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Cap. XX – Lá vem Cariri ali…

Não houve autocrítica formal do ataque sem cálculo ao desafeto mais próximo. O secretário fora nomeado diretor do clube, sem eleição. Isso reduziu-lhes a dor pela dor sofrida pelo baixote presidente; reduziu-lhes só, porque não perdoaram a admissão do secretário na diretoria do popular clube. A aparição dele, acenando, impactara-os.

Não houve como distinguir o desígnio aproveitador de um, da submissão inconfessa de outro. Nos planos de Gertrude, Caetano e Maújo, o presidente do Homem da Meia-Noite e toda a diretoria, teriam papéis numa insurgência de rua. O secretário, por certo, dera dinheiro para o desfile. O físico raquítico do presidente, rosto magro, sem bigodes, deixou-os no entanto com remorsos.

Os três se olharam sem trocar palavra, como se tivessem crescido na compreensão do mundo; da noite para o dia. Maújo, o mais compungido, pensando em como amassara o artefato; “…impossível errar.” Atingira um bem-apessoado homem do povo.

– Ele não tem sequer acesso a nossas desculpas…! – disse por fim – Ora porra!

– Teria sido melhor se tivesse jogado um bumerangue – deduziu Chica.

– Um bumerangue com navalhas afiadas – juntou Maújo.

Despediram-se mudos. Breve, talvez ainda no carnaval, pudessem se reparar do erro.

Gertrude e Caetano recolheram-se, recuaram. Olharam-se vazios, proscritos. Ela entrou no banho; noutra circunstância, cederia a vez em agrado a ele. Ele sentou-se numa cadeira de balanço, rendido; não sentiria dor numa cerimônia de autoflagelação. Viu Gertrude enrolada na toalha, recendendo a lavanda. Resta-lhe algum zelo, pensou.

– O que devemos fazer? – ela perguntou.

– Não sei. – Sabia, não quis confessar.

Deitaram-se, viraram-se de frente, no claro-escuro. Queriam embalsamar-se um no outro. Sem ungüentos, coitaram com os ventres em choques, num haraquiri recíproco. Massagearam-se na agonia. Dormiram.

Caetano sentiu açoites de varas finas, toda a madrugada. O carrasco fora designado pelo curandeiro.

Gertrude, julgada por um tribunal revolucionário, viu-se sentenciada a perder o direito a votar nas decisões do Partido.

No sonho, Maújo era um doidivanas desgarrado, fazendo autocríticas a estranhos. Girola! Alguém o julgou um girola.

Chica dormiu como de costume, baldia de sonhos; numa só posição.

Os quatro acordaram a tempo de se aprontar para ver o Cariri. Maújo saíra antes, deixando um bilhete, recomendando que Chica dormisse mais para repousar o ventre.

Gertrude não se levantou, viu Caetano vestir-se às pressas, coçando as costas.

O Cariri estava na frente da casa.

Os dois se reencontraram em frente à igreja, numa das três portas. A troça volteava no largo, com um homem montado numa pequena burra, na frente da orquestra. Nos primeiros acordes do hino, o ajuntamento inquietou-se.

– Estamos brincando de revolução – disse Caetano, por certo ouvindo chicotadas em vez dos acordes do hino.

– Não. Erramos o tiro. Joguei o bagulho com vingança de classe. Mas não tenho habilidade com o braço.

– Qualquer um de nós teria errado, àquela altura. Não era o momento. O inimigo estava no meio de aliados. Ali mesmo poderia ter um camarada como nós, perdido, à procura do Partido.

– Menos mal. Será mais fácil fazer autocrítica.

– O que interessa agora é saber se era oportuno jogar a laranja podre. Continuo confuso porque se tivesse atingido o rosto do secretário, estaríamos todos aqui comemorando, provavelmente bêbados.

– Teríamos recrutado Chica no meio da rua.

– Chica já é nossa aliada, ela mesma sabe disso; só desconhece o nome do Partido. Recrute-a! Você fala demais e parece uma galinha choca quando se trata de Chica. A mulher já vai parir por obra de seu esperma!

– Gertrude concorda?

– Claro! Gertrude não tem mais traumas… A não ser o de ontem.

– E o velho? Como fica o velho do Homem da Meia-Noite?

– A essa altura deve estar com uma compressa de gelo no rosto, perguntando-se quem lhe teria tanto rancor. Descobriu um inimigo oculto sem nunca ter pisado na unha de alguém.

– Vamos descobrir um modo de lhe pedir desculpas.

– Uma carta, uma carta anônima com sinceros pedidos de desculpas; endereçada à sede do bloco porque ele foi atingido quando estava à frente do desfile. Aproveitamos para abrir seu olho quanto ao secretário. Ele desconhece as intenções sujas do secretário.

– Não será um arranjo feliz, será um desfecho…

Cariri desceu a escadaria do Guadalupe, seguiu para o Varadouro mas entrou à esquerda para o largo do Amparo; entrou na estrada do Bonsucesso para parar lá embaixo. Os dois seguiram, discutindo os termos da carta. A multidão espremeu-se na descida estreita. Os dois foram empurrados, jogados por foliões sublevados. No calçamento disforme, uma burrinha, provavelmente com fome, carregando um homem com roupas de mascate. “Lá vem Cariri ali…”

Os bêbados pulando em grupos de quatro, seis, segurando-se nos ombros; uns caíam, levantando-se com a ajuda dos outros; pisados nos pés, nas mãos, colididos nas costas.

Os termos da carta…

Da janela, uma negra velha foi saudada por três bêbados, queixando-se do batom amargo nos seus lábios. Com o cabelo puxado para trás, ela suspendeu de um dos lados, pela alça, um caldeirão cheio d’água; despejou-o nos bêbados.

Os termos da carta…

Embaixo, a orquestra parou, cumprimentou a viúva de um dos fundadores do bloco. Era uma negra velha, com os cotovelos apoiados na janela, junto a uma das filhas. Tinha um cachimbo num lado da boca, de onde descia a saliva babosa; sorria, mostrando os dentes em cacos.

Os termos da carta…

Antes de entrar no largo, parada na frente de uma bodega cujo dono pusera o estandarte do Cariri em cima da cumeeira. A diretoria foi servida de cachaça, fatias de charque. Os três bêbados molhados, no direito de se servir, beberam mais pingas, comeram carne-seca.

Formou-se a fila. A orquestra tornou a estrilar.

Os termos da carta…

O vendeiro aproveitou para recolher as garrafas, o prato com restos de farinha.

No largo, a multidão espalhou-se sob o primeiro calor do sol. Não havia sinais de chuva, mas calor do clima oscilante de Olinda. Ouviu-se a apoteose. O mascate apeou da burrinha para pular, tirou do alforje a garrafa de pinga, bebeu sem fazer caretas. Os bêbados se acreditaram recuperados. As mulheres gritando.

A igreja fechara as portas na noite anterior, depois da última missa; sob os pórticos, negros roncando com estrépito, desde a véspera. O sacristão nunca os enxotara, seria inútil; xingava-os na ausência, na frente do padre, para mostrar zelo.

Os termos da carta… Maújo e Caetano, quase fechando acordo sobre o conteúdo da correspondência, afastaram-se dos bêbados deitados sob o pórtico. Sentiram-se instigados pela unidade de idéias. Apontaram para o largo. A orquestra, repetindo notas do hino do Cariri, convidou-os ao desvario; correram para o meio. Queriam abraçar todos… a diretoria, em desagravo de si próprios. De repente, viram-se de frente com o presidente do Homem da Meia-Noite. O homem viera dar parabéns a Cariri. Os dois estacados, na frente da vítima; dois patetas. Atraído, o homem olhou-os, inquirindo-os, meio-patético. Sorriram porque não souberam, não sabiam gritar. Abraçaram-no, abraçaram-no como a um velho amigo. O homem distendeu os braços para acolhê-los, foi abraçado como há muito não fora. Os dois, doidos, incluíram o Cariri nos planos de insurgência.

Lá vem Cariri ali…

Com um saco de pegar criança

Pegando menino e moça

Pegando tudo que a vista alcança

Cariri eu tenho medo

Cariri tenho receio

Pega moço, pega velho

Só não pega gente feio

Com o rosto chuviscado de cheiros, o franzino presidente voltou para casa.