França tem seu « Fora Collor » pelas urnas

O socialista François Hollande acaba de ser eleito, para um mandato de cinco anos, o novo presidente da França com estimados 52% dos votos. A última vez que a esquerda ganhara uma eleição presidencial tinha sido em 1988, no segundo mandato de François Mitterrand, que durou até 1995.

Guilherme Cavalheiro*

Sarkozy e a precarização do trabalho

Diferentemente de 1981, quando os socialistas chegam ao poder em clima de euforia, esta noite foi marcada por um grande alívio. Mesmo que mergulhadas numa crise orçamentária gravíssima, dentro de um cenário econômico europeu nada promissor, as classes populares francesas têm muito o que comemorar. Afinal, não foi nada fácil suportar os anos de presidência de Sarkozy.

Antigo ministro do interior de Chirac, responsável pelo combate à criminalidade, o candidato da direita republicana francesa ganhou em 2007 as eleições presidenciais numa disputa acirrada com a então esposa do atual vencedor, Segolène Royal. Naquela época, Sarkozy tinha em mente ser a Margaret Thatcher da França. Jovem, esportivo, ele seduziu o eleitorado com um discurso que pregava modernização e também sensibilidade social. Entre suas metas, acabar com a lei socialista que limita o trabalho semanal a 35 horas. Seu ímpeto neoliberalizante era o primeiro traço que lhe fazia lembrar o nosso Fernando Collor. Jovem, com um estilo informal, Sarkozy conseguiu dominar a candidata socialista, parecendo estar mais perto do povo. Por que ?

De fato, Sarkozy representava sim, um certo povo dentro da direita. Dentro de uma tradição francesa onde um dos passaportes essenciais para ser candidato à presidência é possuir um diploma de ensino superior entre algumas poucas Universidades de prestígio (aqui chamadas de grandes escolas), Sarkozy era um simples advogado formado pela Sorbonne. Nada comparável ao diploma da Escola Nacional de Administração de Segolène. Com um vestibular draconiano, a ENA é fonte de traumatismos para muitos homens políticos na França, que tem em seu currículo uma reprovação no seu exame de entrada. Sarkozy nem sequer tentou se apresentar, possuindo « apenas » um mestrado em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris, «Faculdade» de Ciência Política que serve como « cursinho » para quem pretende entrar na ENA. Ora, Sarkozy sempre pareceu querer representar os derrotados do sistema educacional elitista francês no interior do mundo político, mostrando um certo gosto pelo revanchismo social. Seu choque com Segolène foi-lhe favorável. Todavia, depois de cinco anos de governo, o que mudou para que ele perdesse, justamente contra o ex-marido da sua primeira rival ?

Segundo o Pravda francês, digo, Le Figaro, o povo francês reprovou o estilo de Sarkozy, não a sua política… Esta avaliação, feita a poucas horas atrás é típica de uma classe dominante francesa que perdeu os anéis mas não quer perder os dedos. Na verdade, o estilo de Sarkozy era intrínseco ao seu conteúdo. Agressivo, Sarkozy não hesitou em usar termos chulos ao se comunicar com seus opositores. Diante de um senhor de idade, que se negou a apertar a sua mão, o então presidente lhe respondeu «cai fora pobre idiota!». Esta fórmula tinha funcionado na sua primeira campanha, quando ele se referia a delinquentes, dizendo que ia limpar os bairros populares da escória com uma lavadora kärcher… Mas já presidente, falar assim com um distinto vovô, «pegou mal», como diria o falecido Chico Anísio, representando «Tim Tones». As gafes foram inúmeras, a primeira delas, talvez a única engraçada, foi lhe ver aparentemente bêbado discursando num encontro europeu, após ter sido supostamente embriagado com vodka, numa entrevista com o presidente russo. Mas o estilo Sarkozy foi apenas uma embalagem em tempos de crescimento da extrema direita européia. E o povo francês reprovou também o que se encontrava dentro do pacote.

Entre as suas medias impopulares, a principal delas foi uma medida chamada escudo fiscal, que beneficiou as grandes fortunas francesas. Em segundo lugar, o aumento da idade legal para a aposentadoria que passou de 60 a 63 anos. Esta segunda teve forte oposição da população, que não conseguiu, nas ruas, impedir o aumento do tempo de trabalho. De forma geral, a sua política não teve muito de diferente de todos os governos de direita : absenteísmo do Estado diante da subida desenfreada dos aluguéis, diante da necessidade de construção de moradias populares, diante de necessidades sociais cada vez mais gritantes em função do desemprego e da crise econômica. Não renovando o quadro do funcionalismo público, empregando um funcionário para cada dois que se aposentavam, Sarkozy atingiu os pilares do Estado de bem-estar francês. Educação, saúde e educação foram os setores que mais sofreram em sua gestão. Neste ponto, se ele queria ser como Thatcher, ele conseguiu se aproximar dos tristes recordes negativos dos campeões do neoliberalismo, ao lado de Reagan. Não nos esqueçamos que na era deste último, pela primeira vez nos EUA, a taxa de mortalidade infantil conseguiu não somente parar de diminuir como aumentar. E os estragos de Sarkozy ainda estão por se medir. Na França de hoje existem cerca de 500 mil sem teto. Vendo a fila do sopão dos pobres receber cada vez mais famílias e agricultores, o eleitorado francês não foi apenas guiado pela embalagem Sarkozy.

Se o poder aquisitivo das classes trabalhadoras abaixou nestes anos e a pobreza aumentou, os lucros das grandes empresas francesas apresentaram números extraordinários e os salários dos grandes executivos bateram também seus recordes positivos. Este crescimento das desigualdades não passou desapercebido pela ainda politizada sociedade francesa. Nesta campanha do primeiro turno, a grande estrela ascendente foi o candidato Jean-Luc Mélanchon do partido de esquerda (Parti de Gauche), dissidente do Partido Socialista. Aliado com os comunistas, seu candidato, brilhante orador, formado em filosofia, dominando todos os grandes temas econômicos, soube recolocar o debate político no âmbito da esquerda. Mélanchon passou de 3 à 11% dos votos, sendo o quarto colocado no primeiro turno. Nesta Frente de esquerda, a social-democracia representada pelos socialistas teve que responder a várias críticas históricas dos comunistas mas, mais do que isto, a direita francesa sofreu bastante com o reforço de artilharia que o PCF trouxe à disputa eleitoral. Infelizmente, a perspectiva de um terceiro homem de esquerda depois de Sarkozy e Hollande foi uma esperança que desapareceu na ameaça neofascista.

Sarkozy, com seu discurso securitário, orgulhava-se em 2007 de ter roubado os votos do Front Nacional, partido de extrema direita. Se em 2002, Le Pen havia surprendido o PS, indo para o segundo turno contra Chirac, em 2007, ele ficara em quarto lugar, atrás do centrista Bayrou. Todavia, o que aconteceu entre 2007 e 2012 ? O governo Sarkozy tournou-se um porta voz da xenofobia. Diante de incidentes envolvendo policiais e jovens, o presidente prometia a perda de nacionalidade francesa para os criminosos que atentassem contra a vida de policiais. A combinação de Le Pen, onde estrangeiro é sinônimo de marginal estava reestabelecida… Com seu Ministério da Imigração e Intergração Nacional, os « atentados » contra o espírito republicano de seu antecessor Chirac foram multiplicados. O golpe final deu-se entre o primeiro e o segundo turno. Como Marine le Pen, filha do antigo bufão Jean-Marie, chegou em terceiro lugar, com 19%, Sarkozy não titubeou e voltou a defender os princípios da extrema direita. Mas exagerando a dose, o quinto colocado, Bayrou, que seria no Brasil, o Pedro Simon dos bons tempos, teve que se posicionar e, abandonando o centro, declarou seu voto a Hollande. Do outro lado, na extrema direita, Marine le Pen preferiu, mais pudica que o próprio presidente, declarar-se surpresa com tanta falta de escrúpulos…

A tomada de posição de Bayrou lembrou-me a tomada de posição de Covas, Simon e Fogaça em 1989, logo após o heróico primeiro turno do PT contra Fernando Collor. Todavia, na França a baixaria política de Sarkozy não chegou a baixaria moral de Collor como nos últimos dias de campanha. Ao contrário, Sarkozy foi triturado por Hollande no único debate televisivo. Nervoso, agitado, procurando irritar o socialista, o candidato da direita derreteu-se diante da consistência moral e técnica de uma esquerda que soube bem planejar o seu golpe de misericórdia. Em cada item proposto pelos jornalistas, o candidato do PS tinha sempre o número exato. Desmentindo o presidente, corrigindo-o em assuntos econômicos e do direito administrativo, Hollande se credenciava como estadista diante de um provocador que deixava o poder de forma lastimável.

Se tivéssemos que resumir estas eleições, o que diríamos ? Existem dois tipos de políticos que entram para a história. Os que agem por princípio e os que agem pelo oportunismo. Hollande dá fortes indícios que faz parte do primeiro tipo e, se assim se confirmar, entrará na história da França como o estadista que reestabeleceu a justiça social depois de 17 anos de governo de direita. E Sarkozy ? Após sua corrida desavairada pelos votos de Le Pen, dando armas a uma xenofobia que é a base do novo fascismo, o presidente filho de imigrante rompeu a linha de honra que a direita republicana francesa mantinha, desde de Gaulle, com a extrema direita. E se aos homens de princípio, a História pode lhes retribuir com a glória, aos oportunistas a tragédia pessoal nem sempre lhes é estranha. Sarkozy não foi deposto como Collor, muito menos foi declarado inelegível, mas deve aguardar alguns processos envolvendo o financiamento de sua primeira campanha eleitoral que começam a tomar relevo no meio jurídico. Condenado ou não a posteriori, o que nos faz lembrar a era Collor foi a raiva do eleitor neste domingo cor de rosa primaveril na França : « cai fora pobre idiota ! », foi o grito que saiu das urnas, nos fazendo lembrar de que « quem com ferro feriu, com ferro foi ferido. »

*Guilherme Cavalheiro é leitor no Departamento de Estudos Lusófonos na Universidade de Nantes, responsável pela matéria «Ideologia neoliberal e imprensa escrita brasileira» no programa de mestrado Intermediação cultural e comunicação internacional.