Cannabrava: Governo argentino enfrenta grande monopólio de mídia
Governo Grupo Clarín arma campanha da oligarquia contra iniciativa proposta pelo governo da presidenta Cristina Kirchner – e aprovada pelo Congresso, que lhe adicionou mais de cem emendas – para democratizar a comunicação
Por Paulo Cannabrava Filho*, no Diálogos do Sul
Publicado 14/11/2012 19:31
Dia sete de dezembro de 2012, começa a ser aplicada na Argentina a “Ley de Medios” que está deixando em polvorosa as oligarquias e monopólios proprietários de meios em todo o mundo. Essa Lei, proposta pelo governo de Cristina Kirchner, foi amplamente discutida, aprovada pela Câmara dos Deputados que lhe adicionou mais de cem emendas e, seguidamente, foi ratificada pelo Senado e regulamentada pelo Judiciário. Apoiada também por sindicatos de trabalhadores e organizações sociais, passou por todos os trâmites legais de um regime democrático.
Na elaboração da proposta para a “Ley de Medios” foram observadas todas as normas que conformam o Sistema Internacional de Direitos Humanos e está sendo considerada por organismos das Nações Unidas, como a Unesco, como exemplo a ser seguido.
Essa lei substitui a vigente que foi imposta pelos governos militares autoritários. Cria o Conselho Federal de Comunicação Audiovisual, a Defensoria Pública e uma Comissão Bicameral de Controle. Em síntese, a Lei estabelece a proibição da propriedade cruzada de meios; uma mesma empresa não pode possuir rede de televisão aberta e rede a cabo; reduz de 24 para dez o limite de concessões de rádio e televisão para um mesmo proprietário.
Coloca o dedo na ferida aberta de monopólios e oligarquias nunca antes contestados. A reunião da SIP (Sociedade Interamericana de Proprietários), recentemente realizada em São Paulo, traçou a estratégia de guerra a ser iniciada por todas as empresas filiadas para denunciar o que eles consideram “violação à liberdade de imprensa”. Os grandes monopólios midiáticos brasileiros já iniciaram a demonização de Cristina Kirchner e a tentativa de convencer a opinião pública de que um governo que se atreve a limitar a liberdade e a fonte de poder deles deve ser deposto.
Os inimigos de Cristina
A história dos meios de comunicação na Argentina tem origem comum à da mídia dos demais países do continente, porém, está marcada por fatos que a distingue dos demais. Fortes contingentes migratórios que povoaram o país no início do século XX, políticas educacionais inclusivas com escolas de qualidade e gratuita propiciaram uma sociedade ávida por leitura e informação.
Ilustra essa diferença com a sociedade brasileira, por exemplo, o fato de que em uma única Avenida de Buenos Aires, Corrientes, há mais livrarias do que em muitos Estados brasileiros. Lá o público de leitores foi sempre disputado por publicações de todo tipo, por jornais de grande tiragem e por um jornalismo de qualidade além de miríades de pequenos meios alternativos.
Projetos editoriais como o de La Opinión, que abrigou intelectuais de renome e foi massacrado pela ditadura, tiveram grande repercussão em todo o mundo. Os Cadernos do Terceiro Mundo nasceram em Buenos Aires em tempos de liberdade e democracia. E foi também durante as ditaduras que se formaram grandes conglomerados que hoje dominam o universo informativo.
Depois, no auge do liberalismo privatizante e entreguista de Menem e seus seguidores também as empresas e fundos de investimento resolveram investir seu capital na venda de informação. Se de um lado isso tem contribuído para maior concentração do capital, de outro, resulta em maior número de alternativas a disputar o público, gerando maior diversidade e liberdade de expressão. Em contrapartida, temos o pensamento único dos grandes grupos midiáticos.
Não pretendemos desenvolver aqui esse longo processo, mas sim dar alguns exemplos que serviram de paradigma para essa interpretação, mostrando resumidamente como se desenvolveram os principais meios que se dizem ameaçados pela legislação que democratiza a comunicação.
La Prensa
Fundado em 1889 foi durante algum tempo o jornal de maior circulação e peso político na Argentina. Em 1991 entrou em concordada e já passou por três proprietários até chegar ao que é hoje, um jornal sem importância. Seus dias de glória foram alcançados sob a direção de Alberto Gainza Paz (1899-1977), filho de tradicional e poderosa família de proprietários fundiários, que assumiu a direção em 1943. O jornal tinha a UPI (United Press International) como sócia. Com Perón no poder, o jornal sofreu intervenção de 1951 até 1956 quando foi devolvido à família e voltou a circular.
