"José e Pilar" do documentário ao livro

 "José e Pilar", de Miguel Gonçalves Mendes, está de volta, e agora sob a forma de livro, bem a tempo de abrir por aqui a celebração, em 16 de novembro, do 90º aniversário de nascimento de José Saramago (1922-2010). Com o subtítulo "Conversas Inéditas" (Companhia das Letras, 197 págs., R$ 34,50), a obra retoma entrevistas realizadas durante os quatro anos de produção do tocante documentário homônimo, lançado em salas há dois anos e disponível em DVD.

Por Amir Labaki, em Valor

josé e ´pilar

O livro é como um outro documentário, editado a partir de outra lógica, a lógica ditada pelo texto escrito, ou melhor, pela fala oral tornada texto escrito, mas não menos um documentário do que a primeira versão que nos maravilhou na grande tela.

Uma distinção estrutural se impõe. No filme, Saramago e Pilar del Río, sua inseparável mulher e tradutora, são retratados quase exclusivamente em momentos a dois, no cotidiano da casa na Ilha de Lanzarote e em viagens pelo mundo. O livro, por sua vez, alterna depoimentos separados, em capítulos que formam pares temáticos, precedidos por um prólogo de cinco breves capítulos organizados em torno de sonhos de Saramago.

O novo esqueleto formal separa-lhes as vozes para melhor individualizar os retratos. Contudo, sendo Gonçalves Mendes o interlocutor de ambos, suas perguntas estabelecem um diálogo a distância, a partir de suas perguntas comuns sobre formação, família, o primeiro encontro, o amor, o lugar do mundo e finalmente a morte.

Se Saramago é o natural protagonista, como ressaltado pela organização do volume, aberto e fechado com foco sobre ele, "é em Pilar del Río que esse livro encontra seu mais raro documento", como nota bem no prefácio o escritor português Valter Hugo Mãe. Se o filme ressalta seu papel de fundamental escudeira, Pilar salta das páginas como um brilho todo próprio, de inteligência penetrante e vontade irrefreável, como uma Martha Gelhorn ou uma Oriana Fallaci para nossos tempos.

É especialmente iluminador o contraste entre os relatos dele e dela do primeiro encontro, na Lisboa de 15 de junho de 1986, pautado por razões profissionais por ela por telefone. A versão de Saramago é que revela um fascínio pessoal imediato, simbolizado ao precisar exatamente a data e recordar tudo com maior riqueza de detalhes. Não menos significativo, para os biógrafos futuros de ambos, é combinar o passado de "monja teresiana" de Pilar ao fato de ter sido "Memorial do Convento" o livro que a capturou para a galáxia Saramago.

Ele a define sobretudo a partir de uma máxima de santa Teresa de Jesus: "ver, ouvir e não calar". Ela, por sua vez, afirma que "o conceito que mais o define" é o de "transgressor". Pilar seguidas vezes se identifica com a ideia de "viver cada dia como se fosse o último, ou o primeiro". Saramago acha graça da "sabedoria" de sua fórmula de adolescente, proferida pela primeira vez aos 17 ou 18 anos, à qual se mantém fiel: "Aquilo que tiver de ser meu, às mãos me há de vir parar".

Curiosamente, Pilar assume nunca ter pensado em ser outra coisa que jornalista, enquanto Saramago se considera uma espécie de escritor acidental. Muito mais os aproxima: o passado de militância comunista, a austeridade pessoal, a ética de trabalho, o antirromantismo, o racionalismo radical, o total desapego geográfico. "Nós somos muito mais filhos de um tempo do que um lugar", frisa o escritor.

Revelações literárias marcam mais o filme do que o livro, mas pontualmente se apresentam. Saramago discute "A Jangada de Pedra" como "um livro de certa maneira menor", pelo fato de partir "de uma situação clímax… e o problema é aguentar o livro a essa altura, sem quebrar, sem desfalecimentos".

Uma "paixonite", garante ele, o estimulou a escrever seu primeiro livro de poesia ("Poemas Possíveis", 1966). Modestamente, Pilar descarta qualquer influência na obra dele, assinalando uma exceção, quando um comentário nascido a partir de seu trabalho de tradução para o espanhol o motivou a alterar a última palavra do romance "A Caverna" de "bilhete" para "entrada".

"Não há inspiração, há trabalho", insiste Saramago, admitindo: "Não escrevo livros para determinados tipos de leitores, escrevo simplesmente o que tenho a dizer e escrevo para mim, no fundo escrevo para mim".

Miguel Gonçalves Mendes começava e terminava "José e Pilar" no cinema com uma mensagem de despedida do escritor à sua musa: "Encontramo-nos noutro sítio". Como num comentário póstumo, Saramago retruca agora: "Isso são frases (risos)".

"Não vale a pena nem inventar céus nem infernos", complementa logo adiante. "Aqui, sobre este inferno (aponta para o chão) de vez em quando temos momentos de céu". Ver e agora ler "José e Pilar", creia-me, estão entre eles.

* Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.