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Cap. XIX – Em vez do secretário…

Mais dois foliões em gozo absoluto de cidadania, sem pipocas nem roletes de cana-caiana. Carnaval. Caetano e Gertrude assumiram o conúbio na rua.

Os dois casais encontraram-se na noite do sábado gordo. A multidão ocupara a Praça de São Pedro. Caetano e Gertrude, espremidos numa das palmeiras na frente da igreja. Ele abjurara a calça jeans, a camisa da mesma cor, de quando subiram a ladeira de São Francisco; abjurara a quietude conventual do pátio do seminário. Caetano usava bermuda jeans, branca, com franjas esfiapadas; camisas sem mangas, os sovacos de fora. Ela fizera autocrítica do vestido com quatro dedos abaixo dos joelhos, usava bermuda de comprimento médio, no meio das coxas, descosida em cada um dos lados; camisa de meia florada, transparente, o sutiã cor-de-rosa, basto nos seios pequenos; cabelos amarrados a partir da testa, numa tira índia. As mãos soltas para encenar, parir cenas novas. O sorriso mostrou a boca pequena, de dentes cerrados, amarelados na borra do cigarro de palha.

Chica os vira primeiro, puxou Maújo pelo braço, subindo a praça. Abraçou pela primeira vez a ex-parelha de Maújo.

– Já que nos cruzamos, por que não brindamos? – propôs Maújo.

Desceram para o Maconhão. Falavam alto como numa passeata. A desordem das ruas era o desrespeito à norma do silêncio imposto durante o ano. A criatividade individual, reprimida, dando mostras com arremedos de inteligência. O estandarte de um bloco era uma porta sem tintas, sem trincos; na superfície deitada nos ombros de quatro moços, uma mulher se equilibrava no ritmo do frevo. Tirou a blusa, sacudindo os peitos de bicos para cima. Delírio. Seminua, no rito de sagração de homens e mulheres supostamente livres. Gertrude, Caetano e Maújo, educados na corporação oculta, lamentando a cegueira do povo. A energia sediciosa da multidão escorrendo para o esgoto.

O mesmo garçom os atendeu, sorriu com as piadas de Maújo. Confessou-lhes que um polícia o instruíra a ficar com o ouvido atento ao zumbido de subversivos, ao tráfico.

– Podemos tê-lo como um aliado – disse Maújo, depois.

Gertrude torceu o nariz, não se rendera de vez…

– Não acredito que seja bravateiro. Não leva jeito de dedo-duro, é muito simples – emendou ele.

Chica, ouvindo como se já fosse da corporação; ouviu sem interesse, com familiaridade sem dar palpites. Não disse nada, só protegendo a barriga com os braços cruzados. Pensou nas begônias, no jardim de seu cultivo. O outeiro, a praça, tudo fora ocupado por foliões cegos, brutos, dóceis. Uma romaria de bêbados subindo, descendo, apoiando-se no cruzeiro, escorrendo mijos na vegetação.
Quisera falar com o guarda, mas também o guarda se distraíra no motim dos seminus. Encostou a cabeça no ombro de Maújo, insubmissa, conformada.

O garçom trouxe-lhes agulhas fritas brancas, sem carrego danoso a fêmeas prenhas; agulhas cobertas com folhas de alecrim-de-cheiro.

– Onde ele mora? – perguntou Gertrude.

– No largo do Bonsucesso. Conhece todos os maracatus. Pode ser útil para nós – adiantou Maújo.

– Mantenha-o em banho-maria. Se for recrutado por um de nós, vai deduzir que somos todos de uma mesma matriz – advertiu Caetano.

Não custou a Gertrude intervir:

– Deve ser mantido a distância, como amigo, para se saber até que ponto conhece os propósitos dos tiras. Pode ser que tiremos proveito das informações…

A maquinação dos três foi seguida por mais daiquiris, mais agulhas para a barriga de Chica. Chica, àquela altura, convencera-se de que, breve, Maújo lhe revelaria o que os unia além da amizade. Os três não se pouparam na frente dela.

– No futuro podemos estar presos – arriscou-se Maújo.

– No futuro podemos permanecer soltos graças ao cuidado com o garçom – disse Gertrude.

O garçom, veloz, percorria as mesas.

Costa Neves, o secretário, as beatas… Maújo juntou-os num saco para jogá-los na lama do rio Beberibe; sem confessar, inda que demonstrando pressa nos propósitos. Ele mesmo suspeitando que misturara os desígnios pessoais a planos de insurgência.

O céu carregou-se de meteoros, mostrou a pressa cega nas ladeiras e ruas. Ninguém olhando para cima. As chuvas vinham num dos quatro dias; no último, as chances cresciam. Se viessem no sábado de Zé Pereira, o delírio seria interrompido pela ameaça de ruína nos propósitos de felicidade; no domingo, dia santo, os negociantes da Sé se recolheriam rendidos; viessem na segunda-feira, a rouquidão dos foliões, inconformada, agravar-se-ia; na terça, milhares de latas vazias de cerveja escorreriam no calçamento, sem adeuses, embotando crenças.

Os quatro não estavam roucos, bebiam respeitando a abstinência de Chica. Maújo conveio, deu uma trégua às pressas nos sentidos. Concordou em dormir para acordar cedo, bem cedo para assistir ao Cariri de Olinda.

– Sim, por que não? – disse-lhes, como para mostrar a reserva de zelo.

– Reservou-se de repente, o nosso guerrilheiro – pilheriou Caetano.

– Um guerrilheiro se nutre de reservas… – quis dar mostras de maturidade.

Chica, até ali muda, resolveu intervir:

– Cariri merece o repouso para ser visto do começo ao fim. Homenageia um velho mascate, vendedor de raízes e de couro.

– Bravo! – gritou Gertrude. – Brindemos aos trabalhadores coureiros!

– Às raízes milagrosas – emendou Chica.

A beberagem seguiu pouca, indiferente ao estrugido das águas do outro lado do dique. A Veraneio não fizera a ronda. Aqui e ali, sentia-se o cheiro de liamba. Havia fungos, cismas. Em todas as mesas, ouvia-se uma crônica nova, inda que tão velha quanto o mofo nas paredes do bar. O cheiro de liamba inspirava relatos.

Meia-noite. Pistons agudos se fizeram ouvir.

– É o Homem da Meia-Noite! – disse Maújo.

O garçom não lhes cobrou os dez por cento. Deram-lhes gorjetas.

Os quatro correram à Praça do Carmo.

O Homem da Meia-Noite despontara no começo da rua do Bonfim, rumo à praça, à avenida.

Eles ficaram em pé, sobre o arrimo de tijolos no sopé do outeiro. Sem daiquiris, proveram-se de cervejas em latas.

O boneco gigante, com os braços bambos, na frente da orquestra. Em volta, um cordão de segurança. Na frente dos músicos, a diretoria, meia dúzia de embonecados homens, usando roupas da mesma cor do boneco. No meio, junto ao presidente, o secretário da prefeitura; vestindo uma camisa de cetim alvíssimo, brilhosa; sorrindo, os dentes com o mesmo brilho da roupa, mesmo não sendo visto pela multidão. Maújo, de cima do arrimo, viu-o. Olhou para o chão, viu uma laranja descascada, chupada, só o bagaço mole. Segurou-a, amassou-a na mão como preciosa munição; arremessou-a na direção do secretário, para acertá-lo no rosto. Deixaria-o basbaque… Acertou o presidente da troça, assustando-o, desalinhando-o. O homem tirou o lenço do bolso para limpar o rosto afrontado.