A rivalidade imperialista entre o polo americano e o europeu

Está em curso uma luta de repercussões mundiais entre o polo imperialista americano e o polo imperialista europeu, com a Alemanha à cabeça, luta essa que também se manifesta no plano monetário entre o euro e o dólar.

Por Ana Paula Henriques, em odiario.info

O capital financeiro norte-americano estreitamente imbricado com o capital inglês, que os centros da guerra ideológica imperialista denominam “mercados”, ataca a UE e a sua moeda pelos “flancos”, os países mais fracos – Grécia, Portugal, Espanha, Itália e Irlanda – tentando com isso enfraquecer o centro do sistema. Esta rivalidade imperialista, determinada pela concorrência inelutável no capitalismo, não exclui, antes pressupõe, a sua união para tomar a “presa”. Tendo-se dela apoderado, segue-se a guerra de rapina, no seu sentido não-metafórico, pela partilha dos despojos da vítima indefesa, esfolada viva.

A crise, que aparece como restrita ao plano financeiro é, na sua essência, uma crise econômica de sobreprodução e de excesso de capital na posse da oligarquia financeira. O capital tem uma necessidade genética de se reproduzir e tem a capacidade de o fazer na esfera da circulação. Foi então um fartar vilanagem de crédito ao consumo. Todos temos presentes as campanhas publicitárias ultra-agressivas vendendo crédito barato, as cartas enviadas pelos bancos com a oferta de cartões de crédito prontinhos a gastar, as urbanizações a crescer chamando os compradores com spreads apetitosos.

E porque é que os capitalistas não investem esses capitais na indústria? É que esta crise, que tem aparecido como crise financeira (também o sendo) é fundamentalmente uma crise económica de sobreprodução, de excesso de mercadorias para a procura solvente (1). Os capitais deixaram de ter taxas de lucro satisfatórias na produção material e desviaram-se para a área da circulação, neste caso para a especulação. Por esta razão (e também por outras, como o desaparecimento do socialismo e a industrialização maciça de grandes países com a utilização de mão-de-obra mais barata em outros locais do planeta) é que se verifica o fenómeno da desindustrialização e da terceirização da economia nos centros capitalistas mais antigos. No caso do nosso país, a adesão à CEE contribuiu determinantemente para isso. Aliás, a par do objetivo de destruir as conquistas do 25 de abril, enredando o país nas relações de produção capitalistas da Europa, abertamente confessado pelo Dr. Mário Soares, a adesão à CEE era de todo o interesse das potências capitalistas desenvolvidas da Europa, que assim alargavam o mercado para os seus produtos à custa da destruição do aparelho produtivo nacional. De resto, não foi outra senão esta a lógica da criação da CEE.

Por isso, é particularmente chocante o cinismo dos centros de difusão da ideologia burguesa quando dizem que as “dívidas” surgiram porque o povo viveu acima das possibilidades. O capital tudo fez para que as famílias populares se endividassem utilizando crédito para, à sua custa, continuarem a acumular lucros obscenos.

Agora que as massas trabalhadoras, exauridas dos seus rendimentos, empobrecidas, deixaram de poder pagar os créditos, são os mesmos do costume a não ficar a perder. Os Estados, esbulhando aqueles que aí produzem riqueza, os que trabalham e pagam todos os impostos – uma vez que os capitalistas e os banqueiros nada produzem e, sobretudo não pagam impostos – assumem como pública a dívida privada dos bancos e canalizam para eles todos os rendimentos disponíveis: as receitas do Estado, isto é, os impostos; as empresas públicas; os fundos de pensões provisionados com o trabalho e esforço de gerações de trabalhadores. Reduzem os produtores à condição de escravos dos bancos, eles no presente e os seus filhos no futuro.

É interessante verificar que a crise que começou por se manifestar nos EUA, em 2008, com os créditos subprime e deixou milhões de americanos sem casa por não terem dinheiro para pagar, manifesta a mesma sintomatologia em Portugal, com os milhares de casas entregues aos bancos pela mesma razão, e em Espanha, onde se diz existir um milhão de habitações por colocar.

