Cap. XXVII Revolta numa rua estreita?

Pintou lento, Bajado, no ritmo que o limitado alcance de seus olhos permitiu; começou com a praça, as duas árvores ao lado do sobrado, atrás. Tão acostumado a pintar bandeiras, estandartes, que entre uma árvore e outra, pôs um poste com bandeiras amarradas, pavilhões com dizeres, sentenças.
Chica assistiu aos esboços, temeu no início; pensou que dali sairia uma troça de carnaval. Quis falar, interromper, mas…

Bajado riscou os figurantes da marcha, a partir da retaguarda. Homens e mulheres barrigudos, gordos, pernas finas, todos com vassouras, pás, pincéis, martelos, formões, verrumas, puas; a maioria com avental branco, sujos, manchados; descalços uns, outros com chinelos amarrados aos calcanhares. As calças, azuis, folgadas na cintura feito velhos culotes. Ninguém nu da cintura para cima, com camisas ou camisetas abertas. Nas mulheres, desabotoou os vestidos, com dobras deixando ver indícios de corpetes, sutiãs; vestidos de brocado, com relevo em bordados azuis, combinando com as calças dos homens. Toucas brancas sobre mechas de cabelos escapando sob os laços; outras despenteadas, rostos para cima, de lado, para baixo. Não pulavam frevo, corriam tresloucadas. Surgiu uma multidão em marcha. Em cada rosto, misturo u alegria com birra, obstinação.

Chica sofreu sustos, apreensão; do meio para o fim, soltou risos, desmanchou-se de prazer, sentiu-se coautora.

Bibiu, cuja morte deixara Bajado conformado com a sua, surgiu com a vestimenta de costume; no canto inferior da tela, na frente. Conformou-o com a magreza que o seguira; a barriga, um pouco saliente, deixou-a escapar entre a blusa aberta. A boina descida para um lado da cabeça, com uma borla, livrou-o da aparência de pau-d’água frequentador de bodegas. Não pôs pincéis, mas dois bastões para serem confundidos com batutas de maestro. Conservou a fina barba, eriçou os pelos; no rosto, a marca do orgulho sereno, olhos fitos no alvo, concentrados.

Chica, a de carne e osso, viu sua prenhez surgir sem medos na frente dos revoltosos; os peitos, duas mangas, jazendo sobre a barriga exposta. Prenhez nua gritando. Bajado, como Bibiu, decorara os traços do rosto da amiga. As sardas no rosto inchado acentuando a prenhez.

Riu, ela, alisando a própria barriga, a cabeça do feto.

– Terá Chiquinha tanto leite assim? – assustou-se dona Biu.

– Quero leite, Bajado, leite muito.

Bajado pôs pingos em relevo, um branco amarelado escorrendo das mamas; pingos no vestido azul de rendas, arriado na cintura. Cabelos voantes, agitando-se. As pernas erguidas, endurecidas, uma na frente da outra, como numa marcha real. O vestido em dobras, desigual, cobrindo um joelho; o outro ficou à mostra. As mãos segurando um pavilhão branco, com pontas nas extremidades. Chica viu-se gorda, deformada, sem remorsos no rosto de sardas.

O moço comunardo foi desarmado das duas pistolas, ressurgiu meio-inocente, zombeteiro; nas mãos, uma vassoura de cerdas largas, cabo comprido para frente, em riste. O rosto loução em contraste com os homens transidos de cólera; olho assustado, fito no volume dos peitos de Chica. A calça, encurtada nos joelhos, dando liberdade aos passos.

Bajado fez a si mesmo sobre o banco na frente da estátua; sentado, como na estatueta de Chica. Calçou-se com o par de botas que usara no Cariri, cordões bem-amarrados. Pernas balançando na calça de barras cosidas, sem alcance no chão. A camisa abotoada por dois botões, sem seguir a sequência dos buracos; a gola alta de um lado, baixa de outro. A boca, sorrindo, mostrando os dentes desiguais; uma mandíbula inferior saindo entre os lábios. Decrépito, feliz com a iminente ocupação.

– A revolução é uma festa de pão e rosas! – gritou Maújo, jurando que daria um jeito de homenagear um líder que o ensinara a não ter medo de meganhas. Surgira de repente, ele.

– Aqui em casa só tem pão… – disse dona Biu.

– Pão para o povo, dona Biu! As rosas são a felicidade… Sua casa não tem rosas, mas tem os quadros de Bajado. Nos desenhos de seu marido, o povo sofrido não se dobra à tristeza; está feliz porque tem confiança no que faz.

Olhou para o quadro.

– Enquanto o povo, impaciente, toma de assalto a Bastilha, Bajado consente sorrindo. Bajado, eu vou me transformar numa tocha, vou me imolar descendo a Ladeira da Misericórdia. Vou avisá-lo com uma hora de antecedência, para você preparar tintas e pincéis. Ficará na esquina dos Quatro Cantos, de camarote. Será o sacrifício da vida em benefício da arte!

– Bravo, meu amor. Deve representar assim na calçada da Igreja de Santo Antônio do Carmo, com todo o povo sentado na praça, assistindo à peça Holocausto no Outeiro. À noite, de preferência, para que a tocha seja vista da amurada da Sé, do pátio do seminário. Seria chorado por nós, rezado pelo bispo, aplaudido pelo secretário…

– O secretário não aplaude, ele quer ser aplaudido. Zadock Costa Neves o aplaude todo dia numa máquina de escrever.

– Traga-o para fazer a cobertura do quadro de Bajado junto à escultura minha. Não pode me injuriar outra vez… Não sem injuriar Bajado também!

– Bajado tem imunidade.Você tem a unanimidade dos artesãos da Sé; isso incomoda o secretário.

– As beatas…

– Essas não mexem com mais ninguém; estão empapuçadas de orações. Ainda tem raiva delas?

– Agora nem tanto. Mas com o secretário eu me precavenho.

– Chiquinha, a revolução vai sair daqui de casa? – quis saber Bajado, sem nenhum susto.

– Por quê?

– Porque se for, vou ter que providenciar mais cadeiras. Aqui tem poucas.

– Não, meu amigo. Vai sair uma romaria para apreciar seu mais novo quadro. Todo mundo vai querer ver sua opinião sobre a revolta dos artesãos.

– Revolta numa rua estreita, onde já se viu?! – dona Biu.

– Não seja por isso. A procissão de São Salvador passa por aqui, o Homem da Meia-Noite também. Ninguém morre espremido. Há quanto tempo está aqui, com Bajado?

– Mais de cinquenta anos.

– Já reclamou de falta de ar?

– Quando ele chegava bêbo.

Ao fim, os copos tilintaram feito sabres em confronto. O quadro, junto com as imagens de Chica, foi posto na cozinha. Dona Biu os acomodou.

Chica cuidou da explicação:

– Para manter o segredo do quadro, dona Biu. Ninguém deve saber até que chegue ao museu.

Decidiram que o quadro e as estatuetas deviam seguir da rua do Amparo ao Museu de Arte. Chica e Bajado na frente da comitiva de artesãos, negras do candomblé e capoeiras. E Pedro Nolasco, presidente da Troça Carnavalesca Mista Cariri; ele e o presidente do Homem da Meia-Noite, o mesmo…

– Será um cortejo a caráter, com a gala própria de cada um – aventurou Maújo.

– O babalorixá, esse não precisa nem convidar; virá enfeitado de vodum – arriscou Gertrude.

– Os capoeiras virão com meio-quimono. As negras só se vestem com vestidos brancos e tiaras sobre a cabeça. A fita na cintura, a cor é de acordo com o santo de cada uma – explicou Chica.

A imprensa seria avisada por Maújo. Chica sugeriu para dali a um mês, a cerimônia; queria ganhar mais barriga, para a silhueta se parecer com a pintura de Bajado. Mencionou as Pretinhas do Congo, ela mesma iria chamá-las.

Tudo, a bem da tática de confronto simulado com o secretário.

A insistência dos jesuítas manteve o culto católico do Guadalupe, mesmo depois do incêndio. As cinco portas da igreja, fechadas durante a semana, sequer acolhendo a reza solitária da negra desdentada, esconjurando zumbis na desolação do largo. Da sede do Cariri, no oitão, vinham notas repetidas no desfile; seguindo um verso comum, decorado por velhos e moços. O sacristão, o padre oficiante, rezando na crença vã do evangelho pregado no estandarte. Notas de frevo ganhando a rua, ricocheteando na parede do Guadalupe, subindo no espaço livre, até os sinos. Os experientes, de ouvido apurado, distinguindo o conluio dos sinos.

Gertrude, Caetano, Maújo e Chica, peritos ainda imperitos no mister dos sussurros. Souberam tirar proveito da reza do pároco, do zelo do sacristão, do trombone na orquestra; urdindo, os quatro, a procissão dos zumbis vivos.