A vez do Brasil

Foi-se o tempo em que a língua portuguesa ocupava um lugar secundário no cenário internacional. Para a professora Walnice Nogueira Galvão, aqui entrevistada, estamos cada vez mais na moda. “E eu morro de rir: quem te viu, quem te vê…”, brinca a escritora, ensaísta e professora titular aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Por Bruno Garcia

Walnice NogueiraGalvão

Walnice entrou na faculdade para fazer Letras e Ciências Sociais ao mesmo tempo. Mas costumava frequentar aulas de todas as cadeiras de humanidades. “Era uma prática corrente na universidade naqueles tempos”, explica. Afeita a desafios, escolheu dois pesos-pesados para as suas teses de doutorado e de livre-docência: João Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. Delas nasceram dois clássicos, As formas do falso e No calor da hora. De lá para cá, já publicou mais de 30 livros, além do muito que redigiu para jornais e revistas sobre os mais variados temas, da literatura às artes plásticas, do cinema à pintura.

A professora lembrou o impacto causado pela obra de Guimarães Rosa e a rixa entre os modernistas e Euclides da Cunha. Para ela, o escritor de Os Sertões já era moderno. Walnice ainda falou sobre o desaparecimento da crítica, sobre sua descrença em relação às questões da identidade nacional e do multiculturalismo, e encerrou a conversa com um alerta: “Eu tenho muito medo do uso da literatura como fonte de pesquisa para outras disciplinas. É uma falácia documental”.

Pergunta
: Quais são suas lembranças dos tempos da Faculdade de Filosofia da USP?

Walnice Nogueira Galvão: Descobri o mundo na faculdade. Comecei fazendo Letras e Ciências Sociais ao mesmo tempo, depois larguei Letras e me formei apenas em Ciências Sociais. Contudo, a minha bagagem toda, desde criança, era de literatura: quando fiz vestibular, já tinha lido bastante. Esta era a minha vocação; fiz apenas um desvio pelas Ciências Sociais. E foi muito bom para mim; era um curso bem mais interessante e com melhores professores que Letras. Mas já cheguei lá com os interesses definidos. Hoje penso que fui fazer o curso de Ciências Sociais porque estava na moda. Assim como todo mundo foi fazer Economia dez anos depois, entende?

P: Então conviveu com aquela primeira geração de grandes professores da USP.

WNG: Ah, fui aluna de todos eles. Tive aulas com Antonio Candido, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Ruy Coelho, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Gilda de Mello e Souza… Estes dois nem eram dos meus cursos, um era de História e a outra de Filosofia. Eu não tinha nada que estar xeretando; afinal, já tinha dois cursos. Mas esta era uma prática corrente na faculdade naqueles tempos, tanto quanto assistir a defesas de tese. Assisti, por exemplo, à defesa de Visão do Paraíso, do Sérgio Buarque de Holanda. Celso Furtado e Gilberto Freyre também apareciam para participar de bancas em nossa faculdade. Era um caldo de cultura incomparável.

P: As universidades se pautam atualmente por um certo sectarismo, não é?

WNG: Talvez tenham preferido o caminho da especialização. Para mim, foi fundamental essa multidisciplinaridade. Foi isso que manteve meu interesse por toda a vanguarda da cultura. Não escrevo somente sobre literatura, sinto vontade de realizar trabalhos sobre cinema, música, pintura, exposições, carnaval, festas populares…

P: Como surgiu o interesse por Euclides da Cunha e Guimarães Rosa?

WNG: Demorei um pouco até decidir o que faria no doutorado. Acabei fazendo uma tese sobre Guimarães Rosa, e foi através dele que cheguei a Euclides da Cunha. Dá para perceber que Guimarães Rosa tinha lido Euclides da Cunha. Fiz a livre-docência sobre a Guerra de Canudos por causa disso, e nunca mais parei de trabalhar com os dois.

P: O impacto de Grande Sertão: Veredas foi imediato?

WNG: Não tanto com o primeiro livro dele, Sagarana. Dez anos depois, no entanto, quando foram publicados Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile no mesmo ano, foi um estouro. Guimarães Rosa foi alçado ao primeiro lugar imediatamente. De resto, estavam todos espantados com a invenção da linguagem, mais até do que com a relação do erudito com o iletrado.

P: A senhora dá destaque às ambiguidades de Guimarães Rosa.

WNG: A questão é que Guimarães Rosa postula um mundo reversível. “Tudo é e não é” em sua obra. Assim como afirma o tempo todo que o diabo não existe, ele nos conta uma história perpassada pelo diabo. Entre as últimas frases de Grande Sertão: Veredas está: “O diabo não há! É o que eu digo, se for.”

