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Vaz de Carvalho: Acerca do salário de subsistência

No momento em que o ataque aos salários e direitos laborais e sociais dos trabalhadores e ex-trabalhadores se intensifica é oportuno refletir sobre o “salário de subsistência”: em que consiste e o que representa.

Por Vaz de Carvalho*

O salário de subsistência não é o mínimo fisiológico para um trabalhador se manter vivo e operacional durante um certo tempo, só em termos de escravatura este padrão se verifica (1).
Em termos marxistas o salário de subsistência consiste no necessário para vestir, alimentar, alojar adequadamente um casal de trabalhadores e para garantir a reprodução da força de trabalho – no mínimo os seus dois filhos.

Tem além disso em conta os hábitos sociais de consumo ou lazer que se transformaram em necessidades. “É totalmente indiferente se do ponto de vista fisiológico um meio de consumo é necessário ou não, basta que em conformidade com o hábito um tal meio de consumo se torne necessário” (2).

Um outro aspecto a considerar é que na medida em que se reduzem as prestações e os direitos sociais, o salário teria de ser aumentado para pelo menos manter o mesmo nível de subsistência. É o caso dos custos com a saúde, educação, transportes (existência e facilidade de transportes públicos), etc. A própria segurança no emprego e na terceira idade importa, sendo necessário que o trabalhador caso não disponha de adequados direitos laborais e sociais, tenha o necessário para garantir justamente a sua manutenção e a da sua família em previsíveis condições futuras.

Consideremos um casal de operários, no caso de ambos trabalharem: o salário da família deverá corresponder ao necessário para a existência de aparelhagens e de contratações para facilitar a realização dos trabalhos domésticos, caso contrário a sua jornada de trabalho não seria de oito horas, mas ficaria ao nível do que havia no século XIX – e o que vai ocorrendo neste século XXI sob o efeito da globalização neoliberal que coloca trabalhadores e trabalhadoras ao nível da semi-escravatura.

Sobre a reprodução da força de trabalho e num casal de operários, o seu salário deverá então corresponder à formação de dois novos operários? As coisas não podem passar-se exatamente assim. Isto seria verdade numa sociedade sem desenvolvimento tecnológico e sem crescimento, isto é, no que Marx definiu como de reprodução simples e não de reprodução alargada.

Nas condições de reprodução alargada e desenvolvimento tecnológico os filhos destes operários terão de ter em crescente proporção licenciaturas ou pelo menos formação escolar mais alargada e qualificada. O salário do casal terá portanto que permitir custear as despesas com esses estudos, que serão crescentes na medida em que se reduzirem as prestações sociais.

Portanto a noção de salário de subsistência é tanto uma questão social como um importante elemento do desenvolvimento económico.

A afirmação de que “pobreza, gera pobreza” é, como se vê, assim justificada.
Não só em Portugal, mas também na UE a generalidade dos jovens de hoje não dispõe, nem de salário nem de segurança para constituir família, criar e manter adequadamente dois filhos. Vivem na dependência dos pais e na precariedade com salários de miséria. É assim que na UE em 2008 cerca de 46% dos jovens continuavam a viver em casa dos pais, apesar de mais de metade destes ter então um emprego a tempo inteiro ou parcial. Em Portugal a percentagem de jovens entre os 18 e os 34 anos que viviam com os pais rondava os 59%.

Além disto na EU, 16% dos jovens estavam em risco de pobreza e 35,8% tinham emprego com contratos a prazo. Em Portugal esta percentagem ultrapassava os 50 por cento. Como se vê, a “flexibilidade” traduz-se pela redução das condições de subsistência.

Segundo a Eurostat, em 2010, 23% dos cidadãos de UE estavam em risco de pobreza e exclusão social (3); desde então como é evidente as condições só pioraram.

Pobreza e precariedade

É particularmente grave o que se passa com as condições de trabalho e o desemprego dos jovens que atinge valores de cerca do dobro do nível geral. Em 2009, o desemprego entre os jovens era na UE 19,6% (4). É a trágica realidade que as políticas de agressão social da troika impõem.

Para onde se caminha com este rumo? Para um salário de equilíbrio econômico e social? Não, que isso corresponderia à intervenção do Estado numa estratégia antimonopolista garantindo o aumento da produção e o aumento dos salários. As políticas recessivas do neoliberalismo são disto a antítese: são a monopolização da economia, a crise, as falências, o desemprego, a saída dos lucros para paraísos fiscais em busca de rendimentos especulativos. O resultado destas políticas conduziu os salários abaixo do nível de subsistência necessário para a reprodução da força de trabalho em termos de desenvolvimento económico e social sustentável.

