Xenofobia institucional contra a imigração na Espanha?

Para explicar a noção de imigrante construída pelo Direito de imigração concebido na maior parte dos países de recepção (como é o caso dos Estados Unidos e da União Europeia), muitos de nós preferimos acudir uma vez mais à metáfora da estratégia de Ulisses diante do Polifemo, tal e como nos narra o Canto IX da Odisseia: “Meu nome é Ninguém”.

Por Javier de Lucas*

Em efeito, de acordo com a visão puramente instrumental própria das políticas migratórias provenientes desses países, os imigrantes – e entre eles, de forma particularmente aguda, os imigrantes irregulares – se veem restringidos a ocupar não apenas a periferia, mas um “não lugar”. É o espaço próprio dos “Senhores Ninguém” porque nossa mirada (aquela que reflete o Direito da imigração que criamos nesses países) os convertem em “infrasujeitos” ou simplesmente em “não-sujeitos” e, como tal, invisíveis.

Assim, relegados ao privado, se lhes nega presença em espaços públicos (fora do horário de trabalho, e isso se é que estão trabalhando e não desempenhando economia clandestina, hipótese em que passam a ser também laboralmente invisíveis) e se lhes obriga a um status que pode ser caracterizado como “subordiscriminação”, pois se acrescenta à discriminação em razão de um status jurídico e de acesso a direitos, também a discriminação em condição de dominação.

Nesse sentido, de um lado, como sujeitos não iguais, uma vez que sua presença só é necessária conjunturalmente, seus direitos são negociados ou fragmentados e é criado um status de vulnerabilidade no qual não gozam dos mesmos direitos que os cidadãos, nem de idênticas garantias. De outro lado, como estrangeiros que, no fundo, são indesejáveis (o preconceito incutido nas políticas de gestão para imigrantes é o de que estão aqui provisoriamente e não podem nem devem se estabelecer entre nós) não podem ter direitos a decidir: somente sofrem a lei, sem participar de sua elaboração. Pior ainda que os metecos em Atenas, novos escravos, não conheço melhor explicação para descrevê-los que o esplêndido oximoro criado por Abdelmalek Sayad: “presença ausente”.

Pois bem, o modelo de gestão da crise que conduz a União Europeia, a denominada “troika” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, FMI) e suas contínuas exigências de reforma de austeridade dirigidas à Espanha, faz o atual Governo espanhol reincidir no processo reducionista que nega aos imigrantes a igualdade no direito a ter direitos. Primeiro foi o desaparecimento, no projeto orçamentário de 2012, do Fundo de Apoio à Acolhida e Integração de Imigrantes (pouco mais de 60 milhões de euros) que o Governo central atribuía às Comunidades, Autonomias e Prefeituras. Mas isso somente foi a primeira de uma bateria de iniciativas de restrição, até os limites da anulação, dos direitos sociais e políticas de exclusão dos imigrantes da integração entendida como igualdade de direitos.

Assim parece confirmar a medida adotada pelo Governo espanhol no dia 20 de abril passado. Com efeito, no Conselho de Ministros dessa data, alinhado com o citado objetivo prioritário de austeridade, já convertido em dogma (na Espanha esse objetivo foi elevado nada menos que à categoria de princípio constitucional, como resultado da reforma constitucional relâmpago pactuada em setembro de 2011 por Zapatero e Rajoy) e sob pretexto da necessidade de conter gasto injustificado de recursos públicos provocados pelo denominado “turismo sanitário” (que, por certo, é praticado não tanto pelos imigrantes – que obviamente não dispõe de recursos para serem turistas – mas pelos europeus que chegam à Espanha com esse propósito), apresentou-se um projeto de Decreto Lei de medidas urgentes para garantir a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde.

O objetivo é uma modificação na atual “Ley de Extranjería” (Lei relativa aos Estrangeiros) a fim de introduzir, como requisito para o acesso ao sistema de saúde, a necessidade, entre outros critérios, de estar em situação de residência legal. O Governo restringirá o acesso ao sistema de saúde pública aos estrangeiros na Espanha, o que afetará especialmente aos imigrantes irregulares (em torno de 500.000, segundo estimativas), porque já não lhes bastará os registros municipais (“empadronamientos”) para obterem o cartão de saúde (“patrón municipal”), como ocorre desde 2000 pela reforma aprovada pelo Governo de José María Aznar. A partir de agora, o Executivo matizará as condições, segundo assinalou a ministra de Saúde, Ana Mato.

