A lógica do censor

Tese de doutorado da jornalista Andrea Limberto Leite, defendida na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), examina a censura ao teatro entre 1930 e 1970, flagrando a interdição a expressões e subentendidos referentes a hábitos e costumes

Por Glenda Almeida

Censura ao teatro

As censuras sobre textos de peças de teatro revelam que na sutileza de uma figura de linguagem se articulam os temas que mais perturbam a sociedade, e principalmente sua ordem moral vigente. A fim de desvendar e entender a lógica da censura, ou seja, por que o que é censurado chama a atenção do censor, a jornalista Andrea Limberto Leite folheou, leu e analisou os documentos do Arquivo Miroel Siveira (AMS) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), que abriga 6.137 processos de peças de teatro submetidas à ação censória no estado de São Paulo entre 1930 e 1970. Andrea é autora da tese de doutorado Coincidências da Censura – Figuras de linguagem e subentendidos nas obras teatrais do Arquivo Miroel Silveira, defendida em 2011 na ECA / USP.

Desse processo foram selecionadas dez peças que haviam sido liberadas depois de passar pelo crivo do censor mas que tiveram alguns trechos cortados. Essas peças foram escolhidas qualitativamente, entre outras peças nas mesmas condições, parcialmente liberadas, com cortes.

Segundo a jornalista, o censor, imbuído da função de escolher o que podia ou não ser exibido e apresentado, ao cortar um simples trecho, expunha as concepções preestabelecidas do seu contexto sociocultural sobre o que era obsceno, o sexo, o adultério, o tabu, a perversão, a pobreza, a fome, o estrangeiro, o incesto e muitos outros assuntos que julgava polêmico. Como introduz a pesquisadora, “o teatro é o lugar de congregação, polêmica e debate”.

Andrea escolheu as peças nas quais havia figuras de linguagem cortadas, e não somente palavras “secas”, que apareciam “sozinhas”. “Não pretendíamos estudar a censura de palavrões, por exemplo”, explica a autora. “E sim, tentar entender por que uma palavra como ‘beijo’ era cortada caso estivesse associada a outra, como ‘prolongadamente’.” Nesse sentido, a pesquisa investiga como a forma escolhida pelo autor para organizar as palavras pode motivar censura.

Segundo a jornalista, as figuras de linguagem dialogam com os sentidos e significados que circulam socialmente em uma determinada época, o que exige da pesquisa uma compreensão sobre o contexto histórico no qual a produção da peça está inserida.

“Muitas palavras acompanhadas por outras, que, juntas, formam um sentido particular, específico daquele contexto, causam perturbação em quem faz o corte, principalmente se relacionadas ao âmbito do “subentendido”, e dos diversos significados que as figuras de linguagem são capazes de abrigar. De acordo com o estudo, nesse contexto estariam os pressupostos e a crença de que essas palavras incitariam o espectador a fugir da conduta social.

Critérios

Deslocando a crítica sobre a censura para os dias atuais, Andrea destaca que é possível descobrir quais os conteúdos com os quais a sociedade brasileira tem problemas de lidar ao discutir, por exemplo, os critérios para se estipular uma restrição etária a um filme. De acordo com a jornalista, esses temas considerados polêmicos preexistem antes de o censor censurar palavras, ou peças inteiras. “Isso mostra que o censor não tem todo esse poder de determinar o que é ou não adequado para os espectadores. A própria sociedade diz a ele”, conta a autora.

O estudo levanta, inclusive, a figura do censor, até certo ponto, como coautor daquelas peças submetidas à censura, sugerindo uma espécie de negociação entre quem escreve e quem faz os cortes. “É evidente que temos perdas quando uma figura é retirada, mas pode haver espaços por onde o mesmo conteúdo pode ser deslocado e chega para o espectador.” Segundo Andrea, ao mesmo tempo que o censor reforça os tabus da sociedade ao estipular o que fica e o que sai do texto, mantém uma autoria combinada, deixando que outras expressões continuem, passando despercebidas.

A autora afirma, porém, que eles seguem uma lógica para censurar, que está sempre integrada com o regime político da época, baseada no que já apareceu sobre o que seria “correto” para a sociedade. No entanto, as análises dos documentos mostram que “sempre há mecanismos de resistência”, que, no caso de um texto, podem vir pelas figuras de linguagem. Como relata a jornalista, “o conteúdo das palavras censuradas desliza pelo texto, procurando outros lugares pelos quais pode ser revelado”.

A homossexualidade e a condição da mulher são exemplos de assuntos problemáticos. “É importante e atual discutir sobre o que hoje nos causa incômodo, que ainda faz parte dos critérios para se cortar a cena de um filme, ou para estipular uma restrição etária”, lembra a pesquisadora. “Podemos pensar sobre quais as ‘brincadeiras’ e figuras de linguagem são permitidas no nosso contexto, lembrando que nós sabemos articular os conceitos.”

No AMS, há peças produzidas em diversos períodos políticos, até o ano de 1968: no governo de Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas, na ditadura militar, entre outros. De acordo com Andrea, isso mostra que a censura, pensada como interdição, é um processo contínuo, que acontece mesmo se vivemos em um período democrático. “Escolhemos as décadas de 1950 e 1960, pois nelas encontramos a maior incidência de censura, tendo sido considerados textos produzidos até 1968”, explica. “Constatamos que houve manutenção dessa incidência tanto em regimes militares quanto em períodos democráticos.”

Fonte: Agência USP de Notícias / Imagem do Arquivo Miroel Silveira da ECA