Lungarzo: Um Escritor Chamado “Battisti”

Carlos Alberto Lungarzo, membro de Anistia Internacional e professor titular da Unicamp. assina o prefácio de "Ao pé do Muro", livro publicado originalmente em Paris, em março, e que agora chega ao Brasil, pela Martins Fontes.  Foi escrito por Cesare Battisti na carceragem federal de Brasília, onde esteve antes de ir a Papuda.

A obra buscou transmitir os sentimentos e impressões que Cesare teve sobre o Brasil, através dos relatos dos detentos. Não é realmente autobiográfico, mas, como o próprio escritor afirma, as revelações "são como janelas à realidade brasileira, atravês dos relatos dos detentos mais variados."

Leia a seguir o prefácio na íntegra:

Um Escritor Chamado “Battisti”

Ave Cesare, ceux qui t'ont lu te saluent
(Salve, Cesare, os que te leram, te saúdam)
Paris Match, março de 2004, resenha de Le Cargo Sentimental, citada por Nicolle Pottier.

Por Carlos Alberto Lungarzo*

No Brasil, Cesare Battisti não é visto como escritor. Por isso, quando me sugeriram escrever o prefácio de Ao Pé do Muro, fiquei feliz pelo ensejo de mostrar a obra que a grande mídia brasileira repudia, mesmo sem possuir a mínima idéia sobre ela.

Até 2010 eu tinha lido apenas algumas páginas dos romances e histórias de Battisti, mas percebi que minha vivência de sua vida era mais direta que a de outros, já que tinha passado por experiências similares e por uma fuga “quase sem fim”. As diferenças são quantitativas: meu tempo de fuga foi de 10 anos e não de 32, e meu tempo de prisão foi de semanas. Entre os períodos passados no México por ambos de nós houve uma superposição de quase três anos (1982 a 1984) e, embora nunca o tenha encontrado, conheci bem os locais que inspiraram vários de seus romances.

Criado em Buenos Aires, a cidade mais italiana fora da Itália, numa família que era mistura do norte com o sul, com seis gerações de culto dos ancestrais, rodeado pelas superstições de tias e avós, também eu fiquei deslumbrado pelo contraste entre o hedonismo miscigenado do Brasil e o masoquismo místico de minha antiga terra. Por isso, creio ser um intérprete despretensioso do que Maja Mikula chama de deslocamentos e geografias que mudam.

O Mundo do Exílio

Os primeiros livros de Battisti relatam, no gênero que ele chama de noir pós-68, a vida precária e incerta dos perseguidos pela Itália, “tolerados” na França, mas carentes de direitos, sempre acossados por instituições com nomes nobres, mas funções práticas infames: controlar, reprimir, dificultar. Os protagonistas são figuras sensíveis, às vezes desiludidas, que atravessam a artificial barreira entre a lei e o crime, na medida em que sua vida é ameaçada.

Em Les Habites d’ombre (As Vestes da sombra), Claudio Raponi é um ex-membro das Brigadas Vermelhas, condenado à prisão perpétua na Itália e exilado na França, onde está em liberdade vigiada. Não é um herói, apenas um perseguido que sofre pelas traições do passado e dedica sua vida a evitar ser caçado por tiras, sociedades secretas, máfias, burocratas. Não pertence a nenhum grupo, mas também não é cético: sonha em destruir os remparts (fortificações) da sociedade governada pelos ricos.

Com narração impecável, L'Ombre rouge (A Sombra vermelha) indaga o aspecto simbólico da política e da hipocrisia dos que se fantasiam de esquerda, mas que, em realidade, desejam “spartirsi la torta con la Democrazia Cristiana”. O Movimento (a esquerda autônoma) deve confrontar-se com uma realidade sem ideologia nem moral: a impiedosa divisão da Europa entre capitalistas e stalinistas, os interesses militares e financeiros, e uma falsa propaganda de valores sempre violados pelo estado soviético.

Na apresentação, o autor explica seus sentimentos em relação ao Partito Comunista Italiano (PCI). Detesta a alma stalinista conspiratória (complottista) e persecutória, e seu extremo cinismo, revelado quando se finge de esquerda, mas mudo diante dos massacres perpetrados por católicos e fascistas. É verdade que a usurpação do marxismo pelo estado policial é bem conhecida há muito tempo, mas poucos a descrevem com a profundidade deste livro.

