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Cap. XXIII – A primeira tarefa

Dormiram ali mesmo. Ninguém os interrompera no repouso ligeiro. Sabiam todos que o sono no meio da madrugada era o único analgésico para quem se esgotasse no tranco das ladeiras; fora o único indício de solidariedade. Inteiros, com as costas no parapeito, e vulneráveis à recusa dos moços a seus desígnios de integração social.

Com o dia, na cantaria exposta, meia dúzia de negras tapioqueiras socando mandioca nas frigideiras sobre o braseiro dos fogões. O comércio de loló sumira feito morcegos reclusos.

Caetano, o primeiro a abrir os olhos, olhou para Gertrude com estranheza. O sol incidindo sobre o lábio inferior, pondo em relevo uma tira labial fina, arriada, deixando cair uma gota de saliva colada na carne. Não queria, ele, reter na memória a imagem da baba. Não fosse sua intervenção, a baba cairia na blusa transparente, na altura do bico do sutiã imperceptível. Enxugou o lábio de Gertrude. Maújo deu-se conta da inquietação, não evitou olhar o busto da ex-amante, lembrando as tetas piongas que abocara. Caetano, grave, viu-o revolvendo a memória. Pela primeira vez, incomodou-o a certeza de que, no passado não distante, seu camarada tivera familiaridades com o par de peitos de Gertrude.

Na noite da rumba cheia, Chica surgira como a solução para o impasse entre Maújo e Gertrude; separara-os sem saber da separação iminente. Surgiu agora como uma pomba feliz, para dar-lhes bom-dia na manhã da terça-feira de carnaval; deu solução ao impasse simultâneo, de memória, entre o ex- e o atual parelho de Gertrude. Gertrude foi a única a não se dar conta.

A Veraneio passou devagar; os homens, de cigarro no canto da boca, catando suspeitos, qualquer um, que servisse para provar a eficiência de sua desconfiança.

– Como soube que estávamos aqui? – perguntou Gertrude.

– Quem não dormiu em casa nem na tarimba do Distrito, na Sé dormiu com os mosquitos. Aprendi com os capoeiristas.

– Não queríamos dormir aqui. – juntou Maújo – Fracassamos no cerco ao Palácio de Edu. Queríamos saber até que ponto ele desfruta de influência sobre a comunidade. Mas ele nos enganou com uma conversa sobre…

– Sobre cerimônia de casamento com a bênção de Ogum – adiantou Caetano, tão objetivo quanto um pajé.

Chica já conversara sobre o casamento no salão de sagrações. Nada dissera a Maújo; mas riu, riu do embaraço que ele tivera com Edu.

Desceram pela Saldanha Marinho. O desjejum fora preparado pela velha Teotônia.

Tinham fome. Chica se recusara a comer na casa de Bajado. Deu a cada um, a velha, uma toalha para o banho. “Para tirar as quizilas da Sé”, disse-lhes. Sobre a mesa da cozinha, dispôs cuscuz, macaxeira, pão de centeio e guisado de vitelo. Chica tomou suco, chupou rodelas de abacaxi. Beberam leite com café, leite vindo de Tracunhaém.

– É uma oferenda? – perguntou Maújo.

– É a ceia da terça-feira de carnaval.

– Na terça tem essa fartura. Devíamos ter vindo no sábado gordo…

– Ela faz isso porque é a terça, é a despedida do carnaval. Não gosta do ruído dos tamborins na frente da casa – explicou Chica.

– Durante o dia eu não me incomodo. De noite zelo pelo sono. O único quarto da casa forrado é o meu. Tranco a porta e boto protetor de ouvidos.

– Nunca brincou carnaval?

– Gosto da Flor da Lira; é um bloco que toca sem fazer zoada.

– É o bloco das opções – referiu-se, Gertrude, ao auto-recrutamento de Chica.

– Opção de vida! – reforçou Maújo.

Às onze horas o largo do Amparo foi reocupado para a carneação pagã. A velha Teotônia, vencida nos anos, de sentido apurado, sabia do desvario. No passado, fartara o ouvido da sobrinha com recomendações de mulher. Quando moça, assustara-se sob moitas, em becos escuros. “Evite urinar em canto de muro”. O pudor da maturidade encolhera o uso de expressões chulas. Não sabia, a velha, que os dois casais, de convívio novo, tinham exorcizado o cabritismo na via pública. Se fodessem sob uma moita, seria pelo conforto de não terem que ir ao aposento distante. A um só tempo, apropriavam-se de si mesmos e despojavam-se da educação antiga. Chica, odiando por instinto o comportamento de moças virgens, absorveu nos três a espreita de uma vida sem segregação.

