Cap. XXVI Bajado comunardo

Carregando medos, ela entranhou a alma no massapê com a força das unhas. Julgou-se tão mulher quanto as outras, porque soubera escolher o parelho certo. Não confessara, não quis dizer o tanto de incompletude que o aborto lhe deixara. Mesmo agora, prenha, sentia-se assim.

Entranhou-se no massapê, amotinando-se contra a morte. Mais que antes, a terra mole lhe pareceu fonte de energia; emergiu-se nos vermes reais para soprar longe as assombrações da mente. A terapia, julgou-a tão benéfica quanto ruim. Imaginosa no artesanato, não evitou que o juízo entrevisse maus agouros.

– Você nunca foi de sonhos, pesadelos. Sempre foi impulsiva na vida real, no que toca, faz ou quando fala. Não viva o futuro no presente, viva a vida de agora que o futuro se mostra sem você pedir.

– Estou com medo de perder outra gravidez – disse a Maújo.

– Medo infundado. Está cheia de saúde, disposta. É só sua cabeça. Pense no trabalho para não ter ansiedade. A peça com os artesãos. Traga Bibiu de volta, no barro, liderando os artistas da Sé. Trabalhe o dia todo. Está mais divagando do que fazendo! Não pode apressar o parto antes da hora. No dia em que a criança nascer, com boca e olhos abertos, seus sonhos serão com gente viva! Quer apostar?

– Quero perder a aposta.

– Vai perder e ganhar muito mais.

Ganhou um carro de mão, de madeira, carregado de massapê trazido dos fundos da Igreja dos Homens Pretos, por um moleque de sua estima. Amassou a lama pastosa, olhando a gravura da revolução francesa, na parede. A mulher, com os peitos à mostra, à frente de um destacamento de comunardos. Urdiu o episódio em frente à prefeitura; pôs-se no lugar da revoltosa, moldou a si com as rendas do vestido na altura da cintura, os peitos de fora. Em lugar do fuzil na mão esquerda, uma pá com a lâmina redonda, respingando restos de areia molhada; na direita, trocou o pavilhão francês por outro, espécie de trapo com versos de Cecília Meireles. Não reproduziu o cabelo ondeado da parisiense, assentou um cabelame com mechas soltas, voantes. O rosto ficou de perfil, intimidando os camaradas artesãos atrás de si para a se guirem. À direita, trocou o homem de jaquetão azul, colete, chapéu-coco, as duas mãos segurando um fuzil, por Bibiu. Conservou o fio de barba aparado nas extremidades do rosto, vestiu-o com a camisa branca de seda, folgada, aberta ao meio, por dentro da calça de cetim creme; igualmente frouxa, a calça tão usada pelo artista. Substituiu a arma por um pincel numa mão, um cinzel na outra, as pontas para baixo, sinistras. O moço com duas pistolas, à esquerda do quadro, dir-se-ía um valente comunardo, reapareceu com as mesmas vestimentas, a boina em forma de bandeja na cabeça; com o rosto do moleque que trouxera o massapê. Tirou-lhe as pistolas, deu-lhe um par de machadinhas. No fundo, magotes de artesãos, ceramistas, cinzeladores, escultores, pintores, talhadores, cada um segurando instrumentos de uso na rotina do ofício.
 
Descalços, inclusive a mulher seu autorretrato. Com exceção de Bibiu; teve o cuidado de deixar-lhe um par de mocassins, apropriado aos pés m agros. Nenhum corpo estendido, nada de feridos, mas muita animosidade nos rostos. Ambientou tudo na Praça Monsenhor Fabrício, em frente à prefeitura. O busto da estátua ficou ao lado da mulher… Ou entre Chica e Bibiu. Moldou os bancos, os dois fícus altos, de copa larga, junto ao sobrado da esquina, do lado oposto da prefeitura. Olhando tudo de cima, na frente, tinha-se a impressão de observar a partir da sacada do prédio. Pintou tudo com cores vivas, iguais às de uso de cada um dos figurantes. Nos homens e mulheres da retaguarda, abusou de cores, inspirada nos quadros de Bajado. Quando achou que tinha terminado, levou para o pintor.

– Esses bonecos estão magros demais. Nos meus desenhos, todo mundo pula de barriga cheia, não cansa e não perde a alegria.

– Não estão pulando frevo, estão com raiva, protestando. Estão se defendendo de um ataque da administração, em frente à prefeitura.

– Estou vendo Bibiu e você. Não acha que está faltando alguém?

– !…

– Eu! Antes de morrer quero ir a uma passeata.

– Vou levá-lo, Bajado! Você vai na linha de frente. Será o único artista de barriga cheia na passeata. Feliz por estar junto de seu povo na grita dos artesãos.

Despediu-se.

Voltou uma semana depois com um ator a mais na marcha. No banco frontal à estátua, acomodara a imagem de Bajado; sorridente, com os poucos dentes à mostra, óculos de aro escuro, lentes grossas, escassos cabelos brancos. O rosto, o mesmo que expunha na janela de casa. Contrastou com os semblantes coléricos, incorporando os sitiantes da Bastilha. Chamou a atenção, Bajado, alegre com a chance de ver a prefeitura ocupada por artesãos.

– Por que não me botou em pé, marchando com os outros?

– Você nunca está com raiva, acha graça até numa marcha de cupins!

– Ele só tem raiva quando eu boto pouco sal na moqueca – disse dona Biu.

– Foi melhor assim, Bajado. Mesmo no meio da multidão furiosa, você não perdeu a graça. Seu bom humor é o consentimento do povo com a revolta dos artesãos.

– Oxente, Chiquinha… Isso vai acontecer? – interveio dona Biu.

Maújo entrara:

– Não, dona Biu. Mas pode ser o começo da união dos artistas. É apenas um quadro instigando a criação do sindicato… Quem sabe? Se isso acontecer, o secretário não vai mais se meter no trabalho dos outros, nem no de Chica.

Chica, insatisfeita, entronizou Bajado no passado de Olinda. Procurara n’O Romanceiro um figurante ativo para ser o alter ego do pintor; não achou. Com o bulício de Maújo, designou Bajado, descendente do caeté desconhecido, morto no incêndio das igrejas em 1631. Bajado viera de Maraial…

– Bajado, não vou expor a escultura agora. Ninguém deve saber. Deixo-a com você, para observar a intenção de cada boneco. Quando achar que entrou no espírito de cada um, pinte um quadro com os mesmo personagens, incluindo você. Teremos uma escultura de massapê e um quadro a óleo com os mesmos motivos. Ninguém vai esquecer! Nem o secretário.

– O secretário vai engolir um sapo de dois tamanhos.

Chica, no entender do parelho, seria a legenda viva do reduzido santuário do Guadalupe; mais agora, com o apoio dos pincéis e tintas de Bajado.

– E depois? – perguntou dona Biu, biruta.

– Depois vamos comemorar com moqueca de peixe! – gritou Chica.

Foram ao Guadalupe, os dois. Encontraram Gertrude e Caetano roendo pressentimentos, os agouros das ruas. Ouviram a notícia como o estalido de uma insurgência do outro lado do continente, navegando veloz para Olinda.

– Bajado, conosco! – quis ouvir muitas vezes, Gertrude.

– Nosso aliado! – Duas brasas nos olhos de Caetano.

– Não foi recrutado, mas juntou-se a nós para defender a livre criação dos artesãos – Maújo foi o mais comedido.

– Foi por minha causa, por minha causa e por causa de Bibiu, de quem era muito amigo. Bajado não sabe dizer não, tem um coração de ouro derretido para dar a forma a qualquer sentimento bom.

Falou e baixou a voz aos poucos, interrompeu-se de vez.

– O que tem você? – perguntou Maújo.

– Não tenho medo do que pode acontecer comigo, tenho medo do que pode acontecer a Bajado. Ele não é do Partido.

– Mas tem no coração os mesmos sentimentos de nossas idéias, de felicidade múltipla. Bajado é o bom cidadão refletido na sua obra. Ele não sabe, mas é contra o secretário. É incapaz de odiar o secretário, mas ficaria muito triste se o visse falando com Chica. Bajado tem tudo para ser um comunista. Sentado aqui conosco, sem dizer uma palavra, concordando com todos só com o sorriso. São Bajado! É o nosso ícone.

– Bravo, Maújo… Ele sabe disso? – A reunião não fora convocada por Gertrude, por isso quis recuperar o controle.

– Claro que não. Mas vai pintar um quadro celebrando a afinidade que tem com todos nós, mais com Chica e por extensão, conosco.

– Não há contradição entre o que pensamos e a simplicidade de Bajado – Caetano, sentencioso.

– O despojamento de Bajado! – gritou Chica, gritou e insistiu que examinassem as chances do que poderia acontecer ao amigo.

Caetano olhou para Maújo.

– Bajado não é do Partido, é amigo de quatro membros do Partido sem saber que são do Partido. Não podem prendê-lo por isso; mesmo porque, ninguém suspeita da existência do Partido aqui. Se descobrirem a base, a base será presa, não Bajado. Não ousariam puxar um fio de cabelo dele, sem correr o risco de suscitar a indignação da comunidade.

– Os homens da Veraneio são tão estúpidos… – lembrou Chica.

– Por isso mesmo. São tão estúpidos que se acovardariam na frente da fraqueza de Bajado.

– A cegueira fascista é capaz de horrores; por isso é covarde. Tem razão, Maújo – emendou Caetano.

– Bajado não é tão famoso, mas sua inocência, aos olhos da população, é a mesma de São José dos Pescadores carregado no andor. Não vão tocar nele. – deduziu Gertrude – Metralhar sua casa seria o mesmo que bombardear uma capela.

Chica, assustada:

– Nossa… Vocês já estão falando em metralhadora! Bajado não está escondendo Guevara em sua casa.

– Estamos conspirando a queda da pequena Bastilha à beira do Atlântico. Chica e Bajado vão se antecipar à tragédia anunciada – quase gritou, Maújo.