Obama e o Partido Democrata na Encruzilhada do Século 21

As eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro próximo colocam mais uma vez frente a frente os Partidos Democrata e Republicano e as pretensões renovadoras que o primeiro reivindicou a partir da candidatura de Barack Obama, em 2008, único Presidente negro da história do país.

Por Carlos Eduardo Martins*, no blog da Boitempo

O Partido Democrata afirmou-se na política norte-americana, sobretudo, entre 1932-1967 em torno da implementação dos programas do New Deal, nos anos 1930, da Grande Sociedade, nos anos 1960, e da expansão dos gastos militares desde a 2ª Guerra Mundial até a Guerra do Vietnã. O New Deal estabeleceu as bases de uma legislação de proteção social nos Estados Unidos ao criar os fundamentos da seguridade social (Social Security Act), introduzir o salário mínimo legal, limitar a jornada de trabalho diária, proteger os sindicatos de trabalhadores, formular programas para absorção de desempregados na construção civil e nos serviços, incluindo a indústria cinematográfica.

Entretanto foi insuficiente para enfrentar o desemprego, que permaneceu em torno de dois dígitos até 1939, muito acima dos índices do período de 1900-20, e restabelecer o crescimento econômico. Apenas com a drástica elevação dos gastos públicos impulsionada pelo setor militar em função da participação dos Estados Unidos na Guerra Mundial de 1939-45 se estabeleceu a combinação entre o pleno emprego, a elevação substancial da produtividade e as altas taxas de crescimento econômico. Os gastos públicos saltam de 9,8% em 1940 para 43,6% do PIB em 1943 e os gastos militares de 1,7% a 37% do mesmo no mesmo período.

Estabeleceram-se as bases da articulação entre warfare e welfare que impulsionaram o protagonismo do Partido Democrata neste período quando perdeu apenas duas eleições. Este tornou-se o partido das reformas sociais e da guerra impulsionando a elevação dos gastos públicos, principalmente militares, como fonte de geração de pleno emprego e crescimento econômico.

O pós-guerra introduziu uma economia política militar permanente impulsionada pela guerra fria que se ampliou durante as gestões democratas do aparato estatal estadunidense. Do pós-guerra até meados dos anos 1970, as administrações do Partido Republicano restringiram os gastos públicos e os militares: Eisenhower os reduziu de 20,4% a 17,8% e de 14,2% a 9,3% do PIB, respectivamente, Nixon de 20,5% a 18,7% e de 9,4% a 5,4% do PIB. Se Gerald Ford elevou os gastos públicos a 21,5%, reduziu os militares a 5,2% do PIB. Por outro lado, a administração Democrata manteve em altos patamares os gastos públicos e militares: Harry Trumann comandou a recuperação dos gastos públicos e militares no pós-guerra que ascenderam de 11,6% a 19,4% e de 3,5% a 13,2% do PIB entre 1948-52. A gestão de Kennedy e Lyndon Johnson, por sua vez, elevou os gastos públicos de 18,4% a 20,5% do PIB e manteve os gastos militares em 9,4% , entre 1961-68.

A ampliação dos gastos públicos a partir dos anos 1960 vai se vincular às grandes reformas sociais introduzidas pelo governo Democrata de Lyndon Johnson, mediante a implementação da Grande Sociedade, que estabeleceu programas de assistência à saúde como o Medicare, o Medicaid, de combate à pobreza e de universalização dos direitos civis e políticos (Civil Right Acts), com sua extensão aos negros afro-americanos. O princípio de discriminação positiva para fazer frente às grandes desigualdades sociais que sofria a população afro-americana foi introduzido no governo Kennedy e ampliado no governo Johnson consubstanciando as bases dos programas de ação afirmativa. Tal projeto enfrentou reação conservadora do eleitorado no Sul, reorientando o eixo gravitacional do Partido Democrata para os estados do Norte e abrindo o espaço para ascensão republicana.

O Partido Democrata favoreceu, portanto, a expansão dos gastos públicos articulando-os aos gastos militares e sociais como forma de geração de crescimento econômico, pleno emprego e combate à pobreza e altos níveis de desigualdade.

Republicanos

O Partido Republicano, por sua, vez, manejou uma visão mais conservadora, defendendo o equilíbrio fiscal, a articulação entre Estado mínimo e a defesa da propriedade. Aceitou, entretanto, certo aumento dos gastos em defesa para protegê-la, e em menor escala o aumento nos gastos sociais, uma vez que os considerava ameaças de práticas socialistas no capitalismo, devendo ser rigidamente controlados.

