Jamil Murad: Os desafios da saúde pública na cidade de São Paulo

Numa cidade com as dimensões da capital paulista, qualquer problema é complexo. No caso da saúde – que está longe de ser uma questão qualquer e figura como uma das principais preocupações dos brasileiros –, a análise é ainda mais complicada. Em ano de eleição municipal, o assunto ganha ainda mais relevo.

Por Jamil Murad*

Afinal, o próximo prefeito terá o desafio de ampliar e desenvolver a rede de maneira a responder às demandas da nossa população, pois, como o SUS é uma política de Estado, ele não pode ser interrompido e recomeçado a cada quatro anos.

Vejo com clareza que um dos principais problemas da saúde na capital está no fato de haver dois SUS: um administrado pela Prefeitura, com aproximadamente 6 mil leitos, e outro, pelo estado, com cerca de 11.400 leitos. E o pior: entre eles há mais concorrência camuflada do que confluência. Isso impede que seja implantada a verdadeira filosofia do SUS: a união das três esferas públicas – federal, estadual e municipal – visando ao máximo de resultados para os cidadãos.

Por isso, as políticas públicas acabam não sendo aplicadas da maneira mais adequada e uma série de questões que poderiam ser resolvidas acaba sendo travada e se perdendo num emaranhado burocrático e em meio à confusão das gestões. Tais fatores impedem que haja convergência de fatores e conhecimentos técnicos, humanos e financeiros para potencializar a capacidade do sistema público de saúde.

Hoje, na cidade, é possível dizer que algumas medidas positivas convivem com problemas crônicos, somados a outros novos. O investimento de 19% do orçamento municipal na saúde; a existência das Assistências Médicas Ambulatoriais (AMAs) – que facilitam a primeira consulta; e o fortalecimento do Samu – que melhorou o atendimento pré-hospitalar – são aspectos positivos. Entretanto, houve um enfraquecimento deliberado dos hospitais municipais, prontos-socorros e UBS – que vivem grandes dificuldades materiais e de pessoal – visando à implantação das Parcerias Público-Privadas (PPP) da saúde.

Quem sofre com isso, claro, é a população mais simples. Visitei muitos equipamentos públicos de atendimento, conversei com a população de diversos bairros e realizei audiências e debates públicos. E as reclamações são unânimes: faltam médicos (principalmente clínicos e pediatras, entre outros especialistas); há um número pequeno deles para atender a um grande número de pacientes, gerando filas enormes e grande insatisfação para o profissional e para o usuário; faltam leitos para internações e UTIs e dificuldade no acesso a exames em áreas essenciais. Conclusão: é comum um paciente demorar meses e até anos para ser atendido, tempo precioso para alguém cuja saúde pode estar em risco.

Faltam médicos onde mais há médicos

Conforme dados do Conselho Federal de Medicina, a cidade de São Paulo conta com 4,33 médicos por mil habitantes, número maior que o do estado (2,58), do que a média das cidades de grande porte (4,22), muito superior à média nacional (1,95) e compatível com o de países como Canadá e França, por exemplo. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, há cerca de 14 mil médicos na rede pública da cidade.

Apesar desses números, faltam profissionais nas regiões mais carentes da cidade de São Paulo. Para se ter uma ideia, 64% deles estão no centro expandido da capital. O Atlas da Saúde da cidade de São Paulo, desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo e pelo Instituto Via Pública, mostra que em distritos como Bela Vista, Consolação e Jardim Paulista – bairros de classes média e média alta – há mais de mil médicos por 10 mil habitantes. No extremo oposto, Curuçá, na zona leste, e Grajaú, na zona sul, têm menos de seis médicos por 10 mil habitantes.

Estes números mostram estatisticamente a desigualdade no atendimento e as dificuldades que enfrenta a população da periferia que nós constatamos cotidianamente. A falta de médicos no SUS nessas regiões é um dos problemas mais graves da saúde hoje. Tal ausência se dá por diversos fatores, com destaque para a remuneração muito baixa e a ausência de planos de carreira. E contribuem também a violência nas regiões mais afastadas, a dificuldade de locomoção até estes locais e a falta de infraestrutura de trabalho. Falta, ainda, regulação do poder público – o que abre caminho para a regulação do mercado, ou seja, os médicos acabam optando pelas alternativas mais interessantes do ponto de vista da remuneração, da progressão profissional e da localização, porque em geral não se sentem atraídos pelo sistema público.

Para superar isso, é preciso, primeiramente, que haja gestão unificada do poder público com democracia, transparência e ampla participação da sociedade no município. Afinal, nos últimos anos, houve uma política consciente de esvaziamento do sistema municipal de saúde, principalmente a partir do deslocamento dos recursos financeiros e materiais e das responsabilidades públicas para as Organizações Sociais de Saúde (OSS) – o que interferiu diretamente na qualidade do serviço prestado e na gestão de recursos humanos nos serviços próprios do município.

Cada Organização Social é autônoma, funciona sem articulação com as outras OSS e com o plano municipal de saúde, distante do cotidiano do poder público. A administração municipal precisa superar esse padrão e ser capaz de criar condições de trabalho e de salário atraentes e políticas de incentivo e de fixação desses profissionais nas áreas mais carentes.