Em L’Ombre rouge, o exilado italiano Corrado se define sem pieguice nem autocompaixão como um refugiado político, uma pessoa sem direitos civis, mas com dívidas penais, um “fantasma” que deve trocar sua visibilidade por uma toca para viver em solo francês.

Em Buena Onda, o narrador-protagonista é o italiano Enzo, exilado em Paris, que colabora num sequestro político e acaba se refugiando no México e se enturmando com os zapatistas. Ao descrever o exílio dentro do exílio, esta obra duplica a tragédia do deslocamento e da precariedade da vida. Os aspectos italianos, franceses e mexicanos do relato revelam a vocação internacional do autor e sua tese implícita da equivalência dos sentimentos humanos.

Dernières cartouches (Últimos cartuchos) foi, talvez, o romance mais influente de Battisti.

Escrito num estilo azedo, livre de retórica, matizado por uma fina ironia, é a melhor saga “noir” já publicada sobre os jovens perseguidos pelo establishment italiano. Segundo o romancista Valerio Evangelisti, a obra não é uma autobiografia, mas é sim uma representação literária da verdade, que revela com eficácia e paixão a vida dos clandestinos. Descreve seus amores, sofrimentos e traições, suas desavenças com os dogmáticos de esquerda e, sobretudo, a luta para defender-se do gigantesco aparato repressivo de 1977, que unifica o stalinismo com católicos e fascistas.

O romance é uma radiografia dos Anos de chumbo. Não apresenta apenas as superchacinas da direita (as stragi), mas também a incoerência dos que se lançam numa luta suicida e, após a derrota, se arrependem em massa. Battisti não se mostra arrependido, mas tampouco aspira ao que Evangelisti chama de “continuidade impossível”. Por sinal, o romance é um dos poucos que menciona a colaboração da Itália no terrorismo da ditadura argentina de 1976.

Este livro obteve um enorme sucesso, foi publicado várias vezes na França e inclusive lançado na Itália, graças à coragem dos editores. Ele marca a passagem de Battisti de perseguido qualquer a alvo do ódio vesânico da gangue política italiana, procurado através do tempo e do espaço na vendetta mais insana já conhecida. Últimos cartuchos chega também ao leitor comum, curioso, que se depara com o quadro apavorante do fascismo, da inquisição e do stalinismo, instituições que muitos acreditam mortas, mas que vicejam no país vizinho.

Battisti não faz propaganda da esquerda: apenas mostra que a direita fechou todos os caminhos. O resenhista da Revista Paris Match, ao referir-se a outro livro importante, Le Cargo sentimental, mostra que o autor revela “o impasse absoluto do terrorismo”. Os inimigos ficam desesperados, pois não poderão acusar Battisti de terrorista, salvo para um público ignorante e rancoroso. Seus argumentos não podem ser refutados através da razão; só podem ser combatidos mediante uma caçada irracional, e com a cumplicidade da escória política e judicial do planeta.

A fusão entre a resistência e a sensibilidade é alcançada em Le Cargo sentimental, aclamada pela exigente crítica francesa, que gerou a epígrafe deste prefácio. A trama agora não se cinge aos momentos de luta ou decepção: abrange três gerações de ativistas unidas pela carga emocional do espírito libertário.

Política, Crime e Alienação

A negação da transcendência e do maniqueísmo assemelha Battisti a autores como o marxista italiano Cesare Pavese (1908-1950), e os existencialistas franceses Albert Camus e Jean-Paul Sartre. Se estes dão o toque filosófico à rejeição do dualismo bem/mal, o gênero noir oferece a versão sociológica. Para este, “bem” e “mal” são produtos sociais, onde, como diz Battisti (Terres brûlées, p. 8), o representante do “bem” é o que combate “um adversário dado num momento dado”. A divisão ética ou jurídica é apenas uma convenção.

Em Red Harvest, o célebre Dashiell Hammet vincula crime e conflito social, e o delito não é a representação da maldade, mas o reflexo de um mundo caótico, que divide as pessoas em “nós” e “eles” sem preocupações morais e sem obedecer (como diz Battisti em Terres brûlées) às lumières scientifiques. Enquanto no mundo de Agatha Christie ou Conan Doyle o delito é um erro no sistema social, e se concerta tão logo esclarecido, na ficção noir o crime é um estado de convulsão permanente, que mostra a natureza irracional do sistema. Daí a proximidade entre muitos escritores noir e a esquerda; o último passo é concluir que essa natureza irracional provém da dominação de classes.

