O espetáculo do tempo

Tic-tac. O tempo é implacável. Tic-tac. A cada segundo que passa, nos tornamos alguém diferente. Presente vira passado, futuro vira presente. Tic-tac.

Por Dilson Branco com reportagem de Nina Weingrill e Simone Cunha*

O espetáculo do tempo - Rodrigo Paiva

Surgem problemas, surpresas, emoções, realidades, desejos, e seguimos em frente, tomando decisões, trilhando caminhos, transformando e sendo transformados, muitas vezes sem nem perceber. Tic-tac. Alguns amadurecem jovialmente, outros envelhecem imaturos. Tic-tac. Fazemos planos, lutamos para colocá-los em prática, comemoramos êxitos, desistimos de tudo, sofremos derrotas, juntamos os cacos, reconstruímos a partir do zero. Tic-tac. E cada experiência deixa sua marca. Cicatrizes incuráveis para alguns, lições engrandecedoras para outros. Tic-tac. Envelhecer é inevitável. Para os pessimistas, é o mesmo que morrer aos poucos. Para quem sabe ver a beleza das coisas, é sinônimo de viver. Tic-tac.

Neuza de Carvalho tem 78 anos. Embora sua vida seja agitada, ela faz questão de reservar alguns momentos do dia para reviver as experiências pelas quais passou. Mantém dezenas de diários e pastas de fotografias que atravessam décadas, além de um blog (www.vovoneuza.blogspot.com), no qual transforma memórias em belos relatos. Ao resgatar as lembranças, ela enxerga como o tempo agiu sobre sua vida.

Ainda jovem, Neuza aprendeu a primeira lição básica sobre o tempo: tudo está em transformação. Aos 8 anos, filha de um guarda-livros e de uma bordadeira, viu sua única irmã, quatro anos mais nova, morrer. “Lembro do velório, da ida para o cemitério, das flores que levamos para ela”, diz Neuza. E recorda também como esse fato foi determinante em sua vida. “Mudou meu status em casa, a relação com meu pai e minha mãe. Sendo filha única novamente, eles me colocaram na linha de frente, dedicando a mim todos os cuidados.”

Mesmo sem muitos recursos, os pais de Neuza fizeram questão de mantê-la em escola particular. Dedicada, ela atendeu às expectativas. Aos 11 anos, ao contrário da maioria das vizinhas, que trocava o colégio pelo trabalho logo após o primário, Neuza seguiu com os estudos. Aos 20 e poucos anos, estava formada na faculdade de história natural e dava aulas. “Na época, esse raciocínio não era consciente, mas hoje percebo que muitos dos acontecimentos da minha juventude tiveram um ponto de partida na morte da minha irmã”, afirma.

Essas transformações que ocorrem ao nosso redor (e dentro de nós mesmos) são o que nos permite perceber a inevitável passagem do tempo. “A vida é o movimento de dois corpos que se relacionam: o corpo não pára de mudar o mundo, e o mundo não pára de mudar o corpo”, diz o professor de ética da Universidade de São Paulo (USP) Clóvis de Barros Filho. “Nós estamos sempre mudando. Essa mudança pode ser para melhor ou não, mas estamos submetidos a processos. Mesmo aquelas pessoas que não querem passar por essas transformações”, completa o filósofo Mário Sérgio Cortella.

Muitas outras mudanças se seguiram na vida de Neuza. Ainda na faculdade conheceu o primeiro namorado, Ayrton, com quem se casou aos 23. Aos 25, tornou-se mãe. Três anos depois, deu à luz seu segundo filho. Criou-os e os viu sair de casa para construir a própria vida. Aposentou-se. Por volta dos 60 anos, viu o marido, diabético, ir se despedindo aos poucos da vida. “Ayrton adorava mexer na casa, mas teve de ir parando. Ele sempre subia a escadinha e dava corda no relógio da sala, por exemplo. Até que um dia não pôde mais. Cada coisa que ele deixava de fazer era um passo para trás.” Em 2000, Ayrton morreu. “Desabei. Mas superei com o tempo e não choro por mais nada”, conta.