Dificuldades nos equipamentos públicos

A periferia de São Paulo também sofre com a falta de estabelecimentos de saúde. O Atlas já citado indica que das 11.653 unidades cadastradas na capital paulista, 5.995 (51,4% do total) estavam localizadas em distritos como: Bela Vista, Consolação, Itaim Bibi, Jardim Paulista e Pinheiros, bairros de alto poder aquisitivo. Os extremos da cidade ainda sofrem com a falta de equipamentos para os mais diversos tipos de atendimento.

Além disso, o sistema de urgência e emergência clama por medidas que aumentem sua eficiência e qualidade, seja ampliando sua presença em áreas descobertas, seja garantindo leitos de UTI e hospitalares. Por ser São Paulo uma cidade com altos índices de acidentes, atropelamentos e crimes contra a vida, o serviço de urgência e emergência deve funcionar como um sistema integrado com recursos materiais e humanos de alta qualidade. Essas medidas devem ser complementadas com políticas de segurança pública e de trânsito que coíbam essas ocorrências.

Ainda neste aspecto, é preciso ampliar e desafogar o Samu. Entre outras medidas, é necessário criar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência Psiquiátrica (Samup) e o Serviço de Atendimento Especial para a Saúde (Sames) – este último voltado para responder ao atendimento pré-hospitalar, como consultas pós-cirúrgicas e remoções não urgentes.

Igualmente dramática é a falta de leitos hospitalares em diversas áreas da cidade. No chamado centro expandido, eles são abundantes, mas continuam escassos ou mesmo ausentes em outras áreas de grande densidade populacional. Segundo o Atlas, em 2010 a cidade contava com 34,6 mil leitos entre públicos e privados, ou seja, 31,4 por 10 mil habitantes, coeficiente maior que a média brasileira, de 24 por 10 mil, igualando-se aos Estados Unidos, mas ficando abaixo de Cuba (60) e França (72).

A disparidade regional também é notada neste quesito: há mais de 278 leitos por 10 mil habitantes em oito distritos de alto e médio poder aquisitivo, como Bela Vista, Cambuci e Consolação, e em mais de 28 distritos periféricos não havia sequer um leito. Do total de leitos já apontado, cerca de 17 mil são do SUS; e, neste caso, havia, no mesmo ano, 47 distritos sem registros deste tipo de leito. Estima-se que faltem 4.500 leitos, o que demandaria a criação destes em prédios já existentes, mas também a construção de novos hospitais.

Para lidar com todas estas questões, o financiamento da saúde também é um aspecto fundamental. Uma medida importante é o projeto de lei de iniciativa popular propondo que 10% das receitas correntes brutas da União sejam destinados ao SUS, o que poderia representar cerca de R$ 33 bilhões a mais no orçamento da pasta. Porém, também é preciso maior participação do estado. No caso de São Paulo, o governo estadual contribui muito pouco: dos cerca de R$ 6,6 bilhões do orçamento da saúde, 70,4% vêm do município e 29,3% da União. O governo estadual justifica que sua contribuição financeira é para manter a sua própria rede de hospitais, clínicas de especialidades e laboratórios existentes no município. Neste cenário, é impossível ao governo municipal ter um planejamento de saúde à altura das necessidades da população, que garanta eficiência e resolutibilidade.

Cabe ainda destacar que o SUS necessita da participação democrática da sociedade para o seu aprimoramento através dos conselhos de saúde. O município deve também controlar melhor o que contrata de outras instituições. Deve, inclusive, obrigá-las a funcionarem de maneira integrada e não cada uma por si como está acontecendo hoje.

Outras propostas para superar os desafios da saúde

Diante do cenário atual, a resolução destes e de tantos outros problemas da saúde paulistana passa por uma série de medidas. Primeiramente, é imprescindível que o sistema público de saúde em São Paulo seja unificado, eliminando a concorrência entre os dois comandos que existem na cidade. Ao mesmo tempo, é preciso fortalecer a gestão da Secretaria Municipal de Saúde sobre o sistema, colocando as instituições complementares sob sua orientação e aplicando uma fiscalização mais severa, recuperando e ampliando o sistema próprio de saúde do município.

Também é necessário ampliar para 20% os gastos com a saúde no orçamento municipal, bem como apoiar o movimento pela aplicação de 10% das receitas correntes brutas da União no SUS. Além disso, é necessário integrar toda a rede de Atenção Básica – AMAs, UBSs, Saúde da Família – e criar uma única central de regulação do município – hoje existe uma municipal e uma estadual. Essas medidas são essenciais para que o paciente possa ter seu histórico acompanhado por qualquer organismo do sistema e possa ser direcionado para o local mais próximo e mais adequado para o seu tratamento.

Outro ponto importante é a valorização dos serviços de promoção e vigilância em saúde, fundamentais para que diversos tipos de doenças sejam evitados, diminuindo assim a necessidade de o cidadão recorrer à rede de saúde. Também é preciso expandir o número de prontos-socorros, UTIs e hospitais nas regiões mais populosas e mal atendidas e fortalecer e ampliar a rede de saúde mental com ênfase no combate ao crack e a outras drogas.

São Paulo é uma referência em todo o país. Solucionar os gargalos que hoje dificultam o oferecimento de um tratamento mais digno e de melhor qualidade ao nosso povo é uma necessidade para nossa cidade se tornar cada vez melhor, justa e humana.

* Jamil Murad é vereador e presidente da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores de São Paulo

Artigo originalmente publicado na edição 120 (agosto/setembro) da revista Princípios