O mundo de Battisti é um caos, mas não um inferno sem saída. É um cenário cruel onde a vida faz sentido enquanto luta contínua pela subsistência desprovida de pretensão. Suas personagens não são figuras idealizadas, e sim pessoas comuns, com dores e fraquezas, mas também capazes de resiliência e de sentimentos solidários.

A relação entre luta política e delito é variável e indeterminada. Entre ambos, está a alienação e o sentimento de falta de raízes, tão frequente na cultura italiana. Por complexas razões, a região italiana, mesmo antes de ser um país, sempre exilou seus maiores talentos. De Dante a Mazzini, de Da Vinci a Pontecorvo, de Giordano Bruno a Galileu, quase todos os grandes pensadores foram desterrados, queimados ou torturados.

Toni Negri explica essas contradições com o modelo das “duas Itálias”. Enquanto o país territorial preserva o que há de mais estéril e falso, os exilados formam a Itália generosa e criativa. Maja Mikula acredita que Battisti não aceita esse modelo, pois, em suas obras, a eterna fuga ofereceria uma mera ilusão de progresso, refutada pela experiência frustrante seguinte. Mas, esse pessimismo não é radical e nos romances recentes se percebe que, para além da lama das instituições e a covardia de seus chefes, existem figuras corajosas e ternas, que permitem pensar num futuro melhor.

A Fase da Fuga

Minha fuga sem fim, escrito durante a travessia entre a França e o Brasil tem duas partes. A primeira conta, em linguagem autobiográfica e realista, sua vida desde a infância na família comunista, até 2004, quando foi obrigado a abandonar os 14 anos de apaixonado namoro com Paris. O livro faz apenas breves menções ao México. Aqui, seu estilo é direto, ameno, rápido, rico em comentários e descrições expressivas, com um toque de carinho por suas personagens.

Esta parte tem 5 capítulos: Adeus às Armas, a Captura, a Prisão, o Cerco e a Evasão. Neles, Battisti faz uma revisão esquemática, porém dinâmica e ilustrativa de sua vida, incluindo uma curta referência a seu afastamento do stalinismo familiar e seu ingresso e saída da luta armada. Todos os capítulos oferecem uma descrição coerente da evolução do processo, num estilo que (talvez sem nenhuma razão objetiva) eu encontro similar ao de alguns trechos de Hemingway, como The Butterfly and the Tank e outros contos da Guerra Civil Espanhola.

Cesare conta sua amizade com Pietro Mutti e sua mulher, e a emoção do amigo que queria, mas não podia, abandonar a luta armada. O relato mostra uma sóbria simpatia que não se mistura com nenhum rancor contra o camarada que se tornaria mais tarde seu principal delator. Nos capítulos seguintes descreve sua vida na França, tanto nos aspectos doces como nos amargos.

Battisti enfatiza o apoio afetivo de sua família italiana a sua mulher e suas filhas. Revela a ternura simples de seus irmãos camponeses, que não acreditam que um país sério como a França possa engolir as mentiras da Península, e que acham engraçada a acusação de homicídio contra aquele que, quando criança, se apavorava pela matança de um frango para o almoço do domingo. Os membros do que ele chama “uma família unida ‘à italiana’” não podem crer que aquela vendetta já dure 25 anos, apesar de terem sido criados na sociedade onde esta palavra foi inventada.

O período da prisão e da evasão é, ao mesmo tempo, rico e sintético, e um resumo dele equivaleria ao texto dos capítulos. Muitos sentimentos que manifesta sobre o presídio e sobre as figuras que por ele desfilam (detentos solidários, guardas amigáveis ou rudes, burocratas indiferentes, mas nunca anjos nem demônios) são similares aos de seus personagens de livros anteriores, mas aqui não há um pingo sequer de ficção. O parágrafo final é iluminativo: o antigo internacionalista se comove ao abandonar Paris: “[cada vez] mais certeza eu tinha de que não bastava a pequenez de alguns poucos políticos para fazer da França um país pequeno” .

Alguns críticos não entendem aspectos simples deste livro, como o caráter virtual de muitos grupos armados, cujas siglas podiam ser “confiscadas” por qualquer um, especialmente por magistrados e policiais que as usavam para rotular aqueles que lotariam depois suas cadeias e seus cadafalsos .

Na segunda parte, Battisti é representado por Augusto. O estilo vira mais simbólico, e a trama e a relação com o tempo é mais complexa. O assunto é a viagem ao exílio, uma longa trajetória onde o autor encontra personagens e histórias que oscilam entre a ficção e a metáfora da perseguição real.

Ser Bambu é narrado em primeira pessoa. Na figura da brasileira Áurea, uma espiã ao serviço de seus perseguidores, misturam-se lembranças reais com um leve toque surreal. Há uma nova menção aos fatos narrados no livro anterior, mas também maiores indícios sobre as origens de sua vocação literária.

O cenário é um lugar do “terceiro mundo”, onde os populares falam com os estrangeiros em francês. As geografias variáveis de outros livros aqui variam sem dar aviso. Augusto deverá percorrer uma dúzia de países antes de chegar ao Brasil, e alguns deles situam-se na Ásia. No capítulo 5, cita uma frase de certo “Matha”, que pode ser um mosteiro hindi ou uma pessoa indiana, e mostra uma multidão comprando passagens para viajar no teto de um trem, algo comum na Índia.

As lembranças de fatos reais são ofuscadas pela contínua análise de Áurea, que escancara os medos, as vaidades e a solidão do fugitivo, para o qual as mulheres parecem difíceis de entender. Longos monólogos reconstroem parte da vida de Áurea, e os diálogos afundam na intimidade de ambos. Nesse fluxo de imagens, ele se foca no bambu, aquela cana flexível cuja capacidade de adaptar-se o delicia tanto quanto irrita Áurea. Ela coloca os desafios que o fugitivo queria ter-se colocado a si mesmo, e o mais duro deles parece ser a religião.

A narração minuciosa, com poucas personagens e diálogos, com muitos monólogos e reflexões, sugere o impacto sofrido por Battisti ao passar por terras exóticas. Áurea lhe conta que matou seu amante, e ele lembra que só uma vez viu morrer uma pessoa próxima. É uma alusão ao fato de ter sido privado, na prisão italiana, de saber da morte de seu irmão mais velho, Giorgio, e de seus pais. Um sádico magistrado se recusou a lhe repassar as mensagens em que sua família informava dessas mortes. Mas isso só está explícito em Minha fuga sem fim. Em Ser bambu, o leitor deve deduzi-lo.

Ser bambu
parece indicar uma pausa na fuga e um encontro com a consciência do escritor. Mas o novo livro Ao pé do muro volta ao estilo de descrição realista, invadido sempre pela lembrança de algumas mulheres.

O Muro e a Parede

O romance percorre vários níveis. No mundo “real”, o autor conta sua vida na prisão de Brasília, os hábitos e as conversas dos detentos, e alguns fatos especiais como a revista feita pelos carcereiros para abalar a moral e, às vezes, também os corpos.

Desse mundo real surgem também estórias breves que os próprios detentos contam. Com frequência, a pintura do presente é combinada com a volta ao passado, onde o autor lembra sua chegada ao Nordeste Brasileiro, a viagem ao Rio de Janeiro e os sentimentos que as novas experiências despertam. Qualquer narração estará sempre sob a influência do sentimento mágico e contraditório produzido por uma jovem mulher que se tornara sua amante, cuja imagem quase onírica entra nos intervalos entre os relatos.

O título de Ao pé do muro, no francês original, é Au Pied du mur, que pode significar “estar ao pé do muro”, como estão Battisti e seus colegas, no quintal do presídio brasileiro, tomando sol, falando e (exceto ele) jogando baralho. Mas também pode ser “encontrar-se encurralado”, equivalente ao aforismo brasileiro “estar contra a parede”. Chegou-se a um lugar onde não é possível continuar, mas o fugitivo não quer se entregar. Então, a fuga acaba e começa a batalha pela liberdade.

Na fase anterior de sua obra (1993-2003), o autor descrevia pessoas que lutavam por sua subsistência, que atacavam e roubavam, mas que tinham tido antes disso um projeto “político”. Agora, seus colegas de prisão são infratores comuns, diferentes dos chamados “presos políticos”, que as elites tratam às vezes com menos brutalidade, porque a comédia da democracia exige alguns sacrifícios dos poderosos.

Tanto no cárcere de Brasília, como na vida livre na cidade do Rio, o autor se defronta com uma realidade mais dura que a da Europa repressiva na década de 70. A narração é uma visão aguda, profunda, desprovida de rancor, de um mundo em que a liberdade e os direitos mais simples (amar, ter um espelho, comprar remédios para sobreviver) formam uma utopia que só alguns sortudos atingem.

Sem pieguice, o texto mostra a simpatia do autor pela humanidade daquelas pessoas empurradas a um mundo infernal onde, apesar de tudo, tentam manter sua dignidade. Eles nunca brigam quando jogam, mas podem matar-se pela propriedade de um fósforo. Eles tratam o gringo com afeto, mas se apavoram com seus hábitos esquisitos: não gosta de baralho, novela ou futebol, usa caneta e óculos, e lê algo que não é a Bíblia.

Essa simpatia é também uma autocrítica. Battisti reconhece sua rigidez inicial, que não entendia a sensual candura do povo brasileiro, sua vaidade corporal, sua alegria infantil, seu cristianismo pagão. Simpatia e deslumbramento marcam a lenta descoberta do Rio de Janeiro, uma cidade única, que o autor descreve com lampejos de sabedoria popular. Algumas reflexões sobre a noite carioca, as diversões dos pobres, os “corpos suados”, as notas do samba, a euforia peculiar do Carnaval, as mulheres fascinantes, a naturalidade do sexo, raramente foram descritas com tanta precisão por um estrangeiro.

Ele se recorda da vida livre, mobilizada pela conversa com Zeca, o colega de cela, e revive as lutas de quadrilhas nos morros, a extorsão da polícia, as vítimas dos confrontos entre traficantes, mas também lembra que ninguém corre grandes riscos nas favelas, se não for membro de uma gangue rival ou da polícia, pois o tráfico mantém sua ordem paralela e dá à população aquilo que o estado nega.

Transparece na narrativa a cordialidade simples da vida na prisão, onde os seres humanos se mostram tal como foram forjados pela sociedade. Mas Battisti não se debruça sobre questões sociológicas e prefere a rápida reflexão emocional. Assim, ao referir-se a Zeca, um antigo jagunço do pantanal, percebe seus sentimentos:

Seu olhar se encobre de repente com uma doce tristeza. “Doce tristeza” não deixa de ser insólito para um matador de aluguel, não é mesmo?

Algumas reflexões são notáveis, como a do capítulo 2, em que tenta definir sua própria identidade:

[Eu era] Um gringo que tinha cortado fora metade de suas raízes, a outra metade secando sozinha e se agarrando a tudo para se manter.

Battisti se afina com a ingenuidade dos populares: eles não entendem como esse “gringo” de olhar brincalhão e sorriso permanente, possa ser o Bin Laden italiano, o superterrorista difamado ad nausem pelos muitos políticos, magistrados e comunicadores que habitam as mais hediondas sarjetas. Seus colegas, que se consideram simples “bandidos”, não compreendem como um sujeito tão perigoso, que inspira tortuosas vinganças em tiras de três países, pode ser custodiado por apenas um policial. Então, eles descobrem que aqueles perseguidores italianos são pessoas desprezíveis. Cesare faz uma reflexão singela, aliás muito moderada: eles são muito menos venenosos que alguns dos que se acham capazes de julgar e legislar.

No capítulo 4, há outro toque profundo do autor na complexa psicologia dos reclusos. Ele percebe a maneira como os homens privados da liberdade, desprovidos do cheiro da vida (reduzidos, eu acrescentaria, aos corpos que se acumulam na Casa Morta de Dostoiévski), podem chegar a um total desespero e tornarem-se capazes de matar. Essa vida, que é ao mesmo tempo banal e misteriosa, pode evocar as reações mais puras, como o pranto pela morte de um dos companheiros.

Um de seus colegas se indigna quando pensa que, se os franceses trocaram Cesare por um contrato com a Itália, os brasileiros seriam capazes de trocá-lo pelo “colarinho branco” que vivia em Mônaco. A conversa emigra para vários assuntos e acaba recaindo no futebol, num momento em que Battisti consegue começar a entender a paixão do brasileiro por algo que para ele é indiferente. Seu companheiro se emociona ao comparar o futebol brasileiro com o italiano, e diz não acreditar que o escritor considere esse esporte o “ópio do povo”, mas que o que realmente acontece é que os italianos têm medo da seleção brasileira.

Porque para a gente – a essa altura ele já está em pleno Maracanã – o futebol é dança, não é geometria, sabe, e a bola segue o nosso compasso, é óbvio.

Cesare entende, porém, que o recluso realmente não acredita no perigo da troca dele por Cacciola, e que apenas falou no assunto para “passar adiante sua angústia”. O escritor conclui: “ele não é pior que qualquer um de nós”.

Discussões sociais e religiosas são o forte do convívio com os detentos. Zangado, porém paternal, um dos reclusos adverte que ele (Cesare) é ateu e deve estar tomado pelo diabo, pois só o diabo pode fazer o que Battisti faz: mesmo estando errado, sempre tem a resposta certa. Os prisioneiros também se recusam a aceitar que no país dos gringos existam pessoas “sem teto”, e que corpos congelados sejam encontrados no inverno nas ricas cidades europeias. A miséria é só para os países pobres, e por isso eles precisam tanto de Deus…

Alguns trechos poderiam ter sido escritos por Dickens: é delicioso o diálogo do autor com um dos colegas, que quer saber direto como ele faz para criar um romance, se já tem as idéias na cabeça, como surgem os enredos, e assim em diante. Battisti reconhece que muitas vezes se fez a mesma pergunta. E se autocritica: “Todo operário, de qualquer tipo, deveria ser capaz de dizer com toda a clareza como procede para realizar sua obra.”

O trecho final do capítulo 6, onde Battisti relata (com objetividade, sem indignação, apenas com alguns toques de ironia) o sádico vandalismo da gangue policial carcerária durante a revista do xadrez, é tão articulado que, por si só, faria este livro memorável. Em 1374 palavras (na tradução) o autor decifra um lapso de terror, cuja duração não sabe especificar. Nesse lapso, tudo acontece: o arrombamento da cela, a humilhação dos detentos, a destruição de seus míseros pertences, os gritos insanos dos guardas, o estalo dos cassetetes nas grades e paredes, a promiscuidade dos corpos, o ar carregado de incertezas, a decepção dos reclusos após a hecatombe.

Existem muitas narrações pessoais da vida em prisão desde Boetius, passando pelo Marquês de Sade, Oscar Wilde e outros, até chegar a Soljenitsin e ao nigeriano Saro Wiwa, mas são escassas as obras que retratam a brutalidade carcerária sem dramatismo, extraindo de sons, movimentos e visões ofuscadas pelo medo um quadro tão completo da barbárie policial como este. O papel dos presos como cobaias, os gestos e pequenos movimentos que antecipam o ataque, os efeitos psicológicos desta cena demencial permitem a quem nunca viveu algo semelhante, “sentir” as atrocidades na pele como poucos outros livros. Eu só seria capaz de comparar este fragmento de Battisti a Dostoiévski , Jack London , Malcolm X e George Jackson .

A narrativa de Ao pé do muro combina estes momentos de realismo implacável com lembranças que tanto descrevem a própria realidade vivida pelo autor, quanto seus sentimentos sobre ela ou, ainda, suas reflexões sobre si mesmo e seus fantasmas.
À medida se desloca pelo Brasil, o autor tenta compreender a história dos lugares. Na periferia do Rio depara com a profusão de seitas evangélicas e entende esse florescimento incontrolável, matizado com propostas políticas, como uma natural reação popular contra a crueldade usada pelos jesuítas quatro séculos atrás para curvar índios, negros e pobres em geral.

Ao sabor da exploração do Rio durante aqueles meses de liberdade, aprende a conviver com o hedonismo e a apreciá-lo, a deslumbrar-se com a pele luxuriosa dos foliões, a descobrir quanta emoção subjaz a essa sensualidade. Mas, isso não elimina a paranoia. Ao sair com uma doce garota da praia, se pergunta se ele próprio gostaria que suas filhas saíssem com um “velho”. Aliás, suas filhas… como estariam agora?

Battisti é alvo também do feitiço intenso do Carnaval, do qual, como do futebol e das festas religiosas, de início tenta fugir, ficando em casa:

Estava, na verdade, me protegendo do encanto irresistível desse país ao qual não podia entregar minha existência, não fazendo mais que deslizar em sua superfície.