Se as mudanças são inevitáveis, sejam causadas por nós ou pelo ambiente em que vivemos, é preciso saber conviver com elas. “Toda mudança traz o risco do desequilíbrio momentâneo. As pessoas mais maduras conseguem administrar esse risco sem transformar o medo em pânico”, afirma o filósofo Cortella. E, como as coisas estão sempre mudando, é preciso manter um balanço constante. É mais ou menos como andar de bicicleta ou na corda bamba. “O equilíbrio está no movimento”, resume Cortella.

Poucos anos depois de se tornar viú­va, Neuza precisou buscar outro equilíbrio, após mais uma transformação que se impôs. Dessa vez foi a morte de sua mãe, já com 97 anos, de quem ela cuidou nos últimos anos de vida, que a obrigou a se reiventar. “O meu lado filha não existe mais. Isso trouxe um mundo de novas responsabilidades. Felizmente, outra faceta de minha personalidade aflorou com os anos: o lado da tolerância, da paciência e da empatia”, afirma.

Hoje, Neuza se mantém cheia de desafios. Em parceria com a prefeitura de São Paulo, cidade onde vive, oferece oficinas de resgate de memória para idosos, dá palestras sobre a história da metrópole e faz musculação, entre várias outras atividades. Após perder a companhia da mãe, passou a dividir um apartamento com um estudante de 25 anos, que conheceu espalhando cartazes pela USP. Envelhecimento, para ela, é algo natural: “Somos como um fruto, que vai amadurecendo, amadurecendo, até que uma hora apodrece e cai”. Mas ela não gosta da palavra velho: “É meio pejorativo. No ônibus, você já viu como eles identificam os velhos? Com uma mão na cintura e uma bengala, bem inclinado. Ah, tenha dó! Prefiro dizer que eu tenho juventude acumulada”.

Malabarismo com idéias

Mais do que uma expressão de efeito, “juventude acumulada” é uma boa maneira de resumir a forma ideal de conviver com o tempo. Acumular juventude, em vez de deixar-se envelhecer, é saber lidar com as mudanças da vida. “Essa é a única forma de a gente conseguir não ter um envelhecimento doentio”, afirma o psiquiatra Paulo Gaudêncio. E, para aprendermos a enfrentar as mudanças, é preciso entender como elas acontecem.

Segundo Gaudêncio, transformações se baseiam em idéias e estruturas. “O homem tem idéias, que são aspectos da verdade descobertos no decorrer da vida. Eu tenho uma idéia de religião, outra de profissão, outra de amor, por exemplo. E, para concretizar uma idéia, é preciso uma estrutura que lhe dê base”, afirma. Se a idéia for se tornar médico, a estrutura será cursar faculdade de medicina e abrir um consultório. Quando estruturamos uma idéia, vivemos um período de harmonia, de estabilidade.

Acontece que, passado algum tempo, surgirá outra idéia. A estrutura criada não terá mais função, e será preciso construir outra. Então chegamos ao momento inevitável de toda mudança: a crise. O que fazer: fingir que está tudo bem ou correr atrás da nova estrutura? A resposta define se você é um jovem ou um velho. “Eu chamo de jovens aqueles que caminham com a idéia, e de velhos aqueles engessados pela estrutura. Sem critério de idade – conheço jovens com 90 anos e velhos de 25”, afirma Gaudêncio.

Um bom exemplo disso tudo aconteceu alguns anos atrás na vida da paulistana Sandra Chemin, de 38 anos. Sempre muito rigorosa consigo mesma, quando jovem ela teve pressa em se formar na faculdade. “Na época do vestibular, meu pai falou para eu passar um tempo viajando, mas eu não quis. Cursei publicidade e administração ao mesmo tempo, e aos 18 já me sustentava”. Três anos depois, Sandra tinha a própria empresa. Aos 28, a vendeu para uma multinacional, da qual tornou-se executiva. A idéia por tanto tempo acalentada de construir uma meteórica e bem-sucedida carreira profissional estava pra lá de bem estruturada. Então surgiu uma nova idéia.