A partir do fim dos anos 1970 muda o regime de acumulação de capital dominante nos Estados Unidos, impactando o protagonismo político e as coalizões partidárias hegemônicas. A alta burguesia estadunidense opta pela financeirização para confrontar as ameaças trazidas à taxa de lucro pelo pleno emprego, aumento do valor da força de trabalho e concorrência internacional. Sobrevaloriza o dólar e desloca parte substancial do eixo de acumulação do circuito produtivo para o financeiro, apoiando-se para isso na brutal expansão da dívida pública.

Os gastos públicos dirigem-se para a formação de lucros extraordinários que não encontram contrapartida na produção real. Caem drasticamente as taxas de investimento. Quebra-se a articulação entre o aumento do gasto público, o pleno emprego, a elevação da produtividade e do crescimento econômico sustentado. Neste contexto, os republicanos tomam a dianteira. Adotam e implementam a plataforma neoliberal: sobrevalorizam o câmbio e estimulam a abertura da economia para destruição de empregos e redução dos níveis salariais; apoiam a expansão dos gastos públicos para usá-la como instrumento de obtenção de lucros extraordinários e de antídoto para o que denunciam ser “socialismo keynesiano”; promovem os gastos militares como justificava material para o aumento dos gastos estatais, redefinindo o “consenso” sobre o limite mínimo para a defesa dos Estados Unidos e a garantia da propriedade de seus cidadãos; e estabelecem reduções tarifárias sobre as corporações e os ricos mantendo a retórica do Estado mínimo e dos efeitos virtuosos para o emprego e a economia deste procedimento. A partir da década de 1980, o Partido Republicano deixa de ser o do equilíbrio fiscal e do Estado mínimo para ser o Partido da guerra, do déficit público, e da dívida pública.

O Partido Democrata perde o protagonismo e passa a ser condicionado pela nova conjuntura de rearticulação de estratégias da burguesia estadunidense. Das eleições presidenciais estabelecidas a partir de 1980, os republicanos venceram seis contra três dos democratas, placar quase simétrico ao de 1932-67, quando triunfaram em apenas duas entre nove eleições.

O descontrole da dívida e dos déficits públicos deixa de impulsionar o crescimento econômico e o emprego. O aumento dos pagamentos de juros pressiona pela diminuição dos gastos sociais. Gastos militares e sociais tornam-se antípodas. Os primeiros baseiam-se em tecnologias fortemente automatizadas após os custos humanos e políticos do Vietnã, gerando limitadíssima relação com o multiplicador keynesiano que propicia a expansão do emprego e do consumo. O Partido Democrata tornou-se então defensor do equilíbrio fiscal e do multilateralismo para tentar viabilizar os programas sociais que foram sua marca distintiva desde os anos 1930. Para implementar este enfoque buscou aproveitar as brechas proporcionadas pelas crises do regime de acumulação dominante.

A eclosão da dívida pública e dos déficits comerciais levou, no entanto, às crises na diplomacia do dólar forte e economia política da guerra. A retomada do crescimento de longo prazo na economia mundial a partir de 1994 colocou em cheque a opção pela financeirização da burguesia estadunindense que apesar de lhe oferecer lucros extraordinários no curto e médio prazo, aumentou a vulnerabilidade do setor real da economia, acelerando a redução de suas vantagens competitivas.

Abriu-se o espaço para a desvalorização cambial, redução dos juros e dos gastos militares. Clinton pretendeu dedicar-se a isto. Transformou déficits em superávits fiscais e planejou a sua utilização para eliminar a dívida pública até 2013. Todavia, a crise do regime de acumulação dominante estava longe de ser definitiva e as mudanças introduzidas eram moderadas, proporcionando mais ajustes internos que um novo padrão de acumulação que restabelecesse a centralidade do setor produtivo: a desvalorização cambial não impediu o forte crescimento dos déficits comerciais e parte substancial dos excedentes fiscais obtidos com corte de juros e despesas militares reciclou o processo de financeirização amortizando dívidas vinculadas ao rentismo e capital fictício.

George W.Bush

Esta proposta de reinserção do Partido Democrata alterou o seu centro de gravidade, uma vez que se desenvolveu em novo paradigma de acumulação. A vitória de George W. Bush, obtida no colégio eleitoral – graças à fraude na Flórida – após perder por pequena margem a eleição popular, alimentou-se do apelo populista à devolução de impostos ao contribuinte face aos superávits fiscais, vistos como sinal de usurpação governamental. Isto encontrou eco na esterilização parcial de seu alcance social por direcionar-se aos pagamentos da dívida pública, drenando excedentes que poderiam ser deslocados para o setor produtivo e os programas sociais.

