Folhetim: O último capítulo de Conspiração no Guadalupe

Ao longo de dezenas de semanas, acompanhamos a trama de Conspiração, percorrendo a Olinda imaginária de Chica, Maújo e outros tipos, degustando alegrias e dores.  Neste capítulo, com dança de rumba ao frio da madrugada, encontros, confrontos, a força da indignação e do amor, o autor desse folhetim, Marco Albertim, despede-se de nós, leitores, com uma mensagem bem-vinda e um trago da vida.

Bajado e sua Olinda - Bajado

O autor nos conta:

“Os personagens de Conspiração… vivem uma agonia, vivem-na com prazer porque têm o fogo do revolucionário viçoso. O autor teve sua agonia ao escrever, e viveu-a com prazer. Como não quero pôr fim à agonia, bebo com prazer uma pinga pensando em vocês.
Abraço
Marco Albertim”

Agora, à pinga e ao desenlace da trama. Vida longa aos companheiros que nos deixam no rumo de becos musicais.

Cap. XXXII – A pichação

Na Ladeira da Misericórdia, Chica cansou. Foram ao adro do seminário, sentaram-se na amurada de cimento.

As luzes no cais do porto, no Recife, acenaram. No espaço entre uma cintilação e outra, sombras circulando solitárias, conformadas com o derradeiro cascalho de radiação que o universo lhes concedera. No Recife, a dez quilômetros, a obscuridade cobrira seus viventes. Vivia-se a vã alegria do bar Savoy. Recife é um chope, alguém dissera, excluindo o povão das várzeas. O Savoy era abrigo da única celebração cultural da cidade.

– Não faria diferença se levantassem um muro entre Recife e Olinda – especulou Maújo.

– Uma paliçada. Cada cultura defendendo a si própria – emendou Caetano.

Gertrude olhou-o, distinguindo traços de outro perfil.

– É a opinião do índio mameluco, do único tamoio vivo talvez.

– O que me diz de salvaguardar a espécie? – provocou-a.

– Por dever conjugal, pelos estatutos do Partido.

A frente do seminário nunca fora ocupada por multidões; servira de abrigo para algum casal à cata de retiro para o sexo na noite livre; fora, também, estacionamento autorizado para a Veraneio. A desolação, àquela hora, propiciou as divagações dos quatro. Tão acostumados com becos, vielas parecidas com sepulcros, não se deram conta de que em um lugar, atrás, o arcebispo podia estar oculto; meditando, ouvindo. Vivia recluso, sombrio feito suas idéias; seu silêncio era o sinal da intolerância. Romper o silêncio seria um ultraje.

– Caetano, você namorou Gertrude sob o nariz do arcebispo. Ele não censurou vocês, porque não tinham no colo um cantil com mistura de araçá e cachaça para inspirar a conversa profana. Tinham pipocas e roletes de cana.

– Profanas são suas palavras, Maújo; profanas à privacidade dos outros – reagiu Gertrude.

– Entre nós não há profanação. Nós abominamos a hipócrita separação que a burguesia impõe entre a vida privada e a vida pública. É uma herança feudal defendida pelo arcebispo!

– O povo se mata por causa disso. – ajuntou Chica – É uma cultura homicida.

Ouviram, vinda de uma das janelas, uma ordem urgente de silêncio. A menção ao arcebispo precipitara a ordem; ouviram-na vindo do escuro, espalhando-se na desolação.
Maújo:

– Vamos sair daqui. Vão telefonar para o Distrito! Vamos para o Estrela.

Noutra circunstância, Gertrude e Caetano se recusariam a ir. Mas a ordem vigiante do arcebispo, o vento permissivo do sudeste impeliram-nos dali; desceram correndo sobre cacos de telhas.

Compraram os ingressos rindo um do outro, rindo tão fora de propósito que cada um suspeitou, sem confessar, ser a última noite juntos, gozando de tenções comuns. Nunca, no convívio curto e rico, experimentaram a intimidade de se descobrirem unidos; viram-se capazes do sacrifício da vida em benefício da convergência obtida. Sentados, ouvindo a rumba familiar, não estranharam o cheiro de borrifo seminal desprendendo-se de cada mesa. No meio da música, convenceram-se, a República seria remida por obra de piratas vindos de outro continente, ancorados no dique do Varadouro.
Chica, de volta ao psicodélico salão, mirando o macho de carne e osso, diferente de Ogum.
Gertrude experimentou um vago sentimento de perda, algo que já sentira. Mulher provada, acostumada a sustos, restabelecida, sentiu as entranhas cicatrizadas. Atento, Caetano observou-a, investigando cada linha ao lado dos olhos. Percebeu, ela, trouxe-o para si, beijou-o na face; depois, puxou-o pelo braço para dançar a rumba um dia roubada de si. No salão, pendurou-se no pescoço dele, remoinhou a língua do parelho.

– Quero ter um filho seu – disse.

– Vai ser a sobrevivência de minha raça.

Foi a sobrevivência de uma noite que não devia ter terminado, gerando filhos de outra convenção social. Gertrude não tivera filho com Maújo; viu parir, no distrato entre os dois, aparições grávidas de convergências.

Maújo e Chica, sentados, apreciando-os no ritmo da música; riram do delito que não cometeram. Pareceu-lhes uma troca combinada de parceiros, sem vexames. Apalpou a barriga de Chica, desceu os dedos sobre o ventre coberto pela fina calcinha; sentiu os pentelhos grunhindo na ponta dos dedos.

– Eu treparia com você aqui mesmo

– Eu quero…

Foram dançar. Seguiram para o lado direito da cabine da orquestra, onde, por trás de uma grossa coluna de cimento, redonda, instalaram o nicho do delírio semioculto. Ela abaixou o vestido cuja cintura era separada da blusa, abaixou um palmo. Colados, ele introduziu o caralho num dos lados da frente da calcinha. Gozaram no escuro, no ritmo da rumba.

Caetano e Gertrude, sentados, distinguiram o delírio nos olhos semimortos de Maújo, nas pálpebras abaixadas de Chica.

– Não estão seguros da gravidez?

– Foram buscar o certificado de garantia.

As luzes do Estrela, com o silêncio da orquestra, foram acesas. O navegante de mar aberto divisou a procissão de notívagos. Na frente do clube, iluminada, ouviu-se o pregão do cuscuz no tabuleiro. A luz em rodopio, do farol, único traço cambiante na rotina dos notívagos.

– Vamos a pé? – quis saber Gertrude.

– Por que não? – respondeu Chica.

– O arcebispo não sabe o quanto faz bem à saúde dançar rumba no frio da noite – arriscou Maújo.

– Ele sabe cantar o kyrie como nós não sabemos – Caetano.

A Veraneio do Distrito estacionara na frente do portão do seminário, acobertando-se na escuridão.

Os quatro viram.

– Estão velando o sono do arcebispo.

– Quero ir para casa. – disse Chica – Tenho muito sono.

– Levo você e volto para a pichação.

Voltou, Maújo, para se reencontrar com os outros no Palácio de Edu.

Chica deitara na otomana, foi acordada pela tia que não soube responder por que Maújo não chegara.
Maújo apenas esboçara o nome do secretário para cunhá-lo de fascista. Gertrude e Caetano, cada um numa das esquinas dos Quatro Cantos, vigiando. A Veraneio surgiu silenciosa, enquanto um jipe da mesma cor veio na direção contrária; com faróis apagados, acenderam-nos de repente. Cerco, revólveres. Foram levados para o Distrito.

Julgados, condenados a três anos de cadeia por incitação à desordem.

Maújo viu a gravidez de Chica até às vésperas do parto. Depois sonhou com uma procissão de iorubas, romaria semelhante à que ela vira no enterro de Bibiu. Iorubas nus, risonhos, cobertos com véus brancos; protegendo uma mulher de cabelos soltos, de sorriso impreciso, submissa aos desígnios dos negros. Acenava-lhe com a mão, em adeus definitivo.

Com a ausência de Chica, as contrações do cérebro de Maújo trouxeram-na de volta, perdoada de todo presságio que a seguiu nas ladeiras. O rosto dela tornou-se incerto nas lembranças, perdido na falência dos planos de fazer do massapê uma arte de curvas.

Dera à luz uma menina com pálpebras e maçãs do rosto sardentas.

Cinco anos depois, com Francisquinha nos braços, Maújo assistiu a uma peleja entre violeiros repentistas, no Alto da Sé.

Chica, a filha dos santos
Tua saudade é infinda
Maújo, teu companheiro
Por ti vai vivendo ainda
Tendas, terreiros, bonecas,
Rumba, liamba, moquecas,
Frevo e ladeiras de Olinda*

*Ivanildo Vilanova, poeta-repentista