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Cap. XXXI – A conta já está paga

O que há de comum entre os Quatro Cantos de Olinda e um grotão?

No entender dos dois casais, eram locais apropriados a um ataque de surpresa, uma emboscada perpetrada por simulados ativistas. Gertrude assim urdira depois de ver a procissão dos Passos rastejando entre as casas; viu o povo demente com velas nas mãos, imaginou-o com paus e pedras, em marcha contra esbirros desorientados. A marcha não se deu, ela se pôs no lugar do povo, incorporou-o. Maújo a seguiu; a marcha com Bajado e Chica infundira-o de certezas. Caetano, inda que distante da aldeia, dissera que o local era propício para espalhar fagulhas. Chica reservou-se, mas urdiu suas estatuetas com vida, sentadas, em animada conversação nas quatro calçadas.

Nunca foram guerrilheiros, mas acreditavam-se dissolutos cidadãos da noite, acostumados a operações de sustos, de entupimento de veias de generais.

A história lhes fora generosa, brindando-os com um cenário acolhedor. O reclamo seria ouvido, lido pelo difuso proletariado de Olinda. Coube-lhes a tarefa de cobrir com letras pretas, os dois lados da rua do Amparo; impropérios contra os propósitos do secretário, duas frases, uma de cada lado. Susto para as beatas, seus cabos eleitorais.

Os quatro, desculpados do erro no carnaval, expiados, purgar-se-íam de vez na via sem contramão do futuro.

– Vamos todos para uma cerimônia no palácio de Edu, a caráter – sugeriu Gertrude.

– De madapolão !? – quis saber Caetano.

– Por que não? É o que mais se vê nessas ruas: homens e mulheres de madapolão, em noite de homenagem aos orixás. Chica irá conosco somente ao palácio. Voltará para casa quando descermos a Ladeira da Misericórdia.

– Vão nos confundir com macumbeiros. Todo macumbeiro vai ficar sob suspeita – advertiu Caetano.

– E daí? No Amaro Branco, em toda casa há um macumbeiro ou um crente de macumba. Os homens da Veraneio não vão prender todo criador que tenha no quintal uma galinha preta! O secretário tem planos fascistas, mas não teria a coragem de ordenar uma razia na comunidade.

Festa nos quintos, banquete de orixás, correria na encruzilhada dos Quatro Cantos, o capeta se mancomunaria com Marx para arruinar a candidatura do secretário; com a cumplicidade de exus, o apoio, conforme Chica, dos seiscentos sentidos de Ogum.

– Numa terça-feira – sugeriu Chica.

– Por quê?

– Dou sorte nesse dia.

– É o dia do protetor dela – completou Maújo.

– Menos mal para nós. Se a casa de Edu estiver cheia, tanto melhor para confundir os tiras.

Na terça-feira, a única a não usar calça comprida era Chica; tinha, além do vestido farto, uma tiracolo sob o braço, onde guardara o tubo de spray; a tiracolo combinando com o azul chumbo da roupa.

Às nove da noite partiram do Guadalupe em ritmo de passeio. No oitão da Irmandade dos Militares, subiram no calçadão para apreciar o casario irregular do Amaro Branco. A cavidade do Largo do Amparo lhes pareceu um poço escuro, longe da iluminação da Sé.

– É na orêia… – ouviram. O bêbado sentado na porta da igreja, castigando a si próprio com puxões de orelha, gritando – É na orêia…

O homem tinha jeito de ioruba perdido. Chica reconheceu-o.

– Dona Francisquinha! Hoje tem celebração… Cuma vai dona Teotônia?

– Vai bem. Vai pra casa, Joaquim; vai dormir em casa.

– Vou já, dona Francisquinha.

– Ainda vai beber?

– Vou mais não. É só a fresca da noite.

Na frente da casa de Bajado, cumprimentos. O velho se recolhera. Nos Quatro Cantos, as calçadas estavam ocupadas por namorados, moleques e alguma matrona. Logo o local ficaria deserto, próprio para pouso de corujas erradias. Na Ribeira, pararam para beber uma cerveja.

Céus e quintos juntos, santos e capetas de mãos dadas.

– Fim do recreio – decretou Gertrude.

Em frente à prefeitura, um guarda.

– Se fôssemos tomar de assalto a prefeitura, arrombar os cofres da Fazenda para queimar as dívidas do povo? – especulou Maújo.

– Estão todas aí, mas o povo está tão enfraquecido que apenas um desarmado guarda faz a segurança do prédio.

– O povo está a um fio da rendição. Não fôssemos nós… Nós somos o que resta de consciência do povo.

– Vamos dizer isso daqui a algumas horas – previu Gertrude.

Chica resolveu falar; como de costume, para pôr fim ao quebranto:

– Nós estávamos caminhando como se fôssemos ao encontro da liberdade; de repente, parece que vamos ao cadafalso.

