Sem categoria

Cap. XXI – Buda e Ogum

Dois rolos de serpentina enfeitaram os Budas na estante de Maújo; estatuetas de pedra-sabão, frias, obesas feito dois capitalistas parasitários. […]

Dois rolos de serpentina enfeitaram os Budas na estante de Maújo; estatuetas de pedra-sabão, frias, obesas feito dois capitalistas parasitários. Não tinham poderes, inda que fossem cultuadas; sustinham os livros, sofriam piparotes nas bochechas, nas bundas. De costas para os aposentos, melhor. Gertrude as comprara, escolhera-as como objeto de sua zombaria aos restos de formação religiosa de Maújo.

– Por que não traz uma estatueta de Ogum para cá? Quero enfeitá-lo com serpentina. Você só sabe lhe dar inhames e feijão sem sal. Talvez ele não esteja satisfeito, o seu protetor – perguntou a Chica.

– Não tenho do que me queixar. Ainda não dei uma topada neste carnaval. Subo e desço as ladeiras sem olhar para baixo. Acha que perdi o meu guia? Estou grávida de você por escolha; também não me arrependo.

– Acredito em você. Veja. Estou enfeitando Buda sem ter nenhuma afinidade com ele; sou só simpático com quem me trata bem, ou com quem não me mete medo, como esse indiferente Buda. Ele é tão gordo e era um asiático vegetariano; não… devia comer carne-de-porco ou talvez dormisse muito, até nas orações. Viveu para engordar e ainda hoje é cultuado. Deve ter morrido feliz… se não teve diabetes.

– Mijava na fralda?

– No fraldão.

– Você é um zombeteiro.

– Você é o que há de mais legítimo neste aposento. Acha que estou zombando?

– Beije-me

Esfregaram-se.

– Sua barriga. Logo estarei trepando com uma gangorra. A gangorra que Ogum me legou.

– Voltou a zombar. De qualquer modo, queimará mais calorias.

– Depois das moquecas, de preferência.

Depois das três da tarde, não havia carnaval pleno na Preguiça. Foliões se abrigavam na sombra das árvores, sentados, sonolentos, ressacados. O silêncio quase mortal teria fim no começo da noite, quando rompesse o primeiro bloco na rua Prudente de Morais.

Na rua do Amparo, Chica e Maújo cumprimentaram Bajado na janela. Tinha um gravador no bolso, Maújo; resolveu conversar com o pintor, gravar sua sintaxe doméstica. Entraram na casa de meia-água. Ofereceram-lhes cerveja. Bajado, pinturas e cerveja, a tríade do Amparo no próprio santuário. Chica foi comprar salame na padaria em frente.

– Tem saudades do Amigo da Onça, Bajado?

Com os olhos de lentes grossas, brancas, Bajado olhou-o de um dos lados; os olhos estavam mareados de miopia.

– Tenho, tenho mais do que de Péricles.

– Foi seu parceiro na criação!

– Ele não se lembrou disso nos créditos, nem nos direitos autorais.

– Mas o Amigo sobreviveu por muito tempo.

– Por isso tenho saudade só dele.

– Quem fez mais sucesso: O Cruzeiro ou o Amigo da Onça?

– A revista não tinha concorrente, tinha que fazer sucesso. Mas sem o Amigo da Onça seria um aleijado sem a muleta.

– Você escreveu as legendas também?

– Não, só fiz a criação, o traço do desenho.

– Por que seu nome não consta dos créditos?

– Eu não entendia de créditos, de direitos.

– Você se divertia com o Amigo?

– Me divertia. Ele me ajudou até a brincar carnaval.

– Como?

