Centreville comemora 30 anos da ocupação liderada pelo PCdoB

Há 30 anos, um grupo de cerca de 600 famílias ocuparam bravamente um condomínio de luxo inacabado, em Santo André, na divisa com Mauá, região do ABC paulista. Neste sábado (21), uma grande festa marcará a ação ocorrida no dia 16 de julho de 1982, que foi liderada pelo PCdoB, durante o período em que esteve na clandestinidade.

Por Deborah Moreira, do Vermelho


Dom Cláudio Hummes faz missa durante a década de 1980 no Centreville/foto: arquivo pessoal dos moradores

 

“Não podia falar que era membro do Partido. Estávamos clandestinos. Mas, toda a ocupação foi totalmente planejada pelo PCdoB , em pleno período da ditadura, ainda. O partido atuava na base de trabalhadores do bairro da Vila Guaraciaba, vizinho ao Centreville, cuja presidenta da associação era Maria da Silva. Estávamos discutindo sobre moradia e um pessoal que trabalhou na construção das casas sugeriu ocupar o lugar, que estava abandonado”, lembrou João Batista Lemos, 59 anos, vice-presidente da Federação Sindical Mundial e secretário adjunto de Relações Internacionais da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Batista, que morava em Mauá, era metalúrgico, fez parte do movimento grevista no ABC e foi um dos que compuseram a massa de demitidos das montadoras, na década de 1980. Ele se orgulha de ter integrado o grupo que ocupou o Centreville , muitos filiados por ele ao Partido.

“Como em todo movimento popular, tinha gente infiltrada do Dops[Departamento de Ordem Política e Social do governo militar brasileiro]. Eles sabiam que nós pretendíamos ocupar. Em uma de nossas reuniões, chegaram duas veraneios com chapa fria. Percebemos a movimentação estranha a tempo e mudamos todo o rumo da discussão para despistá-los. Inventamos uma história de promover uma moradora a candidata e eles engoliram”, detalhou o dirigente comunista.

Na véspera da ação, Batista e outras lideranças locais, também do PCdoB, planejaram uma mudança estratégica, tendo em vista que o Dops rondava a área.

“Quando percebemos que o Dops tinha as informações, mudamos o esquema de organização , o pessoal só ficou sabendo como agiríamos no dia da ocupação e mudamos o ponto de encontro em cima da hora para despistar. Combinamos de nos encontrar na Associação da União das Vilas Unidas, que ficava próxima, às 17h do dia 15 de julho, onde 80 pessoas atenderam ao chamado”, contou Batista.

O número de pessoas arregimentadas ainda era baixo, destacaram dois integrantes para convocar os moradores da favela Homero Thon para se juntarem ao grupo. Uma outra comissão foi formada para dar apoio logístico e avisar autoridades, parlamentares e a imprensa sobre a ação, assim que fosse deflagrada.

“Todos os demais permaneceram trancados na associação, para não corrermos o risco da informação sobre a ocupação vazar. Já no dia 16, saímos por volta das 5 da manhã em comboio: dois caminhões , três peruas, alguns carros. Foi uma grande mobilização”, destacou João Batista, que logo depois da empreitada foi preso, juntamente com outros dois líderes, que também eram membros do Partido.

“A gente tinha uma lista com o nome das 80 famílias que estavam cadastradas por nós para ocupar e ter direito a uma das casas. Então, pouco antes de sermos presos, dividimos o papel em quatro partes e engolimos para que não fossem descobertas. E enquanto estávamos lá, uma rádio local anunciou a ação e muita gente se juntou ao grupo para garantir uma casa”, revelou Batista, que foi interrogado e logo depois dispensado. “Depois de alegar que eu era um simples trabalhador demitido, precisando de moradia, eles me soltaram”, completou.

Em seguida, uma comissão formada por moradores preparou um documento, intitulado Carta ao Povo, reafirmando que as casas ocupadas pertenciam à população que estava lá. A carta também foi enviada para representantes do governo, para a imprensa e outras autoridades. Muitas associações e organizações se solidarizaram à causa , como institutos de Arquitetos do Brasil (IAB).

