Capitalismo faz contrabando de cadáveres na Europa Oriental
É uma história muito dura. No último dia 24 de fevereiro a polícia ucraniana descobriu dentro de um furgão ossos e tecidos humanos misturados com bolos de dinheiro.
Publicado 29/10/2012 18:40
Não se tratava do crime de um mafioso vingativo ou de um sociopata desalmado e sim de vestígios de um negócio banal. A Ucrânia faz parte da rota internacional de "ingredientes" para a fabricação de artigos farmacêuticos – implantes dentários, próteses e cremes antirrugas – vendidos em todo o mundo e, especialmente nos Estados Unidos, o maior mercado desse tipo de produtos.
A investigação, na verdade, revelou que restos de cidadãos ucranianos eram enviados a uma fábrica na Alemanha, que por sua vez é uma subsidiária de uma companhia norte-americana de produtos médicos com sede na Flórida, a RTI Biologics, que fatura todos os anos 169 milhões de dólares graças a "reciclagem de material anatômico".
Um dos problemas é que o sistema de doação do tecido humano está submetido a uma regulamentação muito mais leve que o de sementes ou de brinquedos plásticos e, desde já, claramente mais tolerante que o de sangue ou órgãos para transplante.
É difícil seguir o rastro do tráfico de pele, ossos e válvulas sanguíneas e a maioria dos que se beneficiam – em clínicas e hospitais de todo o mundo – não conhecem a procedência do pino que colocaram na dentadura ou da próteses graças à qual deixou de mancar. Mais grave ainda: uma parte importante desse tráfico não provém de doações e sim de uma rede ilegal de roubo e comércio de cadáveres cujos lucros oscilam entre US$ 80 mil e US$ 200 mil por cada corpo.
Entre os restos encontrados no furgão estavam alguns que pertenciam a Oleksandr Frolov, de 35 anos, morto por um ataque de epilepsia. "No caminho para o cemitério, quando estávamos no cortejo fúnebre, notamos que um dos sapatos ficava caindo, parecia estar solto", contou sua mãe. "Quando minha nora o tocou, disse que o pé estava vazio". Mais tarde, a polícia mostrou uma lista do que tinha sido extraído do corpo do seu filho: duas costelas, dois calcanhares de Aquiles, dois cotovelos, dois tímpanos e dois dentes.
A história já é antiga. Em março de 2003, a polícia da Letônia investigou se o provedor local de Tutogen a subsidiárias alemã de RTI Biologics tinha extraído tecidos de cerca de 400 corpos que estavam no instituto médico forense do Estado sem permissão.
Dois anos mais tarde, Michael Mastromarino, proprietário da Biomedical Tissues, foi processado por comprar dos coveiros de Nova York e Pensilvânia até mil cadáveres para fabricar e vender produtos biomédicos no Canadá, Turquia, Suíça e Austrália.
Tanto no caso de Tutogen, como no caso de Matromarino, os cadáveres, sem suas vísceras e preenchidos com tecidos, madeira e tubos, eram devolvidos para suas famílias, que os enterravam sem desconfiar de nada.
Mastromarino, que hoje está preso acusado de ser "ladrão de cadáveres", declarou com toda naturalidade: "Esta é uma indústria. É um produto. Como a farinha no mercado. Não é diferente". E acrescentou: "eu peguei atalhos. Mas sabia onde podia fazer isso. Proporcionávamos um produto fantástico".
O tráfico do que, eufemisticamente, chamam "material anatômico" tem, sem dúvidas, consequências graves para a saúde: a implantação de tecidos sem controle já produziu diversos casos de câncer, hepatite C ou AIDS nos receptores.
Mas este, em todo caso, é um mal menor diante do que se faz a – digamos – "civilização humana", cujo fundamento histórico e cultural gira em torno a três elementos: o fogo, as sementes e o culto aos mortos.
Pode parecer um exagero, mas de alguma forma são os mortos os que protegem e humanizam as relações entre os vivos; são os mortos os que evitam a decomposição temporal das sociedades humanas.
Ateus ou religiosos, a morte aparece diante de nós como esse limite insuperável que ameaça a ordem social e que só pode ser absorvido nele de maneira precária e provisória, prolongando-o – por assim dizer – em uma frágil "sociedade de antepassados".
A cerimônia, a memória e a repetição gestual – as flores na tumba, a receita da avó ou o modo de caminhar do irmão morto – permitem "resolver" um problema que de outra forma dissolveria no terror todas as relações humanas.
Estamos vinculados entre nós porque estamos vinculados ao futuro através das crianças e porque estamos vinculados ao passado através dos mortos. Ao contrário que o mercado, uma sociedade humana é o conjunto das demandas das gerações passadas, presentes e que estão por vir.
Ao morrer, um corpo se transforma definitivamente em objeto. O cadáver está só e é vulnerável e dependente. Precisa de cuidados. Após uma despedida solene, é necessário enterrá-lo ou queimá-lo – paradoxalmente –para que não volte à vida; ou seja, para que não se transforme em outra coisa do que era.
Os processos de decomposição – invasão de uma nova confusão vital de outra ordem – desbaratam a plenitude final do morto, que conserva ainda um instante a dignidade inerte, passiva, desprotegida, do que foi nossa mãe, nosso tio ou nosso amigo.
Esse objeto – o cadáver – é terrível porque é humano e inumano ao mesmo tempo e porque nosso esforço por mantê-lo na humanidade, sempre fracassado, implica sua renúncia a ele.
É nosso porque nos asseguramos de que ninguém vai tocá-lo; é de todos porque nos asseguramos de que não será privatizado por um estranho. Fazer comércio com o sexo, com as sementes ou com a água é, sem dúvidas, um atentado à seriedade coletiva do mundo; mas fazer comércio com os mortos é como arrancar todas as vértebras e deixar sem veias nem ossos à Humanidade inteira.
A morte, como limite insuperável, só se pode humanizar renunciando a recuperar socialmente – racionalmente – o cadáver do ser querido. O mercado tornou legítima, honorável e banal a profanação dos mortos. Se dirá que o culto aos mortos é uma superstição, que o progresso requer deixar atrás tabus obstaculizadores e que, através desse comércio, os mortos, até agora sem utilidade, à margem de toda funcionalidade, se tornam socialmente úteis e ajudam a continuar vivendo os vivos.
Mas o paradoxo é justamente esse: ao recuperar socialmente os mortos transformando eles em mercadoria, ao nos negarmos a renunciar a eles, ao mantê-los em nossos corpos sem permitir que formem sua própria sociedade exterior, e ao fazer tudo isso contra a vontade do morto e dos seus sobreviventes, privamos definitivamente à humanidade dessa exterioridade irredutível – a Natureza – sem a qual são impossíveis os trabalhos esgotadores e maravilhosos da cultura humana.
Há coisas que não se podem raciocinar sem perder completamente a razão. Há coisas que não se podem desdramatizar sem agravar o drama. Uma humanidade submetida a uma fome da qual só é possível sobreviver se alimentando da carne dos seus pais mortos não merece o nome de humanidade e não merece, portanto, sobreviver.
O mercado capitalista aponta sempre à derrubada da civilização; e se ainda não conseguiu o seu propósito é só porque milhares de homens e mulheres a sustentam e dão apoio cozinhando, amando suas crianças, cuidando seus anciãos, se despedindo dos seus mortos e lutando pela terra e pelo fogo.
Fonte: TeleSUR