Aos 30 anos, Sandra conheceu o marido, Lucas. “Ele trouxe o sonho de volta à minha vida. Trouxe a esfera do sentir. Comecei a perceber que a cobrança por resultados no trabalho me fazia ver as pessoas como números de uma planilha”, afirma. No mesmo ano, ela engravidou. “Foi outro chamado para eu viver minha vida pessoal. Até então, estava enxergando apenas o valor do dinheiro. Quis outra vida”. Logo após Sandra receber a notícia de que estava esperando um bebê, Lucas soube que estava com câncer. Quatro meses depois, descobriu-se que os médicos haviam cometido um erro, mas a reflexão que a falsa doença estimulou impulsionou o casal a dar uma guinada na vida. “Lucas sempre sonhou em viver num barco, cruzar o oceano. E foi isso que decidimos fazer.”

Então foi a hora de construir a estrutura. O primeiro passo foi ousado: Sandra pediu demissão do cargo de vice-presidente executiva e passou a viver de suas reservas financeiras. “Caminhamos devagar. Compramos um barco e fizemos aulas de vela oceânica.” Após o nascimento da filha, Clara, eles se aproximaram mais do mar. “Fizemos todos os cursos de vivência a bordo com a Clara, para ver se ela se adaptava”, conta Sandra. Quando se sentiram seguros, experimentaram viver dois meses no barco, com um amigo, experiente professor de vela. Então, eles passaram mais um período de um mês, dessa vez sozinhos. “Quando a Clara completou 1 ano e um mês, nos mudamos de mala e cuia para o barco”, lembra Sandra. Ao todo, foram dois anos vivendo a bordo. A viagem começou na Inglaterra, passou pelo mar Mediterrâneo e foi concluída cruzando o oceano Atlântico, de volta ao Brasil.

Entre ter a nova idéia, construir sua estrutura e colocá-la em prática, não faltaram crises. Afinal, Sandra abandonou a carreira que havia passado boa parte da vida construindo. Logo ela, que sempre se cobrara tanto para atingir o sucesso profissional. “Havia a posição superbacana que eu conquistei no mundo da publicidade, havia meus pais dizendo ‘nossa, mas você vai conseguir voltar para o mercado depois?’, havia a responsabilidade de prover uma família, havia o fato de eu parar de ganhar dinheiro e começar só a gastar… Não foram questões fáceis de resolver.”

Vista de fora, a decisão de Sandra poderia ser avaliada como loucura. Não é o que normalmente as pessoas fazem, não é o que a sociedade espera, e enfrentar esses padrões exige energia. Só de pensar, muita gente trava. “Toda e qualquer manifestação social desviante é punida pela sociedade, e a punição implica tristeza. Mas a tristeza é enfrentada com a alegria de viver do modo como você decidiu. É o preço que se paga por essa escolha”, afirma o professor Clóvis.

Sandra pagou o preço e colheu os frutos. “A viagem me proporcionou grandes descobertas. Apesar de estar vivendo a época mais alternativa da minha vida, foi quando eu entendi a importância do ritmo, da organização, pilares da minha vida hoje”, afirma. Durante a expedição, Sandra engravidou da segunda filha, Júlia. A novidade levou a outra estruturação. Hoje, a família está morando em Paraty, no litoral do Rio de Janeiro, onde Sandra e Lucas dão aulas de vela e realizam passeios marítimos com turistas. Tudo em equilíbrio – pelo menos até surgir a próxima idéia.

Na roda da vida

Até certo ponto, André Tietzmann, 28 anos, viveu uma experiência semelhante à de Sandra. Desde muito novo, ele sonhava em trabalhar com desenho. Aos 16, quando morava em Vinhedo (SP), André começou a carreira de designer gráfico, ainda no colegial. Alguns anos depois, mudou-se para a capital paulista, onde entrou para a faculdade de design. Com o diploma na mão, foi admitido na maior editora de revistas do país. O trabalho era legal, o dinheiro era suficiente, mas algo o inquietava. “Mesmo antes de entrar na empresa eu já tinha a idéia de sair de São Paulo”, conta. Conforme o tempo passou, a vontade cresceu: “Eu não estava mais no clima da cidade. As coisas antes encantadoras, como as baladas, não me empolgavam mais.”