Durante todas essas décadas, a população do Centreville resistiu às tentativas de desocupar a área. “A gente ameaçou resistir a reintegração de posse. Até se tentou também mover ações de despejo individuais, depois de três anos da ocupação. Mas, nos mantivemos lá”, observou João Batista Lemos, que morou no bairro. Ele faz questão de mencionar que a ação só foi possível por conta do contexto: desemprego em massa, alta do custo de vida e uma organização forte dos trabalhadores, dirigida pelo PCdoB.

Tarcísio Calé, 56 anos, atual presidente da Comissão de Moradores do Centreville, foi uma das lideranças presas, juntamente com Batista. Hoje, mora com a mulher, que conheceu no condomínio, as duas filhas e a sogra. Com problemas de saúde, em decorrência do tiro que o atingiu durante a segunda ocupação do condomínio, em 11 de fevereiro de 1983, no restante do terreno, onde ainda havia 44 casas.

Ele faz parte dos remanescentes do grupo que ocupou, que, segundo estima, representa atualmente 10% da população do Centreville.

“Quando ocupamos do outro lado, tinham uns seguranças de uma empresa particular cuidando das 44 casas. Eles ocupavam três casas. Ficou acordado com a Caixa Econômica que eles deveriam deixar o local. Mas, no momento da discussão, um dos guardas se exaltou e quando virei de costas me deu um tiro, que atingiu o baço”, contou Calé.

Nova paisagem

As construções começaram a ser erguidas na década de 1970, mas poucos anos depois as obras foram paralisadas por causa da falência da construtura. Eram cerca de 600 casas que hoje passam de 1.500. Atualmente, poucos integrantes do movimento iniciado há três décadas moram no local. Mas foram eles que deram início ao bairro, que ganhou vida ao longo do tempo, com escolas, Unidade Básica de Saúde, quatro linhas de ônibus e comércio local. Os moradores, no entanto, enfrentam uma dura batalha para regularizar a situação e conseguir, enfim, as escrituras definitivas.

Nem mesmo o pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) pode ser feito pelos moradores. Em 1990, uma determinação do Tribunal de Justiça garantiu que a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) administrasse o território. A companhia estadual é que é responsável pelo pagamento do imposto à Prefeitura.

De um lado, os moradores, que se dividem em pelo menos duas camadas sociais, e do outro, órgãos governamentais do Estado de São Paulo, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), e do município, a Prefeitura de Santo André. Entre eles, muitos políticos da região se integraram à luta ou, até mesmo, tiraram proveito eleitoreiro. Uma dezena de projetos já foram propostos. Mas nada sai do papel.

“Agora, estamos numa fase de recadastramento, em parceria com o município. Houve muitas alterações do projeto original das casas. Um imóvel virou dois, três. Casas foram construídas nas áreas externas das casas. É preciso fazer um pente fino e saber quem é quem para dar início a regularização”, explicou Calé.

Em relação à regularização do loteamento Centreville, a CDHU disse, em nota ao Vermelho, que “já registrou a propriedade das quadras do conjunto e realizou a identificação das famílias que vivem no local e o cadastramento físico e urbanístico da área. A Companhia criou um grupo de trabalho que está trabalhando em propostas para a regularização do loteamento junto à prefeitura.”

Ainda de acordo com o órgão estadual, as próximas etapas prevêem a elaboração de projeto de desmembramento das quadras, a regularização do parcelamento por quadras junto à prefeitura, o registro da divisão das quadras no cartório de registro de imóveis e, enfim, a comercialização das unidades.

“Falta vontade política. Essas informações da CDHU são as mesmas de sempre. O órgão é quem detém a posse do terreno onde estão as 615 casas ocupadas e somente ele é quem pode vende-las. Mas não o faz há anos. Existe, no entanto, um terreno em volta desse que foi sendo ocupado posteriormente, que aguarda regularização por parte da prefeitura e está envolvida no recadastramento”, lamentou o advogado dos moradores Adonis Bernardes, 57, que também era membro do PCdoB e fez parte do grupo que ocupou. Adonis, que não mora mais no lugar, chegou a permanecer no Centreville durante 23 anos.

A prefeitura de Santo André foi procurada, mas não retornou os contatos.

Festa

As comemorações começam por volta das 12h com atividades para as crianças.  A partir das 19h, acontece uma cerimônia oficial com a presença de personagens importantes dessa história, como Batista. Também haverá teatro e shows.