– Uma vez saí com minha mulher pra brincar; queria brincar sozinho mas não disse a ela, não adiantava. Aprontei-me e calcei um par de botas, couro até o tornozelo, sola de pneu de caminhão embaixo. Ela perguntou se eu ia pra vaquejada. Eu disse que era por causa da quina das calçadas. Quando chegamos no Largo do Amparo, o Cariri ia descendo a estrada do Bonsucesso. No começo da descida, a orquestra estrondou um frevo de zunir no ouvido. Eu levantei a perna pra pular no ritmo, a perna do lado da mulher; mirei no seu pé, na vizinhança do mindinho. A borracha deixou a roncha, inchou em cima da unhas. Ela gritou: “Eu não tenho quina no pé!” Eu disse: “Desculpa, minha filha.” Trouxe ela pra casa, botei remédio no pé inchado e voltei pra brincar. Brinquei os quatro dias sozinho.

– Foi o Amigo da Onça.

A mulher de Bajado, na cozinha, sentou-se numa espreguiçadeira. A cozinha, na parte mais alta da casa, três batentes depois do corredor, dos quartos, da sala da frente, onde Bajado não sentia as horas. Não ouviu a conversa, ela, ouviu os três rindo, ajustados ao burburinho da rua. Quando os risos afrouxaram, mandou a filha levar mais cervejas para as visitas.
Bajado, obeso, mastigando salame nos dentes tortos, bebendo goles pequenos.

– O Amigo da Onça era magro, tinha uma lança pontuda no queixo, os olhos eram grandes como caroços de pitomba. Por que você não seguiu os mesmos traços nos seus desenhos? Todas as suas figuras são gordinhas, assim como você.

– O Amigo da Onça era tão ruim que não engordava, não ria na frente dos outros, nunca riu. Era feliz e não dizia a ninguém. As minhas figuras são bem nutridas, como o Batata do Bacalhau; bebem, ficam inchadas, vivem pulando sob um estandarte. Acreditam que vão todas para o céu.

– Como você.

– Tomara que seja com elas.

– Não esqueça de tirar as botas!

– Ah… ah… Dei fim às botas na quarta feira de Cinzas. A mulher ficou com pena, coitada. E eu com pena dela.

Chica abraçou Bajado. Na cozinha, o cheiro do feijão, a fuligem nas telhas, panelas emborcadas junto a telas sem pintura, pincéis numa lata com água; tudo num canto, sem desordem. O piso de tijolos nus, comido sob a pressão dos pés, frio ou quente, conforme a temperatura entrando pela porta dos fundos. Calor ou umidade, o espaço recendia a feijão curtido no paio, no charque. No jirau do lado de fora, escamas secas de peixe; só ali sentia-se um cheiro vago de peixe cru. Atrás, subindo, o corrimão de cimento da rua Saldanha Marinho, oitão da Misericórdia. Deserta todo o ano, fora ocupada por estandartes de agremiações pequenas, desconhecidas, catando chance para se distinguir na esplanada da Sé. Nos quintais, velhas e moças, ninguém lhes dava atenção. Os pés de frutas-pão, enormes, escondiam o colorido pobre dos blocos. O desfile da arraia-miúda não era visto.
A velha abraçou Chica, foi fechar a porta de trás, depois os seguiu à saída. Eles passaram na oficina. Chica, sem ser vista por Maújo, pôs uma pequena imagem de Ogum na bolsa do ombro.Não havia blocos no largo do Amparo. O sol se escondera, deixando nuvens cor de chumbo cobrindo a torre do Amparo; a sombra estendeu-se à Igreja de São João Batista, acoitando o recesso,a diabrura iminente.

Subiram a Saldanha Marinho, os dois. Em cima, junto ao corrimão, um bloco de negras miúdas esperava a vez de seguir para a Sé. As Pretinhas do Congo, vindas de Tejucupapo para o desfile; duas dúzias de mulheres, vestidas de chita chamuscada de um imperceptível desenho de pétalas brancas, amarelas, rosas, no meio das saias; nas mangas, rendas brancas feitas à mão, completando o enfeite. Segurando o estandarte, uma negra magra, moça, com dentes à mostra, segurando uma boneca de pano com os mesmos trajos seus. Todas confinadas no passeio.