O governo Bush Filho emergiu sob forte crise de legitimidade e buscou apoio popular na ofensiva terrorista que desatou a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001. Tal ofensiva introduziu elementos de fascismo nas políticas públicas estadunidenses – como a doutrina da ação preventiva, que colocou o direito imperial acima das soberanias nacionais e regras da comunidade e direito internacional; e o Patriot Act que violou as garantias jurídicas individuais do cidadão diante do poder repressivo do Estado, em particular, os estrangeiros legais ou ilegais, que poderiam ser detidos de forma preventiva, indefinidamente, e submetidos a tribunais militares – e colocou a defesa e a segurança como principal preocupação do Estado, que ao fazê-lo justificava negligenciar o aprofundamento dos problemas macroeconômicos e sociais para os quais estes gastos contribuíam.

George W. Bush deixou um dos legados macroeconômicos mais medíocres e negativos da história dos Estados Unidos, desde o pós-guerra. A tentativa de reaplicar a Reaganomics foi desastrosa. Sua política de cortes de impostos para os setores de alta renda, de retomada dos gastos militares e de manutenção do dólar sobrevalorizado foi catastrófica e precipitou a maior crise que a economia norte-americana vivenciou desde os anos 1930: o déficit comercial dobrou em cinco anos de governo, estimulado pela devolução dos excedentes fiscais aos segmentos mais ricos da sociedade, o que reduziu a taxa de poupança e incentivou o consumo de produtos importados; o PIB per capita se expandiu em apenas 1,1% a.a entre 2001-08, muito abaixo do desempenho da economia mundial no período, de 2,9% a.a; o déficit público disparou, invertendo um resultado fiscal positivo de 2,4% do PIB em 2000 para -3,5% do PIB, em 2004, em função da diminuição dos ingressos tributários que caíram de 20,6% a 16,1% entre 2001-04 – chegando a 15,1% em 2009, durante a recessão, a mais baixa arrecadação já alcançada pelo governo federal desde 1943 -, do aumento dos gastos militares que se expandiram de 3,0% a 4,3% do PIB, entre 2000-08, e do gastos com o Medicare e a seguridade social que se elevaram de 6,3% a 7,4% do PIB no mesmo período.

Aumentou-se o endividamento público, a população abaixo da linha de pobreza e iniciou-se em 2007 uma profunda recessão na economia estadunidense cujo caráter deve ser definido nos próximos anos: trata-se do fim do período longo de expansão que se inicia nos Estados Unidos desde 1994, ou de um período de transição e ajuste para mais uma de suas fases?

Barack Obama

A pesada herança do governo George W. Bush para seu sucessor se revela em números: US$ 1,6 trilhão de renúncia fiscal, destinação de US$ 700 bilhões para a compra de ativos podres através do Trouble Asset Relief Programm – dos quais foram utilizados efetivamente US$ 356 bilhões – e gastos de US$ 160 bilhões por meio do Economic Stimulus Act que estabeleceu novas renúncias fiscais e ampliações da compra de títulos podres. Tais programas foram reformulados e ampliados pelo governo Obama que procurou incluir neles uma dimensão social através do American Recovery and Reinvestment Act que se voltou para a manutenção do emprego, apoio aos desempregados, promoção da educação, saúde pública, infra-estrutura e energia limpa, gastando US$ 358 bilhões. Todavia, o Governo Obama não foi capaz de desenvolver um novo paradigma de políticas públicas que rompesse com a ofensiva da burguesia estadunidense sobre o Estado em favor de uma economia política da financeirização e da guerra, o que se refletiu na profunda decepção do eleitorado estadunidense que lhe impôs uma contundente e histórica derrota nas eleições de 2012 para o Congresso e Senado, quando o Partido Democrata perdeu a maioria no Congresso.

Desde 2008, os múltiplos programas de resgate de títulos podres e apoio à reativação da economia implicaram gastos de US$ 3,1 trilhões e apenas o FED desembolsou 1,5 trilhões buscando restabelecer a liquidez dos mercados financeiros. A dívida pública que havia caído de 66% para 57% do PIB durante o governo Clinton saltou para 70% ao final do governo George W. Bush, 85% no primeiro ano do governo Obama, e 100% em 2011. A taxa de pobreza alcançou 15,1% e 15% da população em 2010/11 frente aos 11,1% de 2001, e o aumento dos gastos sociais não tem sido efetivo para reduzi-la, pois se deduzirmos dos salários os impostos e lhe acrescermos os bens e serviços proporcionados pelas políticas sociais, a pobreza eleva-se para 16% (The Economic Report of The President, 2012). Tal realidade mostra a gravidade do ajuste tributário neoliberal introduzido pelas lideranças republicanas na economia estadunidense, que tornou os programas de combate à pobreza mais do que 100% financiados pelos pobres.

