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Amanhã nunca mais: o racismo como tema

Suspense-comédia do diretor Tadeu Jungle mostra a realidade brasileira encenada na capital paulista com raro brilhantismo.

Por Marcos Aurélio Ruy*

O filme “Amanhã Nunca Mais”, que marca a estreia de Tadeu Jungle na telona, aborda as transformações ocorridas no Brasil nos últimos anos.

Trata de acontecimentos corriqueiros como crise conjugal, racismo, assédio moral no trabalho, exploração do trabalho alienado e, assim, torna-se universal ao abordar de reflexões humanas sobre passado, presente e futuro, e de como cada indivíduo reage aos acontecimentos.

Pretende mostrar que nos fazem acreditar que os problemas são individuais, e dividem a sociedade entre fracassados e vitoriosos quando, na verdade, a sociedade capitalista nos impele ao fracasso se não nos adequamos ao esquema pré-determinado.

Muito provavelmente, por sua característica pouco palatável ao público mais acostumado ao padrão hollywoodiano, a mídia não tenha dado a devida atenção a essa obra que reflete sobre a sociedade, influenciada pelo Cinema Novo, com temática voltada para os problemas nacionais e, além de tudo, encara o racismo brasileiro.

Com um elenco afinado com especial destaque pra Milhem Cortaz, Maria Luiz Mendonça e especialmente pra o protagonista Lázaro Ramos.

A trama prende a atenção do começo ao fim. Ficamos quase sem piscar os olhos tamanha a tensão.

O racismo

Walter (Lázaro Ramos) é um médico-anestesista negro sempre com o olhar no chão, humilhado no trabalho, meio ignorado pela mulher e pela sogra, enfim o protótipo do fraco que não consegue se desvencilhar daquilo que os outros querem que ele faça, simplesmente por não conseguir dizer um simples não. Por ser negro, Walter não é respeitado como médico; várias vezes perguntam se ele é enfermeiro. E nem o porteiro do hospital onde trabalha o trata de doutor, justamente porque num país racista como o Brasil negro tem que conhecer “o seu lugar”.

Mas Jungle encaminha a trama de forma a mostrar que as coisas têm evoluído e mudado. O protagonista sofre uma metamorfose inversa à do conhecido livro de Franz Kafka; vai deixando de ser “inseto” para se transforma em homem. Tirar os olhos do chão e encarar a vida de cabeça erguida e olhos voltados para o amanhã. Somente assim ele consegue encarar a própria esposa e falar sorrindo “vamos para casa”.

A película evita o niilismo muito em voga em obras perplexas com a nova situação vivida pelo país porque propõe a transformação do personagem como protagonista da transformação social de uma nação que vai se colocando de pé, de dez anos para cá.

Uma cena deixa muito evidente o tema central da trama; Walter se envolve num acidente de trânsito com um motoboy, que cai machucado e ele o socorre. Uma velhinha moradora da rua onde aconteceu o acidente se aproxima para saber o que ocorria; olha Walter e diz – “Você é preto!”, espantada. Ele responde – “É sou”. Vendo o motoboy caído, diz – “Você também é preto”, espantada, como se vivesse na Suíça.

Quase surreal

O espectador é convidado a acompanhar a transformação sofrida pelo protagonista a duras penas, ilustrada por exemplo numa situação em que resolve sair mais cedo do trabalho para buscar o bolo para a festa de aniversário da filha.

Aí começam seus problemas. Fatos surreais acontecem nesse percurso de busca de um simples bolo, numa conturbada metrópole como São Paulo, onde prevalece o cada um por si.
As pedras no caminho de Walter vão se interpondo uma após outra, com o surgimento de personagens estranhos e, como não poderia deixar de ser, cada um voltado para o próprio umbigo. Walter também é um pouco assim, mas não consegue omitir socorro ao motoboy acidentado que, ao atravessar o semáforo vermelho, foi abalroado por seu carro; depois ao pedir uma informação num posto de gasolina, dá carona a um travesti e, preso no trânsito, fica sem gasolina. Quando se pensa que as pedras acabaram começa a chover e entra em cena Meg (Maria Luiza Mendonça). Ela pega seu celular, mente para a mulher dele e o leva ao casamento de seu ex-noivo, tentando prendê-lo de todas as maneiras. É o momento em que a transformação do personagem se acentua de forma mais contundente.

Ele vai crescendo e se revoltando com a sua própria incapacidade de reagir à opressão; quando consegue, finalmente, chegar em casa e a encontra vazia, é a gota d’água. Percebe que “não dá mais pra segurar” e “explode coração”, como diria Gonzaguinha. Walter dá uma total reviravolta e, de modo inesperado, passa a impor-se no trabalho. Ou vai buscar a mulher na casa da sogra, decidido como nunca ocorrera antes.

A vida recomeça e o amanhã promete novos tempos. “Amanhã Nunca Mais” é uma crença na infinita capacidade humana de superar-se e transformar o mundo. Quem deseja assisti-lo deve correr à locadora pois o filme ficou curtíssimo tempo em cartaz, e pode sumir das locadoras. Coisas que praticamente só acontecem com filmes nacionais no Brasil.

*Colaborador do Vermelho

Vídeo da música-tema:


Trailer oficial do filme: