A herança de “Seo” Júlio Bezerra

" Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis" (Bertold Brecht)

Na noite do último sábado, 2.06, às 21:55 horas, atendi ao toque do celular e do outro lado da linha ouvi a voz angustiada do camarada Alcides: “camarada Miranda, não tenho notícias boas, papai acaba de falecer… Avise aos demais camaradas do PCdoB para o velório, pois certamente esse era um dos seus desejos de ser prestigiado pelos camaradas.”

No momento me contive, mas o baque foi grande. Eu que conheci pessoalmente Seo Júlio no idos de 1986, durante uma visita que fazia em Cuiabá, época em que estava concluindo o curso de agronomia em Goiânia.

Meu irmão Ronaldo Muniz e minha irmã Marinez Muniz, que residiam aqui, já me haviam falado dele com muito entusiasmo. No entanto, esse primeiro contato me cativou, pela sua conversa franca e descontraída. Ia contando sua história no Partido, segundo ele, iniciada aos 17 anos e em pleno regime ditatorial. Falava de sua trajetória. Parecia até que eu já o conhecia há anos!

Confesso que aquela “prosa” me deu mais convicções para continuar na luta pela reorganização do PCdoB e empunhar as bandeiras políticas pela redemocratização do país.

Posteriormente, em 1990, mudei para Cuiabá, e aí minha convivência com ele foi mais intensa. Inúmeras vezes estávamos juntos em viagens pelo interior para fazer filiações e construir diretórios, nas campanhas do sindicato dos servidores públicos de Cuiabá, nas campanhas eleitorais de nossos candidatos, nas manifestações e passeatas, pichações, etc.

Nas viagens com Seo Júlio o “tempo não existia”, pois seus causos e histórias faziam horas transformarem em minutos, segundos…

Mesmo analfabeto “das letras”, ele entendia e opinava com precisão sobre tudo… Enfrentava qualquer debate, mesmo com “letrados”, deixando muitos “no chinelo”.

A chegada dele nas reuniões, conferências e bate-papos era uma verdadeira “festa”! Sempre bem humorado, “pra cima” de alto astral… A juventude adora Seo Júlio, “zuava” todo mundo, com seu jeito de “menino levado da breca”.

Mas quando era preciso falava sério, “puxava a orelha”, seja de novos militantes ou de altos dirigentes.

Para ele, o Partido tinha que “falar a língua do povo” e deveria está sempre “junto do povão.” “Temos que deixar a preguiça de lado, temos que explicar para os trabalhadores o nosso programa, as nossas propostas, filiar mais gente…”, não cansava de “esbravejar” em cada reunião que participava.

Recentemente, quando um dos filhos decidiu deixar o PCdoB para tentar candidatura por outro partido, Seo Júlio foi enfático perante uma reunião com os camaradas de Várzea Grande “já falei para meu filho que ele tem meu apoio, pois conheço seu caráter e sei de sua seriedade, mais também já lhe alertei: não me convide para filiar a outro Partido, pois por mais que eu possa ter divergências pontuais, eu jamais sairei do PCdoB. Eu quero e vou morrer comunista!”

Além da dedicação e fidelidade ao Partido, tinha enorme dedicação à família, em especial aos filhos e filhas, netos e netas, e à Dona Olga, sua companheira de “vida toda”, a qual ele vinda redobrando os cuidados em função de uma doença que lhe deixou em cadeira de rodas.

Um grande desafio enfrentado por ele nos últimos tempos era aprender ler e escrever, que já havia “tirado de letra”, através de um curso da EJA (Educação de Jovens e Adultos), o qual frequentava disciplinadamente. Já começava a falar até em fazer universidade dizendo que “chegaria lá”.

Infelizmente, seu velho coração vermelho não resistiu a uma insuficiência respiratória, após 3 dias internado no Pronto Socorro Municipal de Cuiabá a espera de uma vaga na UTI. Algo que nos revolta e indigna, pois certamente poderíamos desfrutar de sua presença entre nós por mais algum tempo, caso tivéssemos um serviço de saúde pública mais eficiente.

Por ironia, faleceu no local onde havia dedicado grande parte de sua vida, pois trabalhava, antes da aposentadoria, como motorista da ambulância do Pronto Socorro, contribuindo para salvar inúmeras vidas!

O velho Júlio Bezerra, com seu coração grande e jeito de menino levado, infelizmente se foi nos deixando grandes saudades e ensinamentos de honradez, honestidade, camaradagem e persistência. Seu exemplo de vida e de luta é a nossa melhor herança que nos deixa, que se transformará em combustível para impulsionar nossa caminhada pela construção de uma sociedade democrática e socialista, sem explorados e exploradores, sonho diuturnamente perseguido pelo combativo camarada Júlio Bezerra da Silva.

Miranda Muniz – agrônomo, bacharel em direito, oficial de justiça avaliador federal e dirigente estadual do PCdoB/MT.