As taxas de desemprego permanecem em níveis extremamente elevados situando-se durante todo o mandato de Obama entre 8% e 9%, fato inédito para qualquer governo desde os anos 1940 nos Estados Unidos, superando na média até o governo Reagan. Os gastos militares continuaram aumentando: Clinton os havia reduzido de 4,8% do PIB para 3,0% do mesmo; George W. Bush elevou-os para 4,3% do PIB e Obama manteve esta ascensão, de forma mais lenta, estabilizando-os em aproximadamente 4,7% do PIB a partir de 2009. Todavia, com as retiradas das tropas estadunidenses do Iraque e do Afeganistão, que se estima concluir até 2014, Obama pretende reduzir os gastos militares novamente a 3% do PIB.

Eleições 2012

A apertada disputa que se prevê nas eleições estadunidenses de 2012 está relacionada à incapacidade do partido Democrata retomar suas tradições em favor da promoção de objetivos sociais. Tal retomada supõe uma ofensiva política e ideológica muito mais contundente, na medida em que implica descolar welfare state de warfare e assumir um programa de governo cada vez mais associado aos trabalhadores e à pequena e média burguesia estadunidense, em oposição ao rentismo e à aristocracia financeira em que se inscreve cada vez mais o grande capital. A existência de um presidente negro é uma inflexão simbólica importante e histórica, mas incapaz por si mesma para lograr este arranjo. A reforma da saúde introduzida pelo Governo Obama inicia um avanço importante, mas insuficiente.

Cada vez mais se esgotam as potencialidades do paradigma neoliberal e suas possibilidades de oferecer quaisquer perspectivas à sociedade estadunidense. Desde 1979, a desigualdade aumentou drasticamente nos Estados Unidos, reassumindo os níveis da década de 1910-20 e desmontando décadas de conquistas de welfare state. Hoje há pouco espaço para retomar a ofensiva da reaganomics pautada na diplomacia do dólar forte, na força das armas, em cortes de impostos para os ricos e redução de gastos sociais. A escalada da dívida pública e dos déficits públicos esterilizou a política monetária estadunidense forçando a manutenção de taxas de juros negativas para evitar a explosão das contas públicas; o crescimento avassalador dos déficits comerciais impôs a significativa desvalorização do dólar; o aumento dos gastos militares e a economia política da guerra não permitiu aos Estados Unidos o controle sobre o Oriente Médio; e a tentativa de aprofundar os cortes tributários choca-se contra a tendência secular de aumento dos gastos estatais que perpassa os Estados contemporâneos, em particular os da OECD e os Estados Unidos.

De 1948-2011 os gastos públicos dos Estados Unidos, somados todos os níveis de governo, saltaram de 17,1% em 1948 a 35% em 2011, com o pico de 37% em 2009. Trata-se de um novo patamar de gastos públicos que se atinge a partir da crise de 2008 e que dificilmente será revertido. O esforço republicano em reduzir a arrecadação estatal aprofunda o desequilíbrio financeiro das contas do Estado e garante através disso a apropriação dos gastos públicos pelos rentistas, via pagamentos de juros e amortizações dos empréstimos realizados. Se os gastos públicos elevaram-se de 29,5% a 35% entre 1979-2011, a arrecadação, no período, caiu de 27,3% a 25,5%. O discurso de Mitt Roomey de devolver cinco trilhões aos contribuintes soa ridículo e anacrônico e se executado levará o Estado ao caos financeiro e à multiplicação do seu elevado endividamento público que se chocará contra os gastos sociais.

Obama tem razão ao afirmar que seu oponente pretende voltar às políticas econômicas dos anos 1920, às políticas sociais dos anos 1950 e à política externa dos anos 1980. Entretanto, é preciso liberar os enormes excedentes econômicos que pelas mãos do Estado passam ao circuito financeiro e fictício da acumulação de capital, reorientando-os para os grandes projetos sociais que poderão fundar o século 21 como aquele de conquistas inéditas na história humanidade no combate à desigualdade, defesa do ecossistema e promoção da paz.

*Carlos Eduardo Martins* é chefe do Departamento de Ciencia Política (UFRJ), doutor em Sociologia (USP) e autor de Globalização, dependencia e neoliberalismo na América Latina (Boitempo, 2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007).