La Nación
O segundo diário mais importante da Argentina é o La Nación, que ocupou o lugar do velho La Prensa como principal jornal das oligarquias conservadoras, fundado em 1870 por Jorge Mitre. A família perdeu em 1990 o controle da empresa para a família Saguier que manteve Bartolomé Mitre na direção editorial com 10% das ações. O diário sobreviveu à crise dos anos 1990 e circula até hoje com expressiva tiragem. O controle acionário é exercido por Matilde Noble Mitre de Daguier. Voz corrente vincula a direção do jornal com o banco off shore Barton Corp. A empresa mantém um portal na web e edita a revista Gestión, em parceria com o Grupo HSM e as revistas Rolling Stone, Lugares, Ahora Mamá, El Jardín en la Argentina. Também participa da agência DyN e tinha cotas na empresa de papel jornal Papel Prensa juntamente com o Grupo Clarín.
Clarín
O Grupo Clarín é hoje o maior grupo de mídia da Argentina. Sua história se parece com a das organizações Globo do Brasil. Aqui foi a família Luce, (Robison e Clare Luce), milionários proprietários do Times e colaboradores da CIA que deram dinheiro a fundo perdido aos Marinho. Lá, foi a Goldman Sachs, cujo banco hoje tem 18% das ações da holding. O restante 82% está repartido entre Ernestina Herrera de Noble, Héctor Magneto, Lucio Pagliano e Jose Aranda.
A história desse grupo começou com o jornal diário Clarín, lançado em 1945 por Fernando Noble. Surgiu no vazio provocado por Perón ao expropriar La Prensa. Teve um grande crescimento a partir da década de 1970, época em que, favorecido pelas ditaduras, conseguiu o controle das fábricas de papel e de tintas – o escândalo da Papel Prensa. O grande salto se deu a partir dos anos 1990, quando ingressou no circuito de rádio e televisão, internet, produtoras e cinema. Em 1999, a Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimentos do planeta, adquiriu 18% do grupo, ao qual ingressou também a Disney e a Telefônica entre outras. Hoje integram o grupo cerca de 30 empresas dos mais diversos ramos.
Compõem o conglomerado de Clarín três das mais importantes emissoras de rádio (Radio Mitre, FM 100 e Gen FM); onze emissoras de televisão aberta Canal 13 (Artear SA), Señal Volver, Señal Magazine, Señal TN (Todo Noticias), Señal TyC Sports, Señal TyC Max, Canal 12 (Córdoba), Canal 7 (Bahía Blanca), TVC Pinamar, MTV Miramar, TSN Necochea; a maior rede de TV paga a Cabo e por satélite com cinco canais Multicanal, Supercanal, Trisa, Teledeportes, Direct TV (74% Hughes Entertainment; 20% Grupo Cisneros y 4% Grupo Clarín; as produtoras Pol-Ka, Patagonik Film Group, Internacional, sendo que desta participa a Disney; provedor de acesso à web; a Rádio Mitre e várias emissoras no interior. Também mantém na web mídias informativas multimídias e interativas. No portal Prima tem como sócio o banco Provincia e a Prima do Brasil.
Também controla os jornais de maior circulação Clarin, La Razón e Olé; Através da Cimeco, que tem 33,4% de capital espanhol, e importantes diários no interior: La Voz del Interior (Córdoba), Diário Los Andes (Mendoza). Controla também as revistas Viva, Gênios, Ñ, Elle Argentina, Elle Decoración, Elle Novias. A gráfica e distribuidora Impripost tem como sócia o grupo Techint.
Os grandes investimentos no setor de televisão foram viabilizados através de parcerias com grandes corporações transnacionais, como TyC, (TV esportiva) uma das grandes fabricantes e distribuidora mundial de peças e assessórios para indústria automotiva. Na Multicanal/Cablevisión, o grupo tem como sócia a Fintech Advisory, uma das grandes consultoras de negócios e investimentos com sede em Nova Iorque. Também o Grupo Vila, dedicado à hotelaria no mundo inteiro, está no negócio. Na Argentina, como no Brasil, a prevalência pelo lucro transformou a maioria dos canais de televisão, notadamente as TV por cabo, controlados pelos monopólios, em repetidoras de filmes produzidos nos Estados Unidos.
Na ilustração o poder do Grupo Clarín (fonte: http://mediosycomunicaciondeaca.wordpress.com/mapa-de-medios-en-argentina/)
Papel prensa
Uma das iniciativas mais recentes do governo de Cristina Kirchner foi a de encaminhar solução para o escabroso escândalo em torno da indústria de papel para jornal: “Papel Prensa”.
A lei que criou a empresa é de 1969, promulgada por Onganía. Inaugurada em 1971, funcionou até 1975, sob o controle do banqueiro David Graiver (1941-1976). Em 1976, após a morte de Graiver, o governo militar obrigou a viúva a vender as ações para as empresas proprietárias dos jornais Clarín, La Nación y La Razón reservando uma parte para o Estado. Foi um escândalo na época. Com anterioridade a mídia havia desencadeado uma campanha de demonização de Graiver, com denúncias de que estaria envolvido com as guerrilhas montoneras. Quando da venda forçada das ações foram adquiridas por US$ 7 milhões.
Graiver possuía dois bancos na Argentina e em Nova York, um em Bruxelas e outro em Tel Aviv, além de numerosas empresas espalhadas pelo mundo. Serviu ao governo de Lanusse e depois ao de Cámpora. Com os judeus José Klein, no Chile o Edmond Safra no Brasil formava o tripé da “banca judia” na América. Ajudou substancialmente a Hector Timerman, editor de La Opinión e da La Tarde. Opinión, lançado em 1971, foi um dos mais importantes jornais do continente à época, abrigando jornalistas e intelectuais de projeção, cobrindo honestamente os fatos que conturbavam nossa América, até que foi expropriado pela ditadura em 1977. Essa mesma ditadura prendeu e torturou Timerman mantendo-o desaparecido até 1980, quando por pressão internacional deixaram-no livre para asilar-se em Israel.
A relação da família Graiver com os Montoneros começa em 1972 quando teve que pagar 200 milhões de pesos para que libertassem Isidoro, o filho mais jovem sequestrado. Acusado de ser gerente financeiro dos Montoneros, Graiver passou a residir com sua esposa, Lidia Papaleo de Graiver e filha Maria Sol em Nova York em 1974 e morreu no México em agosto de 1976 numa queda de avião de causa nunca esclarecida. Após sua morte, sua família foi presa e torturada pelos militares que ocupavam o poder e forçada a vender a empresa.
Desde então corre processo na Justiça argentina contestando não só o valor, mas o como foi feita a transação. Já no ano seguinte, 1977, a empresa estava sob intervenção. Mas, os governos e a própria justiça negligenciaram permitindo que o Grupo Clarín ficasse com o controle de fato da empresa e adquirisse papel de imprensa 58% mais barato que o valor de venda para os demais veículos.
Diante das pressões dos minoritários e das denúncias de uso abusivo em 2001, foi feito um novo acordo com os acionistas. Essa confusão se alastrou até 2010 quando em agosto o governo de Cristina decide por uma nova intervenção para que se esclareçam as denúncias e se resolva as querelas entre os acionistas. Em 2011, a Unidade Fiscal Federal (Tribunal de Justiça) de La Plata qualificou como crime de lesa humanidade os fatos que envolveram a transferência de ações de Papel Prensa entre 1076 e 1977. Osvaldo Papaleo lembra que Clarín comprou a empresa com a família Graiver sequestrada.
Toda essa história flagrada de fraudes, mentiras e golpes baixos, envolvendo personagens de obscura trajetória, de conluios com as ditaduras, parece ter chegado a um desfecho quando no início de 2012 Cristina autoriza desapropriar a empresa. Tal medida desperta o ódio e o medo das oligarquias midiáticas continentais que, vendo o exemplo vizinho temem ver contestadas também suas relações espúrias com a ditadura militar. O fato é que casos como o da Folha, acusada de ter emprestado carros para que policiais prendessem militantes da esquerda, e do Globo, que expandiu seu poderio nos anos de chumbo, não foram exceções entre os barões da mídia. Foram a regra. Dos que não têm limites. Dos que não querem regras.
*Paulo Cannabrava Filho é jornalista e diretor da revista Diálogos do Sul. Integrou a equipe dos Cadernos do Terceiro Mundo desde sua fundação em 1975 até a última edição em 2005.Trabalhou no Última Hora, de São Paulo, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro e Expresso de Lima, Peru. Foi correspondente da Prensa Latina e da France Press na América Latina e diretor regional da Interpress Service.