Então veio a idéia: morar na praia e passar um ano estudando suas grandes paixões, pintura e escultura. E ele começou a construir a estrutura. Durante um ano, André economizou o dinheiro necessário para se sustentar pelo período desejado. Ele se mudaria para São Sebastião, no litoral paulista, onde a família tem uma casa. Duas vezes por mês, voltaria a São Paulo para fazer cursos, comprar material, ver exposições. Poucos meses após completar 26 anos, André decidiu que estava na hora de partir. Pediu demissão e foi.

Se a atitude de André parece ousada hoje em dia, imagine décadas atrás. Caso pertencesse à geração de Neuza, a sociedade lhe ofereceria um roteiro padrão de vida, difícil de ser subvertido. A expectativa seria que, aos 26 anos, ele estivesse recém-casado, fazendo planos de ter filhos e comprar uma casa, começando uma carreira na empresa em que ficaria até se aposentar. Hoje, muitas outras trajetórias são aceitáveis. “Toda época tem suas tendências. Estamos cada vez menos obrigados a cumprir certos rituais, principalmente nas grandes cidades”, afirma o filósofo Cortella. “Isso tem a ver com a moral, que tem a ver com a proximidade entre as pessoas. Quanto menos contato, mais liberdade.”

É ótimo, não? Mas também torna a vida muito mais difícil. Se por um lado temos mais opções e maior liberdade de escolha, por outro tanta oferta multiplica o risco de enfrentarmos dúvidas na hora de escolher. “A vida era menos complexa há 30 anos porque nos colocava em contato com um número menor de possibilidades. Hoje temos mais vivências que nos seduzem o tempo todo, nos expomos a mais informações, e, portanto, vivemos mais crises”, afirma Cortella.

E André teve sua crise. Passado o primeiro ano na praia, no qual tudo havia corrido bem, ele planejava prestar serviços para empresas de São Paulo, trabalhando a distância, em São Sebastião. Era uma prática usual, ele sabia que outras pessoas faziam isso, mas na sua hora H não deu certo. “Exigiam que eu passasse temporadas em São Paulo, e eu não queria. Então vi que o plano tinha dado errado”, afirma. “Também não havia trabalho em São Sebastião, e meu dinheiro acabou. Passei a ser sustentado pelos meus pais. Bateu a depressão. Eu não sabia o que fazer. Me sentia um zero à esquerda, não conseguia falar com as pessoas. Entrei em crise existencial.”

André tinha uma estrutura falida, e nenhuma idéia no horizonte. Durante alguns meses, sentiu-se no fundo do poço. Mas uma hora se deu conta de que a crise tinha lá seu lado positivo. “Da crise fazemos um processo de reinvenção, que tem a finalidade de nos alertar para nossa fragilidade e sugerir que temos força para seguir adiante”, afirma Cortella. Influenciado pela namorada professora, André teve a idéia de dar aulas de artes plásticas. Montou um projeto de curso e levou às prefeituras da região. A administração de Caraguatatuba gostou. Por coincidência, sua namorada tinha uma casa lá, e então foi a hora de colocar em prática o plano de morar juntos. A primeira aula foi em fevereiro. “Não sei onde isso vai dar. Não sei se sou bom professor. Mas vou encarar. Se der certo, ótimo. Se não der, vou ter que recomeçar”, diz.

Talvez por tudo ser muito recente, André tem dificuldades em enxergar a dimensão da experiência que viveu — é o passar do tempo que nos dá distanciamento para ver as coisas de outra perspectiva. “Minha história pode parecer bonita, porque estou tentando viver meu sonho. Mas, quando a gente está passando pela crise, não vê assim. Não desejo isso ao meu pior inimigo, e não vejo como uma lição.”

Mas o psiquiatra Paulo Gaudêncio observa com outros olhos: “Ele foi morar na praia, viver só desenhando. Parecia lindo, mas não foi. Então foi fazer outra coisa. Perceber que uma estrutura está velha e construir uma nova é a essência da juventude”.

Fonte: revista Sorria