Subiram a ladeira de São Francisco. A comédia se repetiu como no carnaval anterior. Com um riso escasso para não se pilharem no ridículo. Sob o sol do meio da tarde, compraram roletes de cana-caiana, sacos de pipoca; pipoca doce para a cura do enfado. Os quatro, ao mesmo tempo, convenceram-se de que o passeio fora agendado em suas vidas.

Sentaram sob a palmeira imperial ao lado do seminário. Não havia foliões nem alvoroço de blocos, só o ruído vindo da Sé. Ali mesmo podia ser aberta a primeira reunião da base do Guadalupe, com Chica, sob o nariz do arcebispo. A Veraneio, circulando embaixo, não daria conta de quatro morigerados cidadãos, distantes da cegueira incivil das ruas.

Assim se deu. Gertrude, solene, falou-lhes; falou mais para Chica:

– Camaradas, a base do Guadalupe se vê fortalecida com o promissor recrutamento da artista Francisca, agora camarada artista. Ela veio da Zona da Mata, filha de operário metalúrgico, herdou do pai o instinto de classe do proletariado. Artista plástica por opção, transmite em suas esculturas o traço distinto de sua personalidade. Tem por elas o mesmo amor com que cerca amigos e o povo de onde tira sua inspiração. Camarada Francisca, receba com honra a primeira tarefa que marcará pelo resto da vida a sua militância. Com o massapê tão familiar a suas mãos, molde homens e mulheres. Todos artesãos, segurando estiletes, ferramentas de uso diário, todos na rua, viris estatuetas de mãos levantadas, acusadoras, condenatórias do secretário que tentou impor limites à criatividade de sua lâmina sobre o barro. Uma multidão de artesãos em passeata!

– O que lhe parece? – perguntou Maújo a Chica.

Os dois casais sentados um distante do outro, o bastante para serem ouvidos.

– O quê!? – sobressaltou-se Chica.

– Imagens do mesmo tamanho de suas surubas. Uma multidão de artesão em assembléia, no Alto da Sé. Todos com aventais na cintura, pincéis, estiletes, quicés. A revolta nos rostos contra o secretário. Não precisa fazer o rosto do secretário. Só a revolta dos artesãos da Sé contra o secretário.

– Assim… de repente.

– Você agora é do Partido. Será sua primeira tarefa.

– E depois, devo vender?

– Não. Deve doar a um museu para que o trabalho seja apreciado pelas gerações. Uma denúncia a partir do barro!

No fim da tarde despediram-se com ânimo pré-insurrecional.

Maújo, no dia seguinte, encontrou a editora com o pior dos humores; por certo não reencontrara o folião disposto a adivinhar-lhe as carências. Costa Neves, cujos intestinos permaneciam invulneráveis a tumores, não perdera o deboche.

– O lexicógrafo está bem-disposto, vai fazer a revisão do Novo Testamento!

– Com prazer eu passaria a tesoura na sua língua.

– Não teria graça. Eu ficaria mudo e você não teria um texto para ocupar o seu grafite.

– Seu fim seria a depuração da espécie. Tenho uma sugestão: suicide-se para o bem da humanidade. Um suicídio eloqüente, atirando-se do último andar do prédio.

– Ainda não será dessa vez que você fará a revisão da matéria sobre minha morte.

– Não, eu não tiraria uma vírgula da nota sobre a sua morte.

– Está dramático o lexicógrafo. Ainda a influência de Mercedes Rosa Borges?

– Não. É raiva mesmo.

Maújo foi para o Gambrinus. Costa Neves não o seguiu. Aproveitou, ele, para fruir na imaginação a paródia de artesãos revoltosos.

Voltou para casa, não encontrou Chica; foi à casa da velha Teotônia. Havia um recado com a empregada; fosse urgente ao hospital ali perto. Chica não estava bem, saíra de casa sangrando. Quando ele chegou, o médico já tinha feito a curetagem.