P: Como comparar Euclides da Cunha e Guimarães Rosa?

WNG: Penso que eles são entidades não comparáveis. Um escreveu no século 19, o outro, no século 20; um é romancista, o outro, não; um faz ficção, o outro, não. Posso dizer que ambos falam do sertão, embora ainda aqui sejam sertões diferentes. Euclides está no sertão árido, na caatinga do Nordeste, e Guimarães Rosa no sertão mineiro, cheio de água e de gado pastando. Guimarães Rosa é originário do sertão de Minas Gerais, e Euclides era um homem urbaníssimo, citadino, que foi cair em Canudos e quase morreu nessa experiência. É claro: os dois estavam perquirindo aquilo que hoje chamam de “excluídos”. Eles estavam escrevendo sobre a plebe brasileira mais miserável.

P: Euclides era um escritor moderno?

WNG: Foi precursor dos modernistas, embora eles o odiassem. Euclides também se referia a cientistas estrangeiros: “Fulano fez isso nas Ciências, em Zoologia, outro fez isso em Botânica”. Para ele, que precisava se escorar em seus achados, não ficava de todo claro que tinham vindo aqui fazer levantamento das riquezas para o imperialismo pilhar. Em uma carta, Euclides chegava a se perguntar: “Por que todo cientista tem que ser europeu, por que nós não podemos ser cientistas também?”

P: E por que os modernistas o odiavam?

WNG: Eles queriam o urbano metropolitano, atualizado e afinado com a Europa. Neste processo, precisavam estabelecer algumas balizas, alguns marcos, e acabaram queimando alguns ídolos. Queriam escrever de uma forma simples, popular e oral, e ele escrevia de um jeito complicado. Foi o primeiro a fazer um levantamento de temas, de que depois não só os modernistas, mas as Ciências Sociais, o romance de 1930 e, finalmente, Guimarães Rosa se apropriariam: miscigenação, religiosidade popular, as rebeliões da plebe, as guerras civis internas, a defasagem entre o litoral e o sertão, tudo conjuntamente.

P: Qual foi o impacto de Os Sertões na época dele?

WNG: Foi um impacto tremendo, mais por razões históricas do que literárias. Os canudenses eram miseráveis retirantes da seca, incluindo negros emancipados pela Lei Áurea, que não tinham eira nem beira e foram recuando para dentro do sertão. Eles queriam sossego, apenas isso. O problema é que a República recém-proclamada precisava de um bode expiatório para promover a união nacional. O Exército do Brasil inteiro foi para lá, para acabar com aquele arraial miserável, paupérrimo, de gente que passava os dias rezando. Euclides também foi, levou o choque da vida dele e escreveu um livro de denúncia, estudando o fenômeno com todas as armas científicas de que podia dispor. Quando o livro foi publicado, cinco anos depois do fim da guerra, o escândalo foi enorme, porque aquilo ainda estava mal resolvido na consciência letrada do país. Não se sabia que os canudenses eram uma gente miserável, analfabeta, que não tinha nem armamento. Ninguém fazia ideia das atrocidades cometidas. Os soldados degolavam os prisioneiros manietados na frente dos generais. Depois, todo mundo se entregou ao remorso.

P: Isto porque Canudos foi uma guerra de grande apelo popular, não é?

WNG: Sim. Rui Barbosa fez uma conferência pedindo o extermínio dos canudenses. Os estudantes da Bahia fizeram um manifesto com o mesmo pedido. Quando acabou a guerra, Rui Barbosa e os estudantes viraram a casaca. Então, o livro foi um estouro inicialmente por causa disso. E depois, sendo como era, um libelo contra as circunstâncias da guerra e um monumento erigido em memória daqueles sertanejos, ganhou ainda mais destaque. Euclides foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. De uma hora para outra, tornou-se um intelectual ilustre.

P: E fora do Brasil?

WNG: Quase não houve impacto fora do Brasil. E isso se deve, em parte, ao papel secundário que a língua portuguesa tem no mundo. Contudo, acho que isto vem mudando. O Brasil está no auge do prestígio graças ao governo Lula. Retiramos 40 milhões de pessoas da miséria e não fomos atingidos pela crise econômica mundial de 2008 graças ao desenvolvimento do mercado interno. O Brasil, hoje, é considerado uma espécie de modelo. É o que dizem revistas sérias e conservadoras como The Economist.