Às vezes, seus pensamentos voltam muito no tempo. Lembra a compra do passaporte francês de um legionário da Guiana, e a misteriosa gentileza da polícia federal quando de sua chegada a Fortaleza, quando os agentes retiveram por alguns minutos aquele passaporte, para, segundo eles, “ativarem o código de barras”.

A visão real dos rostos marcados pelas privações dos camponeses sem terra do nordeste se cruzam com a recordação do amigo Enzo, que, na Itália, muitos anos antes, salvou sua vida ao tirá-lo da área de fogo de um fascista armado. Mas, as lembranças falam também dele mesmo: de seus pesadelos, de algo que não sabe se é realidade ou paranoia, dos inimigos vencidos mencionados por Nietzsche, que voltam para se vingar acordando na noite suas fugidias vítimas.

As favelas fazem parte contínua das lembranças. Bronzeado pelo sol, enfraquecido pelo cansaço, quase esmagado por sua pesada AK47, aparece Jonas, um menino de 12 anos, consumido pela maconha e pelo crack, que, com seus ganhos por 15 horas diárias de vigilância consegue comprar os caríssimos remédios de que sua mãe precisa para que aquela vida miserável e brutalizada possa durar um pouco mais. O Capítulo 9 não é piegas, aliás, porque absolutamente nada neste livro é piegas. Todavia, traz um quadro tão tocante da miséria cinicamente oculta ou distorcida pelas elites, para cujos esbirros qualquer pobre é criminoso, que não pode comparar-se às descrições melosas e conformistas da maioria dos escritores brancos.

Após a morte de Jonas, Battisti deixa algum dinheiro para sua mãe, e sente que aquilo foi hipocrisia. Hipocrisia, por quê? Acaso ele não foi sinceramente solidário? Aqui surge, lacerante, a angústia de todo ativista que sabe que os sobreviventes de nossa geração guardam em algum recanto da alma, quase com medo, a luta por um mundo mais humano.
Além da evocação da realidade vivida, o escritor descobre uma realidade desconhecida, como aquela da Amazônia, através do relato de Bruno, um dos mais recentes detentos que, de uma posição social melhor que a de seus companheiros, vivendo naquelas terras do norte, havia matado um agente do IBAMA. Aquela morte foi um fruto maluco da confusão entre ciúmes, medos e os mitos que abundam naquelas terras. O capítulo 12 se enche de pitorescas festas camponesas, dos misteriosos botos que copulam com as mulheres, e das milenárias lendas indígenas.

Ao pé do muro é rico em imagens humanas e emocionantes, muito mais que qualquer obra anterior de Battisti, mas alguns tre¬chos são excecionais e obrigam a recuar aos grandes clássicos para encontrar quadros dessa magnitude.

Reflexão Final

Ao pé do muro é o romance mais amadurecido de Cesare Battisti. Enfatiza ainda mais (mantendo o ceticismo sobre as instituições da primeira fase da sua obra) a comunhão com os valores humanos, como a solidariedade e a exi¬gência de liberdade. As pessoas que são proscritas continuam sendo personagens centrais, colocadas agora num cenário cujo frescor e criatividade mostram um mundo diferente.

Lembremos que, no original italiano de L'Ombre rouge (já em 1994), Battisti diz:
Un giorno o l'altro lascerò la Francia e attraverserò l'oceano verso ovest, inseguendo il sole morente. In un tramonto che non finisce mai, dove la gente applaude la fìne del giorno e ha gli occhi che sorridono.

Um dia ou outro deixarei a França e atravessarei o Oceano na direção do Oeste, seguindo o sol moribundo. Num crepúsculo que jamais acaba, onde as pessoas aplaudem o fim do dia e têm os olhos sorridentes.

Na época, ele não conhecia o Brasil, mas a referência aos povos que aplaudem e aos olhos sorridentes pode referir-se ao México ou, em geral, ao Novo Mundo. Aqui as pessoas vivem uma vida mais brutal e injusta, mas aquela massa escrava e sem direitos, aquele 80% proscrito e marginado, é o que dá ao país sua essencial bondade.

Como na fase francesa, também neste novo livro os protagonistas não visam vencer, nem ser reconhecidos, nem superar o caos… nem poderiam. Nos velhos tempos, o objetivo da violência era salvar-se da destruição física e moral propugnada pela aliança da Igreja, o fascismo e o stalinismo; não era tentar substituir seu despotismo por um poder novo.