A situação, mesmo para jovens licenciados, seria ainda mais dramática se não fossem as ajudas dos pais. Que acontecerá, se o rumo não for invertido, quando não puderem mais contar com estes apoios? Que podem esperar as gerações mais novas e as futuras desta insanidade que são as atuais políticas?

O aumento das qualificações não gerou nem segurança nem melhores condições de vida: com este modelo de sociedade, apenas se aumentou a oferta do mercado de trabalho logo, segundo a lógica do capital, fez diminuir o seu preço – é o que se passa com a nova geração de licenciados.

É oportuno recordar esta passagem de F. Engels, na sua Crítica ao Programa de Erfurt, em 1891: “É possível que a organização dos trabalhadores e a sua resistência oponham uma certa barreira ao crescimento da miséria. Mas o que aumenta certamente (em capitalismo) é a incerteza da existência”.

A degradação da situação social e em particular a laboral traduz-se na pobreza e na precariedade: nos finais de 2010, cerca de 37% dos trabalhadores ganhavam menos de 600 euros de salário mensal líquido; apenas 34% tinham salários superiores a 900 euros mensais; cerca de 1/3 dos trabalhadores estava em situação precária, com a perda de direitos, inclusive os mais elementares, que isto representa. Contudo, já em 2010 o Relatório de Outono 2010 do Banco de Portugal registava (pág.81) “forte desaceleração dos custos unitários do trabalho no contexto de um crescimento significativo da produtividade por trabalhador”. Então a culpa da crise é de quem? Dos trabalhadores, como se vê, não é certamente.

Nas pretendidas alterações às leis do trabalho considera-se sem pejo os trabalhadores como “coisas” em absoluto descartáveis e sem direitos, apenas custos a reduzir.

Dizia Marx: “Pôr no mesmo pé os custos de fabrico de chapéus e os custos de manutenção do homem é transformar o homem em chapéu” (5).

Por acção das políticas actuais que o “pacto de agressão” para Portugal consagra, a trágica consequência é o contínuo agravamento das condições económicas e sociais. Desta forma os salários continuarão a descer muito abaixo do nível de subsistência. O que significa decadência quer em termos económicos, quer sociais e civilizacionais.

O sistema capitalista pretende garantir os seus lucros através da crise, do desemprego, como forma de “racionalizar” a produção. Os níveis de vida da classe trabalhadora são drasticamente reduzidos e recursos produtivos permanecem sem serem utilizados – como é o caso dos Estaleiros de Viana e de muitas outras unidades produtivas.

Neste contexto, pretende-se que os trabalhadores se sintam cada vez mais limitados no seu direito à reivindicação e à greve. Ou seja, pôr de volta informalmente pelos constrangimentos da subsistência a lei Chapelier que proibia as associações de operários, só revogada em 1881.

O salário de “mercado livre”, “não é outra coisa senão o mínimo de salário” (5).
O sistema capitalista vê o salário como um custo; na realidade o salário é um elemento essencial dos equilíbrios econômicos e sociais, ou seja, tem de ser visto também como um benefício social pelo que contribui pelo poder de compra dos trabalhadores para a dinamização da economia.

Quando a hipocrisia política vigente fala dos alegados “sacrifícios para todos”, mais uma vez recordemos Marx. “O salário (eliminando as relações de produção capitalistas) será o resultado de uma convenção baseada na relação entre a soma das forças produtivas e a soma das necessidades existentes” (6).

Notas

1 – Dizemos verifica, pois segundo a OIT existirão em todo o mundo pelo menos 12,3 milhões de pessoas em condições de escravatura. Cada ano serão traficados cerca de 2,4 milhões de pessoas. Considera-se aliás que em nenhuma outra época terá havido tantas pessoas sujeitas a escravatura como actualmente. (ver www.antislavery.org).
2 – Marx – O Capital – Livro Segundo – Tomo V – p.431 – Ed. Avante
3 – Eurostat – Statitics – dados apresentados em Fevereiro de 2012
4 – Eurostat yearbook 2011 p. 242 e 243
5 – Marx – Miséria da Filosofia, – Ed. Avante – p.49
6 – Marx – Miséria da Filosofia, – Ed. Avante – p.70

*Vaz de Carvalho é colunista.

Fonte: Avante!