Zillah Branco: Consciência de cidadania no Estado

A primeira diferença entre o Estado como instrumento de domínio de uma elite ou o Estado como a institucionalização do poder do seu povo é revelada pelo comportamento dos seus funcionários, do balcão de atendimento aos chefes e diretores dos serviços.

Por Zillah Branco*

Isto será possível como resultado de um processo que revolucione a cultura, o comportamento social, a consciência de todos os agentes sociais para que aprendam a respeitar o cidadão com espirito de solidariedade e o desenvolvimento nacional para fortalecer a sociedade independente. É o que traduz a dignidade pessoal e nacional democrática.

Os brasileiros são herdeiros de uma cultura colonialista carregada de autoritarismo, quando em situação de mando, e de sujeição acovardada quando em condição de subordinado, gerada pela história imposta ao longo de cinco séculos de dependência nacional de poderes externos.

Com a prática da sobrevivência na penúria, aprendida com os povos aqui escravizados, souberam preservar como forma de resistência a alegria de viver e a poderosa inteligência criativa que abre caminhos para superar as carências. Os regimes políticos que se sucederam na sociedade oligárquica (que ainda perdura em setores da elite mesmo com o desenvolvimento de princípios democráticos que vagarosamente vão sendo institucionalizados), foram responsáveis pela omissão ou alienação mental de cidadãos que cumprem funções anti-éticas e até criminosas para garantirem o emprego público ou privado. São os que se consideram apenas "agentes" como se fossem instrumentos inconscientes comandados mecanicamente pelo patronato elitista.

A existência de tal cultura, que aceita o oportunismo e a quebra da dignidade pessoal e social em nome de uma obediência cega ao chefe, conduziu o país a incorporar como um fato histórico a "impunidade" que encontra fundamentação jurídica em leis que são obstáculos à plena democratização do Brasil.

O agente policial ou militar que tortura e mata um prisioneiro indefeso cumpre uma função criminosa e pode extrair prazer não só sádico, mas que lhe dá um momento de poder social como têm os ditadores. Um funcionário que nega tratamento de saúde ou conforto previdenciário a quem necessita para sobreviver, pode alegar condições burocráticas para permanecer omisso à solidariedade humana necessária, mas a verdade é que se tornou inútil à função pela qual é remunerado e lesa o Estado. São duas situações diferentes que têm em comum uma inadequação à função social que desempenham para o Estado e para a sociedade.

Também a mesma análise cabe a um funcionário de uma empresa privada, pois a função das empresas é atender à demanda social, seja pela prestação de serviços, como um banco ou agência turística, seja na venda de produtos para o mercado. Uma funcionária de um banco nega as informações necessárias para que a cliente realize uma operação bancária de compra de moeda estrangeira até que o valor cresça beneficiando o banco que vende a moeda mais cara. É uma ação criminosa de roubo, mesmo que a orientação seja da responsabilidade da direção do banco (este caso ocorreu e foi registrado na Ouvidoria do banco em 2012). O cidadão, simples trabalhador ou alto político, não pode sacrificar a sua dignidade humana em uma função social para receber uma recompensa, pois isto configura a corrupção que é crime.

O caminho para a expansão da consciência de cidadania foi revelado durante os anos negros da ditadura militar no Brasil em ações individuais ou de grupos isolados que procuraram atuar junto a comunidades mais pobres visando uma alimentação melhor para as crianças, formação de hortas comunitárias, soluções técnicas para construção de cisternas, produção de energia e recursos de saneamento, chegando a inspirar alguns municípios a praticarem políticas com participação popular, melhoria do atendimento escolar, discussão dos planos de desenvolvimento local. Mas, foi com a eleição de Lula em 2002 que o Governo aderiu explicitamente à criação de programas nacionais de democratização do Estado baseados no conceito de direito à cidadania.

A evolução deste processo exige uma preparação profunda que vai desde a mudança das leis e normas que orientam os serviços até à formação de um comportamento social coerente, pelos políticos e responsáveis e trabalhadores do Estado, que crie as bases para o exercício da democracia. O setor empresarial tem se adaptado à linguagem democrática criando na sua contabilidade uma despesa com o social e aderindo às normas de defesa da natureza que vão sendo preconizadas na sociedade.

Uma importante ação de alguns setores nacionais, como o judiciário, o da educação e do Congresso Nacional, foi a criação de canais específicos de televisão para informar e formar o cidadão com programas de alta qualidade e transparência. Como complemento, têm sido abertos sites para que o cidadão entre em contato pessoal com as estruturas dos ministérios e serviços públicos. No entanto, esta abertura ao cidadão nem sempre tem resposta que ultrapasse a velha burocracia omissa às necessidades do cidadão.

O Brasil, na sua lenta adoção de um regime democrático, caminha a passos largos quando aceita a participação popular e se arrasta quando estão em causa os interesses pessoais, e de classe, da velha elite política. A imagem do poder apresenta duas faces antagônicas e de ideologia democrática oposta. O vergonhoso espetáculo que temos assistido pela mídia de tentativas de julgamento dos freqüentes casos de corrupção ativa e passiva de altos funcionários do Estado e de políticos eleitos, dilui-se na memória nacional favorecido por manobras jurídicas que a atual estrutura judicial permite.

Enquanto isso, a população e suas organizações sociais e políticas exigem que os candidatos nas eleições nacionais tenham "fichas limpas" de processos e condenações criminais e assistem a uma fuga escorregadia das responsabilidades pelos poderes constituídos devidos a velhos hábitos de receber benesses que também pertencem à categoria da corrupção "oficial" do regime oligárquico que permanece colado no sistema político. A elite é uma espécie de carrapato imune aos ataques gentis da burguesia bem remunerada.

Debates sobre a necessidade de maior investimento nos setores sociais – educação, saúde e segurança social – são recusados no cálculo economicista que o Ministério da Fazenda faz, lembrando a crise mundial, o desinteresse da China pela importação de matéria prima brasileira, o enfraquecimento dos recursos do Estado e outras questões financeiras – mas não revela quanto investiu no comércio de carros (poluidores) pela isenção de impostos e nem o que deveria investir na produção siderúrgica nacional para utilizar a matéria prima que iria para a China e pode alimentar a economia nacional criando empregos e incorporando o valor do trabalho no produto.

Por outro lado, quando é autorizada a elevação salarial de uma categoria de trabalho não há coragem de rever a má distribuição de renda dentro dos quadros de funcionários que foram desequilibrados por privilégios inexplicáveis de um ponto de vista democrático. Assim, serão os mais bem pagos que vão consumir a verba aprovada acentuando as injustiças e as carências reais. Os setores sociais não podem ser vistos pela ótica do financista nem pode descartar, em um país em desenvolvimento como o Brasil, com grande parte da população vivendo miseravelmente, que deve destinar a maior parte do investimento governamental para dar as condições elementares de sobrevivência aos mais pobres antes de entregar o serviço de educação, saúde e segurança social de forma igualitária entre todos os que recorrem àqueles serviços.

Sintetizando, a consciência de cidadania deve ser exigida também, e principalmente, aos agentes do sistema político nacional no Brasil para viabilizar a implantação do regime democrático o quanto antes.

* Zillah Branco é socióloga, militante comunista, conselheira do Cebrapaz e colaboradora do Vermelho.