– Estamos em frente à Bastilha do secretário. Vamos sentar na praça, do modo como Bajado sentou-se. Chica, imagine-se liderando uma coluna de sublevados artesãos; você está segurando um fuzil e uma bandeira, mas, diante da covardia do secretário, troca o fuzil por estiletes e espátulas. A multidão delira atrás de você. O secretário, tremendo, caga na cueca, na calça, borra a calçada. Todos riem. Você levanta a alça do vestido, refaz-se diante da multidão já silenciosa; sobe os degraus da porta para fazer o primeiro discurso depois da vitória dos sans-culottes. “Artesãos de toda Olinda, ocupem a sacada do Palácio para criar a nova imagem do poder, a partir de dentro, como nunca lhes foi permitido criar!”

– É um bufão perfeito. – interveio Gertrude – Seria aplaudido até por Luiz XVI.

– Veremos quem é o bufão mais tarde – respondeu ele.

– Se pichar com a mesma habilidade com que faz discursos, ganhará sem eleição o cargo de secretário de Agitação e Propaganda da base.

– Da base para as Tulherias!

– É um bufão delirante, mas reconheço que há beleza em seus delírios – disse Caetano.

Desceram pelos fundos da Igreja de São Pedro. Na praça, outra parada, sob a palmeira. A igreja, aberta, deixando ver a claridade do altar, da abóbada. Murmúrio de orações, de cantos, escapando da porta, abafando a conversa dos quatro.

Na esquina, no andar de cima do Mourisco, um grupo ruidoso de burgueses festejando a candidatura do secretário; os ingressos foram vendidos para ajudar na campanha. O candidato discursou duas vezes, a pedido dos convivas. Seguiu toda a noite, o convescote, com portas e janelas fechadas.

Os fiéis saíram da igreja para continuar as orações em casa. Os dois casais seguiram feito salteadores. No palácio, o babalorixá urrando, parecendo um vodum sem juízo.

– Chica, ponha-se a nossa frente – indicou Maújo.

Subiu no outeiro, ela, para olhar o jardim de sua estima. O guarda perguntou pela saúde da velha Teotônia, perguntou para cumprir o rito. Os três ficaram conversando com o guarda. Chica trouxe ramos, distribuiu-os. Uma moça de cabelos soltos, gorda, vestido longo, em pé na calçada, na frente de um tripé sobre o qual pusera uma tela onde pintava a praça, a cruz, a fachada do Convento de Santo Antônio do Carmo. Tímida, insegura com as mãos, o quadro se esboçando; riu sem jeito com os elogios.

– Vamos ao Maconhão, vamos cumprimentar o camarada garçom – propôs Maújo.

– Tenho medo de reencontrar Xisto – avisou Chica.

– Não deve ter medo. Ele sim, está com medo de nos encontrar, tem vergonha de todos nós. Não quer ser flagrado no recuo ideológico – explicou Caetano.

A maré morta sacudiu lenta a embarcação do outro lado do dique. Um candeeiro com imprecisa luz, balançando, na coberta do tombadilho. Sentado no banco de lado, o pescador descansava as duas pernas no assento paralelo. Rádio portátil ligado, sons de um bolero brega, o Carmo infundiu-se de decrepitude. O homem não sabia, estava cumprindo seu papel na intriga de solidão.

– Uma cerveja e duas fichas. – pediu Maújo – Os homens têm aparecido?

– Passam sempre, mas não fizeram mais batida desde aquela vez.

– Aceitou a proposta de ser informante deles?

– Não tenho jeito para isso. Seria demitido se o dono do bar soubesse. O dono diz que seus clientes não são policiais; se fossem ele iria à falência.

Depois que o garçom saiu, Caetano disse:

– Chica, você esqueceu de pôr o garçom na sua escultura.

– Também esqueci de botar Edu de pantalonas.

Maújo enfiou uma ficha na radiola, olhou para Chica. Ouviram Caetano Veloso. Resgatou, Maújo, o começo do convívio entre os dois. Caetano fez um comentário a modo de espantar um fantasma:

– Caetano Veloso é poeticamente alienado.

– Ele brinca com os sentimentos dos outros, da esquerda também. Faz uma poesia acima de cogitações comuns. É o poeta de si mesmo, mantém-se à margem da história; sobrevive graças à competência.

– Gosto de sua melodia – disse Chica.

– Você gosta mesmo é de seus sonhos, meu amor. Vamos dançar.

Debulharam o passado a sós, os dois, entre paredes escuras, sob a palidez da única luz do pequeno dancing. Caetano e Gertrude não resgataram o passado, o passado não estava tão distante. A música, para ele, tinha versos insossos, de sonoridade enganosa.

– Não precisa sentir-se mal por isso – ajudou-o Gertrude.

– É orgânico.

– Não, é imprecisão ideológica mesmo.

– A conta já está paga – disse Maújo, de volta.