Política keynesiana não se confunde com consumismo

Quando se fala em receita keynesiana para enfrentar a atual crise financeira mundial, a direita a rejeita sob o argumento de que o déficit e a dívida pública devem ser contidos a qualquer custo, e nunca aumentados mesmo que para financiar a retomada, pois disso dependeria a recuperação da confiança do mercado em refinanciar os governos, especialmente em países, como os da área do euro, nos quais os tesouros nacionais estão desvinculados do banco central.

Por J. Carlos de Assis*

É importante entender isso em detalhe, pois o futuro da Europa e do mundo passa pelo equacionamento do jogo de interesses que está por trás dessa questão. Quando um país está em recessão, só existem três alternativas para sua recuperação: o estímulo ao consumo interno para estimular indiretamente o investimento e o emprego, o estimulo à demanda externa (exportações) ou uma ação pela lado da oferta, isto é, a facilitação e barateamento do crédito para favorecer diretamente o investimento.

A terceira dessas alternativa geralmente não funciona, como se sabe pelo menos desde a Grande Depressão dos anos 30: os empresários, diante de uma fraca demanda, deixam seu dinheiro nos bancos e não investem. É uma atitude racionalmente correta pois ninguém produz exclusivamente para as prateleiras. A expressão tradicionalmente usada para dar conta desse fenômeno é o “empoçamento” do dinheiro e do crédito no sistema financeiro. É o que está acontecendo neste momento nos países ricos.

Tanto o Fed nos Estados Unidos quanto o BCE na Europa estão colocando rios de dinheiro barato à disposição dos grandes bancos – 1,2 trilhão de dólares num caso, a 0,25% ao ano, e mais de 1,3 trilhão no caso europeu, a 1% – no suposto de que venham a emprestar ao sistema produtivo. Nada acontece. Os grandes bancos usam o dinheiro para especulação e arbitragem, não para empréstimos. Além disso, as grandes corporações americanas têm em caixa própria mais de US$ 2 trilhões que não investem.

Por que insistem nessa política que o Fed denomina eufemisticamente de “quantitative easing”, ou facilitação quantitativa? Existe apenas uma explicação: é uma forma de supostamente enfrentar a crise por meio de favorecimento aos poderosos. Do contrário, teriam que recorrer à política fiscal, implicando aumento dos gastos públicos, e esse processo significaria transferência de renda para os mais pobres mediante políticas públicas de favorecimento ao consumo, pelo menos no curto prazo.

Existe, contudo, uma esquerda ingênua que contesta a política keynesiana por supostamente favorecer o consumismo. Isso significa que uma política de estímulo fiscal teria de constituir-se diretamente em facilitação da demanda da parafernália de bens de consumo produzidos e comercializados na economia mediante a criação de necessidades artificiais. Paralelo a isso existe a ideia do crescimento zero, postulando uma ruptura radical com os padrões da economia de consumo atuais.

Trata-se de um contra-senso. Se a chave do estímulo de demanda está nas mãos do Estado, é óbvio que ele pode orientar essa demanda para onde quiser. Na realidade, só se pode reorientar de alguma forma o processo produtivo capitalista justamente quando o Estado se encontra sob o desafio de estimular a economia. Um exemplo é a busca de energia limpa sob estímulo estatal que se efetiva atualmente em todos os quadrantes do mundo, num processo global de reestruturação da oferta.

É nesse ponto que surge a escolha fundamental de economia política: para Keynes, na Grande Depressão, o objetivo imediato e inadiável era a restauração do emprego. O nome de sua obra clássica é “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”. Havia nisso uma subordinação explícita das questões monetárias ao objetivo do emprego máximo, ou do pleno emprego. Nos tempos atuais, pelo que atestam as políticas monetárias europeia e americana, o objetivo não é preservar ou aumentar o emprego, mas preservar o ambiente favorável à alta finança.

No tempo de Keynes, o setor econômico mais suscetível à criação de emprego era o de infra-estrutura econômica. Sua obsessão em criar emprego era tanta, porém, que julgava defensável até mesmo o investimento público em obras inúteis, como enterrar notas de dinheiro e mandar os trabalhadores desenterrá-las, desde que com isso se criasse renda e emprego. Claro, o empregado é por sua vez um consumidor, e algum aumento de consumo surge na segunda derivada do estímulo fiscal.

Entretanto, o primeiro movimento de estímulo fiscal é um momento especial para reorientar os investimentos públicos numa economia capitalista. Investimentos em educação, saúde, previdência, ciência e tecnologia, assistência social, prevenção de efeitos de mudanças climáticas, são, todos eles, gastos públicos que, num momento de recessão, podem e devem ser aumentados como fins em si e como objetivos subsidiários ao aumento da demanda efetiva e do investimento privado.

Esse tipo de estímulo fiscal nada tem a ver com consumismo. Em essência, como já dito, é uma forma de reorientação de gastos públicos para fins sociais. Embora seja óbvio algum efeito sobre o aumento do consumo de bens privados, isso ocorrerá numa escala menor que a do consumo de bens públicos. E tem a vantagem de que pode ser adotada por um país sem risco de vazamento do investimento e da demanda para o exterior. Claro, no momento inicial, aumenta o déficit e a dívida pública. Mas não há receita efetiva para reduzir o déficit e a dívida pública a médio prazo que seu aumento no curto: é que dívida se paga com crescimento.

*J. Carlos de Assis é economista, professor de Economia Internacional da UEPB.