A luta armada deixou de ser um método, mas os motivos para a rebelião ainda existem, pois o rebelde não quer tornar-se moeda de troca na sociedade mercenária magistralmente descrita por Erri de Luca . Não quer ser delator, vingador, falsa vítima, cúmplice de torturadores, magistrados e políticos.

A obra de Battisti é, também, uma luta contra o fetichismo. A nação é toda a Humanidade, e nenhuma pátria, mesmo “socialista”, pode substituí-la. Não existem anjos nem demônios, heróis nem bandidos, vítimas sagradas ou caçadores abençoados. Muito menos mártires e santos, produtos do terror popular. O único comunismo é o conjunto dos humanos solidários que quebraram todas as correntes, que abriram todos os Gulags. O único crime é a limitação da liberdade e do pensamento.

Isto explica a absurda caçada sem fim. Battisti não é herói, porque não existem heróis, e não é um anti-herói porque não existe o “anti” do nada. Ele é um símbolo, criado por seus próprios inimigos, a direita clássica e a nova direta ex-stalinista. Suas obras denunciam um mundo desumano e infame, dominado por alcaguetes e algozes. A sociedade esclarecida que criou o Renascimento, o direito Iluminista e a ciência experimental, permanece refém do fascismo, da Igreja, da Máfia e do ex-PCI. A única luta possível é a difusão da consciência, que, se a civilização durar o suficiente, acabará esvaziando o poder policial, militar e confessional, que só existe se houver covardes que o sirvam, e ignorantes que acreditem em seus milagres.

Obras de Battisti

Até agora, Battisti tinha publicado 15 romances e 5 estórias curtas, dos quais há três em português deliciosamente traduzidos por Dorothée de Bruchard. Muitos foram escritos inicialmente em italiano, porém, sendo que apenas quatro conseguiram circular pela Itália, mencionarei por seu título em francês todos os que tenham sido traduzidos para nessa língua, salvo para os três traduzidos ao português, que serão citados em vernáculo. A data é da primeira edição.

Romances:
1. Les Habits d'Ombre (Gallimard, 1993), trad. Gérard Lecas.
2. L'Ombre Rouge (Gallimard, 1994), trad. Gérard Lecas.
3. Bu¬ena Onda (Gallimard, 1996), trad. Gérard Lecas.
4. J'aurai ta Pau (La Baleine, Paris, 1997), Episódio 58 da Coleção Le Poulpe. Trad. Arlette Lauterbach.
5. Nouvel an, nouvelle vie (Mille et une Nuits, 1997)
6. Pixel “Copier Coller” (Flammarion, 1997), trad. Anna Buresi
7. Dernières Cartouches (Gallimard, 1998), trad. Gérard Lecas.
8. Jamais Plus sans Fusil (Editions du Masque, 2000), trad. George Lecas.
9. Avenida Revolución (Rivages, 2001), trad. Arlette Lauterbach.
10. Vittoria (Eden Productions, 2003), trad. Mariette Arnaud.
11. Le Cargo Sentimental (Joëlle Losfeld, 2003)
12. L'Eau du Diamant (Editions du Masque, 2006), trad. George Lecas.
13. Minha Fuga sem Fim (Ed. Martins, 2007), trad. Dorothée de Bruchard.
14. Ser Bambu (Ed. Martins, 2009), trad. Dorothée de Bruchard.
15. Ao Pé do Muro (Ed. Martins, 2011), trad. Dorothée de Bruchard.

Breves histórias incluídas em coletâneas:

1. Quattro passi di danza, em: Daniele Brolli (compilador) et al. Italia odia, Mondadori.
2. Super Snail in Action, (trad. Sonia Fanuele & Catherine Siné), em: Serge Quadruppani (comp.) et al. Portes d'Italie (Fleuve Noir, 2001).
3. Choice, em Gérard Delteil (comp.) et al. Noir de Taule (Les Belles Lettres, 2001).
4. L'air de Rien, em: J.P. Pouy (comp.) et al. Paris Rive Noire (Autrement, Paris, 1996)
5. “A la Tienne, Marlo!”, em Battisti, C.: (comp.) Terres Brûlées (Rivages, 2000).

*Carlos Alberto Lungarzo é membro de Anistia Internacional e professor titular da UNICAMP