Chica as reconheceu:

– São as Pretinhas do Congo! Não sou mais gente se não conseguir tirá-las dali…

Correu abrindo caminho sem a ajuda de Maújo. Em frente à caixa d’água, encontrou um grupo de capoeiristas em exibição. Chamou o líder. Conversaram pouco mais de dois minutos. Voltaram com ela para o adro da Misericórdia. No retorno, abriram caminho para as vinte mulheres na calçada da Sé. Pronta a formação, tambores pequenos, amarrados em cipós de embira-branca, tocaram. As Pretinhas cantaram, dançaram. Chica, dançando, pôs a mão no ombro da preta magra com o estandarte. Grata, a mulher deu-lhe a boneca. Chica rodopiou, sacudiu os cabelos. Maújo, sem jeito, não soube qual ritmo seguir; parou, mirou a barriga prenha, com medo que ela entrasse no transe.

A exibição foi documentada por câmeras de televisão. Maújo comprou água mineral para as mulheres. Chica chamou-as para a avenida Sigismundo Cabral. O desfile teve fim às oito da noite, no Varadouro, onde o ônibus que as trouxera levou-as de volta a Tejucupapo.

No quarto, quando saiu do banho, ela viu a imagem de Ogum, deixada num canto da escrivaninha, enrolada em serpentina azul. Dois Budas e um Ogum, unidos numa gambiarra estranha.

– Hoje senti o mesmo quando vi você pela primeira vez na cerimônia de Ogum. Senti orgulho. Você não tem sangue nas veias, tem um barro nobre, melhor que o de suas surubas.

– Êpa! Até agora nenhum comprador reclamou de peças rachadas.

– Você não racha, você é inteira. Qualquer dia vai rachar minha alma, meu corpo.

– Cuido pra que você fique inteiro do meu lado. Só quero seu apoio.

– E se eu lhe pedir o seu apoio!?

– Não conte comigo pra rachar a cara dos outros no meio da rua.

– Eu o abracei, eu e Caetano abraçamos e beijamos nossa inocente vítima. Foi hoje de manhã, no Bonsucesso. Não pedimos desculpa, mas o homem ficou agradecido com nossas homenagens. Fomos perdoados pela metade. Vamos enviar-lhe uma carta sem nos identificar, pedindo desculpas.

– Devia pedir desculpas pessoalmente, olho no olho, na frente da diretoria do clube.

– Tá maluca!

– Estou falando em direitos, em respeito humano.

– Não podemos nos identificar para ele. Nem para dizer que o nosso único inimigo é o secretário. Teríamos que dizer o motivo.

– Vocês conversam tanto no Guadalupe, falam do secretário, do prefeito. Parece que vão tomar de assalto a prefeitura. Quando acertaram o presidente, pensei: agora vão explodir uma bomba na estátua em frente à prefeitura.

– Não é nada disso, Chica.

– Vocês estão me tratando em banho-maria. Vocês me aguardem! Vocês me aguardem!

– Outra surpresa, meu amor? Você vai ficar viúva, vai me tirar o direito de conhecer o meu filho.

– Vocês me aguardem para viver mais, para viver mais! – falou segurando O Romanceiro, deitou na otomana, o travesseiro nas costas, pernas cruzadas.
Maújo, na cama, abriu O velho e o mar; lembrou-se do fim melancólico do pescador Santiago; fechou-o.

Buda e Ogum, uma alegoria, obra de seis mãos. Gertrude, no fundo, tinha medo de se extenuar com autocríticas. Maújo sentia fome apreciando a barriga de Buda. Chica trouxera Ogum por sugestão dele, por sugestão e devoção. A serpentina, indício do festim. O vento soprou na janela, drogando-os de alívio. O mar bramiu feito uma orquestra. Maújo dormiu, sonhou com a parelha acenando-lhe adeuses felizes. Tinha asas azuis nas costas, um bebê de rosto indefinido no braço; na mão, uma liamba de papel azul, acesa, soltando estrelinhas entre a fumaça.