religião tornou-se tediosa. Não ajudou mais a missa, sentiu-se excomungado.

Até embuçar, de volta para casa, Maújo freqüentou o cabaré de putas; esqueceu a pouca reza que aprendera.

Agora, descendo a ladeira da Misericórdia, vestido de filho de Ogum, absolveu-o o fato de ser a divindade protetora de guerrilheiros diversos, arteiros de emboscadas. Ogum, seu congênere passional, insofrido no sexo. Banharam-se nos fundos da oficina, com a água fria da caixa, a mesma que Chica usava para amolecer a terracota. Sob o sapotizeiro, na luz difusa entre os galhos, abrigaram a nudez. Apreciou a barriga da parelha, de sua autoria, igual ao tronco de macaibeira brava; sem espinhos, com lanugem eriçada no contato de seus dedos.

Abespinhou-se, agarrou-a por trás, dobrou-a na nuca. Ela apoiou o corpo com os braços na parede, a cabeça sob o jorro da água gelada. Espetou-a até fartar-se.

– Grite! Peça por ajuda a Ogum!

– Ogum me protege, mesmo eu sendo empalada por você.

– Ogum chegou primeiro, mas não foi o mais esperto.

Acima, os morcegos estrilando.