Um porta-voz do ministério acrescentou que “os estrangeiros deverão demonstrar que de verdade vivem na Espanha, trabalham aqui e pagam seus impostos”. Mato explicou que o Governo lutará contra o abuso ao sistema de saúde pública espanhola por parte dos estrangeiros. Nem Mato nem seu ministério sabem especificar como essas políticas afetarão aos milhares de imigrantes irregulares que já possuem a carteira de saúde.

A justificativa da medida parece triplamente demagógica: por um lado porque segue a ardilosa estratégia que desgraçadamente teve tanto êxito na opinião pública – como acabamos de ver no primeiro turno das eleições presidenciais francesas – e que conecta a crise econômica à presença da imigração: trata-se de fazer crer que a chegada e a presença estável de imigrantes são a causa que desencadeia ou, ao menos, fator coadjuvante ou acelerador da crise, quando na realidade os imigrantes são vítimas da mesma.

Em razão do modelo neoliberal de gestão da crise (que conduz à mencionada troika), é difícil argumentar que a crise traz tempos difíceis e duros para todos, tempos que nos fazem evocar as cenas descritas por Dickens, mas que são ainda piores para os imigrantes. E é demagógico que, como já mencionei, embora não sejam os imigrantes quem protagonizam esses abusos do sistema público de saúde, a mensagem dirigida à opinião pública (“cortamos a gastança, os abusos provocados pelos imigrantes”) terá um efeito estigmatizador que é a dimensão mais profunda dessa demagogia: estigmatizar os imigrantes, semeando assim xenofobia institucional.

O reconhecimento do direito à saúde dos imigrantes, no artigo 12 da vigente Lei relativas aos Estrangeiros (Lei Orgânica 4/2000) aproxima-se de modo positivo à consideração de um direito universal que, como tal, deve ser garantido a todo ser humano com independência de sua situação administrativa. A lei estabelece que os estrangeiros inscritos no sistema municipal “têm direito à assistência sanitária nas mesmas condições que os espanhóis”. A partir da reforma, somente quem comprove que contribui fiscalmente de modo adequado, como imigrante residente legal, poderá disfrutar dessas prestações. Somente se excetuam (o contrário seria puramente barbárie) a assistência de urgência, a maternidade e os cuidados como menores.

A resposta a esse desaforo pode ser lida na manifestação da Federação Estatal SOS RACISMO, dirigida à opinião pública e que transcrevo em sua literalidade: essa medida “1º Supõe um grave retrocesso na conquista de direitos sociais por parte da população imigrante desse país; 2º É uma medida inconstitucional à luz da sentença que o Tribunal Constitucional proferiu no ano de 2007 contra um intento similar, por parte do Partido Popular, de restringir o acesso a direitos fundamentais para o coletivo de imigrantes em situação irregular; 3º A crise econômica, a pesar de sua gravidade, não pode ser desculpa para esvaziar os direitos das pessoas migrantes, pois que conduz à fratura dos princípios da universalidade e da igualdade, reitores do acesso a direitos fundamentais, como o acesso à saúde; 4º Esta medida, unida a outras, coloca o atual Governo na onda de outros países europeus de populismo e racismo institucional que deixará um rastro de exclusão social e conflitualidade e que terminará contaminando a todos e todas nós.”

Este último é, insisto, o mais grave. A UE parece incubar inconscientemente o ovo da serpente. Se Le Pen obteve o respaldo de quase 20% do eleitorado, isso ocorreu em grande medida porque o Governo de Sarkozy cultivou monotematicamente o argumento da imigração como ameaça. São essas políticas as que semeiam o ódio, não a presença dos imigrantes.

*Javier de Lucas é catedrático de Filosofia do Direito e Filosofia Política. Membro do Instituto de direitos humanos da Universidade de Valencia. Especialista em temas de imigração.

Fonte: Carta Maior