A economia de casino, a especulação com os hedgefunds no seu centro, pôs em circulação os chamados produtos tóxicos, créditos de duvidosa cobrança, dívidas impagáveis e outros produtos da engenharia financeira que têm valor apenas nominal, meros papéis que não correspondem a nenhuma riqueza criada (alguns especulam sobre riqueza que se presume vir a ser criada no que se denomina mercados de futuros) e se calcula atingirem um valor da ordem de 20 anos da produção mundial (2), tomou as rédeas da economia capitalista. Os grandes bancos e respectivos banqueiros, que fabricam estas “bolhas”, sabem bem que é isto que acontece e como acontece. Em tempos de vacas magras, estes oligopólios financeiros (os “mercados”) começam a exigir aos outros bancos o retorno dos capitais que lhes emprestaram, não em papéis, mas como “cash” fresquinho. Chegam às agências de notação financeira, propriedade dos oligopólios da finança e começam a atribuir notas à fiabilidade dos países mais vulneráveis. Quanto mais descem as notações mais sobe o juro que os Estados têm de pagar pelos empréstimos com que vão recapitalizar os bancos privados e pagar as suas (dos bancos) dívidas. E assim sucessivamente…

Os países europeus vítimas da “ajuda” imperialista são supervisionados por uma “troika”. Mas porque é que esta tropa de choque ocupacionista tem três componentes? Porque é que é um triunvirato e não um quadrunvirato, por exemplo? Atente-se: FMI compósito de capitais internacionais em que os EUA têm 17,8% de direito de voto, a Alemanha 5,99% e a França 4,5%(3); Banco Central Europeu em que a Alemanha detém 18,9% do capital e a França 14,22%(4); União Europeia, instituição política para supervisionar as decisões e garantir os interesses do bloco imperialista europeu no seu próprio território. Assim se “concertam” os interesses de todos e se divide a presa – leia-se Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha, Chipre – segundo parâmetros de proporcionalidade. A Itália já é uma presa demasiado grande, há que medir bem o terreno.

Se tomarmos o recente exemplo da Líbia, podemos ver a Otan a tomar posições no norte de África. A Otan, enquanto aliança militar dos dois polos imperialistas, interveio principalmente com forças europeias – não só porque é preciso dividir as despesas, não só porque os EUA não podem aparecer sempre como os “maus da fita”, não só porque a participação no saque será rigorosamente (se um contendor não conseguir “vigarizar” o outro) proporcional ao “investimento”, mas também porque a contradição interna implica que um não se ache ausente quando o outro está presente, isto é, um polo imperialista não pode deixar espaço livre ao outro. “A moeda tem duas faces”, “Não existe um teimoso sem outro”, são expressões vulgares que ilustram a unidade e luta dos contrários que a dialética descreve e explica.

Entretanto, se o polo imperialista americano deseja enfraquecer a UE e a sua potência central, a Alemanha, fazendo guerra ao euro, está a obrigar a Europa a unir-se num superestado sob a batuta alemã, que dê suporte político às decisões que a Alemanha tem de impor ao resto da Europa para manter o euro, embora se saiba que a Alemanha alimenta outros interesses fora da Europa e fora do euro. Até que ponto a Alemanha ainda está interessada no euro, ou se sente com forças para suportar o euro nas atuais condições, ou procura outros caminhos e outras alianças é questão que mais à frente se verá.

A unidade entre os centros imperialistas da UE e o norte-americano, isto é, a unidade da burguesia ocidental, é absolutamente exemplar quando se trata de intensificar a exploração dos trabalhadores e dos povos. Há um coro de vozes dos dois lados do Atlântico celestialmente regidas e afinadas na defesa das medidas de “austeridade”, isto é, de medidas que empobreçam o povo, aumentem a exploração e engordem os oligarcas. Nisso, todo o capital está de acordo. Por toda a Europa, nos países endividados e nos países credores, nos países grandes e nos países pequenos, nos países do norte e nos países do sul, de ocidente a oriente, o capital tem uma única palavra de ordem – austeridade, atrás da qual esconde uma ofensiva global e geral contra os trabalhadores e os seus direitos, contra as massas exploradas para aumentar e intensificar a sua exploração.

É verdade que existe uma “crise”. Mais propriamente “duas” crises: a crise do capitalismo, aflito com a incapacidade de resolver os seus problemas que se agudizam, atolado nas areias movediças da sua existência. E há a “crise” dos trabalhadores, cuja pele o capital esfola para não soçobrar. Na realidade, só existem dois caminhos: ou o capitalismo é destruído como sistema, ou sairá desta crise com um menor número de oligopólios, cada um dispondo de mais gigantescas massas de capital – centralização e concentração capitalistas – para continuar a explorar a classe operária e as camadas laboriosas até que novas e mais profundas crises venham a surgir.

A verdade é que a “crise”, essa entidade quase incompreensível e todo-poderosa mas de quem todos sentem consequências, cuja natureza a todo o custo é escondida pela burguesia, tem sido conceitualmente elaborada de forma científica no plano da propaganda (ao nível do cinismo das “armas de destruição maciça” do Iraque, ou da “falta de democracia” na Líbia, ou das “milícias do governo” da Síria) para se tornar o aríete contra as conquistas dos trabalhadores e dos povos europeus alcançadas após a 2ª Guerra Mundial e a derrota do nazi-fascismo, na qual a União Soviética teve um papel determinante o que, por consequência, alterou a relação de forças mundial em favor dos trabalhadores e dos povos.

Há poucos meses, o mundo tomou conhecimento de que uma plêiade de dirigentes políticos e econômicos na Europa eram oriundos do Goldman Sachs – um “Mercado” dos mais poderosos – e seus ex(?) -quadros: Cristine Lagarde, diretora do FMI, Mário Monti, primeiro-ministro italiano designado, não eleito, Mário Draghi, presidente do BCE; talvez mais algum que não conheçamos … É verdade, o Dr. António Borges, o tal que diz que não disse que tenha dito que era preciso baixar ainda mais os salários dos portugueses, conselheiro do governo para as privatizações!

Conhecendo a espalhafatosa vassalagem do nosso governo e do nosso Primeiro à Sra. Merkel, que prometeu à burguesia portuguesa uma fatiazinha do bolo; conhecendo a lei da dialética, a unidade e luta dos contrários, é caso para perguntar se o Dr. Borges é um aliado do Dr. Passos ou um “olheiro” da concorrência.

De qualquer forma essa não é a questão que mais interessa. O mais importante é a outra lei da dialética, a negação da negação. “A negação […] é um resultado do desenvolvimento interno [dos fenómenos]. […] os fenómenos são contraditórios e, desenvolvendo-se na base das contradições internas, criam condições para a sua própria eliminação e passagem a nova qualidade superior. A negação é precisamente a superação do velho na base de contradições internas, um resultado do autodesenvolvimento e do auto-movimento dos objetos e fenómenos. […] o socialismo substitui o capitalismo em resultado da solução das contradições que são internamente inerentes ao regime capitalista. Estas contradições aprofundam-se e agravam-se, sendo solucionadas por meio da revolução socialista”(5). “Aos trabalhadores e aos povos do mundo está colocada como grande exigência do nosso tempo, a luta por profundas transformações sociais e económicas anti-monopolistas e libertadoras, pela superação revolucionária do capitalismo e pela construção do socialismo como única, real e necessária resposta à profunda crise do sistema”(6).

Notas:

1 Eis como o camarada Álvaro Cunhal descreve uma crise de sobreprodução capitalista. “A contradição entre a capacidade de produção e a capacidade de consumo não é resolúvel dentro do capitalismo. No capitalismo a utilização mais ampla das forças produtivas existentes leva a produção a exceder as possibilidades da sua venda. Cria-se então um ciclo vicioso: para produzir mais, seria necessário baixar os preços; para baixar os preços nas condições presentes seria necessário acumular menos; acumulando menos não se poderiam fazer inovações técnicas; não se fazendo tais inovações, produz-se mais caro; produzindo-se mais caro, vende-se menos; vendendo-se menos não se pode produzir mais. Solução fascista: aniquilem-se as pequenas empresas; elimine-se a sua quota na produção, entregue-se esta aos monopólios”. Rumo à Vitória, edições “A Opinião”, Porto, 1975, p. 29.

2 Nunes, Avelãs, Uma leitura crítica da atual crise do capitalismo, separata do Boletim de Ciências Económicas, p.13 Coimbra, 2011.

3 http://www.ecb.int/ecb/org/capital/html/in

4 http://en.wikipedia.org/wiki/Category:International_Monetary_Fund

5 Afanássiev, V.G., Fundamentos da Filosofia, Edições Progresso, Moscovo, 1982, tradução para o português, pp. 112 e 113.

6 “A crise do sistema capitalista e a atualidade do socialismo”, comunicado do Comité Central do PCP, 27 de Outubro de 2008