P: Muitos autores brasileiros estão sendo traduzidos?

WNG: Muitos. É uma coisa formidável. Tenho um amigo francês, um pequeno editor com uma loja em Paris chamada Livraria Portuguesa e Brasileira. Ele sempre vendeu mais livros portugueses. Mas as coisas estão mudando. Enquanto as editoras e livrarias francesas entraram em déficit devido à crise, ele teve um aumento de dez por cento no fluxo de caixa graças ao Brasil. Há mais pessoas fazendo cursos de português, mais estudantes brasileiros por causa das bolsas, além de empresas e empresários que querem vir para o Brasil fazer negócios. Pela primeira vez na vida, esse meu amigo foi convidado pelo embaixador brasileiro para tratar de subsídios para tradução… O Brasil está saindo do incógnito, está mesmo. No fim do ano, fui para a Europalia: um grande evento, em que a cada ano a União Europeia homenageia um país. No ano passado, o país escolhido foi o Brasil. A mostra tinha 40 exposições do Brasil em Bruxelas. Artur Bispo do Rosário ganhou uma exposição individual, as Joias de Crioula ganharam outra. Além disso, houve espaços para a pintura moderna e para a pintura colonial – Frans Post, Rugendas e Debret. Os índios brasileiros ganharam um museu inteiro só para eles. E teatro, música, dança, cinema, literatura, rap e hip hop, maracatu, DJs e bandas de rock, violeiros caipiras, virtuoses eruditos, fotografia, tudo o que se possa imaginar. Durou três meses. E eu fui mandada para fazer parte do primeiro painel, que era de um dia inteiro, para discutir a cultura brasileira com os delegados europeus. Então, ficou claro, com os representantes brasileiros dizendo: “Olha, o Brasil hoje é um protagonista de primeiro nível; vocês precisam mudar a maneira de falar com o Brasil”.

P: Como vê o cenário da produção literária no Brasil hoje?

WNG: Com otimismo reservado. Até porque, mesmo lá fora, poucas coisas interessantes estão acontecendo no plano da literatura. Não tem um Musil, como você lembrou, por exemplo, e no Brasil não tem nenhum Guimarães Rosa ou uma Clarice Lispector. Talvez as letras tenham perdido um pouco seus representantes de impacto. Não vejo grandes experimentações de linguagem hoje. O que existe é a reprodução daquele discurso mediano, de terceira ou primeira pessoa, mas como se fosse em jornal, entende? Vejo um conformismo e um respeito muito grande às convenções. Lá fora também.

P: E a crítica?

WNG: A crítica praticamente desapareceu, como ninguém ignora. Antigamente havia uma crítica que se exercia em jornal. Antonio Candido fazia crítica de rodapé de jornal. Não somente ele, também Wilson Martins, Tristão de Athayde, Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai, Brito Broca…

P: O que aconteceu?

WNG: Benedito Nunes sempre dizia: “Não foi a crítica que se encastelou na universidade; foi o entorno que fechou as portas para a crítica”. É verdade; os jornais foram diminuindo os espaços para a crítica, para a literatura. No período da Guerra de Canudos, os jornais brasileiros publicavam matérias em francês! A própria evolução do jornalismo foi expulsando a crítica literária, que foi sendo substituída pelo press-release. Um exemplo é o excelente suplemento da Folha de S. Paulo, o Caderno Mais. Eu escrevia sistematicamente para aquele espaço, que foi fechado no ano passado, de uma hora para outra. E não foi substituído por mais nada. Não dava lucro, só prejuízo. E o mercado é que vai determinar estas coisas, não tem jeito. O próprio Mais já vinha diminuindo os textos que pedia. Antes, escrevíamos textos de 7.000 caracteres. De repente, começaram a me pedir textos de 4.000 caracteres. Isso é um suspiro, não dá nem duas páginas. A crítica parou de ser exercida, ficou só nas universidades, no ensaio. Você tem uma grande produção ensaística nesse período, que foi aumentando cada vez mais, e a crítica militante praticamente desapareceu.

P: O que substituiu a crítica?

WNG: De um lado, tivemos, como disse, uma grande produção ensaística dentro da universidade; do outro, os jornais acabaram adotando o press-release. Por mais prevenida que eu possa ser, eles conseguem me enganar. Por vezes, vou conferir um livro, um filme, uma exposição por causa de algo que li na imprensa… É tudo mentira, é press-release. É para vender; é mecanismo de mercado, não é estética. De certa maneira, em graus variados, isto aconteceu no mundo inteiro. É verdade que você tem exceções como a França, onde ainda se procura manter uma ligação entre a produção artística e o público. Mas não vale comparar com a França.

P: Por quê?

WNG: A França é única; ela mesma se postula como “exceção”, e “exceção cultural”. Vou te dar um exemplo cinematográfico. Na França, a televisão não substituiu o cinema. Muito pelo contrário. A TV é obrigada por lei a exibir uma porcentagem grande de filmes franceses, e além disso, também por lei, uma taxa fixa de seus lucros subsidia a produção cinematográfica. Veja bem: o cinema francês não é um milagre, é uma proposta, um projeto, uma legislação, entende? É a sociedade que acha importante ter seu próprio cinema. Agora, eu estava lendo umas coisas hoje sobre este blockbuster americano chamado Os vingadores. Das 4.000 salas que existem no Brasil inteiro, um filme de baixo nível ocupou 3.800. Isso é um completo absurdo. Não sobra nada para o cinema nacional, e ninguém faz nada. Como aconteceu com a crítica literária.

P: Mas a senhora escreve críticas literárias?

WNG: Escrevo absolutamente sobre tudo o que me interessa, mas não há a profissão de crítica literária: eu sou professora universitária. E tem outra coisa engraçada: hoje em dia, quem escreve romance no Brasil é professor universitário. Jornalista escreve biografia. Eu fiz um levantamento: antes, professor universitário era crítico, e não romancista. Você já imaginou Antonio Candido escrevendo um romance? Carpeaux, Wilson Martins ou Tristão de Athayde eram críticos, tinham consciência do que faziam. O professor universitário não faz mais crítica, escreve romance.

P: A senhora ainda torce o nariz quando o assunto é identidade nacional?

WNG: Ainda não acredito nessa questão da identidade nacional. Para mim, isto foi uma coisa construída a partir do século 18, junto com o nativismo e a Independência, em 1822. Depois disso, é falta de assunto. A identidade nacional brasileira está solidamente fincada no século 19. Ela foi resolvida ali. A cereja do bolo é o Modernismo de 22. Tem quase 100 anos. De lá para cá, não tivemos mais problemas de identidade. Outra coisa de que não gosto é a questão do multiculturalismo.

P: Por quê?

WNG: A minha impressão é de que os norte-americanos e os europeus, quando se viram invadidos por povos não brancos, começaram a falar em diversidade étnica, em multiculturalismo… E isso virou um cavalo de batalha para eles, inclusive na literatura. Ora, esse problema foi posto para a gente muito antes. Nós nascemos multiculturais e diversos. Isso não é uma questão para nós. Estamos 150 anos na frente deles. Eles estão preocupados com isso agora, nós estamos preocupados com isso desde sempre. Só porque o tema começa a ser discutido no Primeiro Mundo a gente acha que é problema nosso. Não é. Também não aceito a expressão “literatura pós-colonial”. Pós-colonial? A gente é independente desde 1822. Foram eles que inventaram isso, foi o Primeiro Mundo que inventou o rótulo de pós-colonial para falar de multiculturalismo, de diversidade etc. Não cabe para nós, é desaforo. Quando Gilberto Freyre, em 1933, escreve Casa-Grande & Senzala, é o fim do processo. Ele está fazendo a grande suma ideológica, com referência a um processo que termina ali. Na verdade, existem outras falácias no campo da literatura, talvez até mais presentes.

P: Quais?

WNG: Tenho muito medo do uso da literatura como fonte de pesquisa para outras disciplinas. É o que chamo de falácia documental. Sabe quando alguém lê um romance em que o protagonista é a princesa Isabel e acha que é fonte histórica? A Psicanálise, a Sociologia e a Antropologia fazem muito isso com literatura. São todas leituras abusivas. No momento em que essas ciências entram em crise e se descobrem todas como narrativas, vão em massa atrás da literatura, que sempre foi um campo livre, riquíssimo.

P: Por que isso retira a liberdade da literatura? De que forma a literatura pode servir a outras disciplinas?

WNG: A literatura não tem que servir a outras disciplinas, nem deve. A literatura é toda fruto da imaginação, ela é “inventada”, portanto não pode ser tomada ao pé da letra. Permeada pela camada retórica das imagens, das metáforas, dos símbolos, só pode ser entendida através de meandros interpretativos. Ora, tomar um discurso desses como documento para uso de outras disciplinas só pode resultar em distorções.


Algumas obras deWalnice Nogueira Galvão

As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972.

O império do Belo Monte: vida e morte de Canudos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Euclidiana: ensaios sobre Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional