Livro relata história do desaparecimento de Fernando Santa Cruz

Fernando saiu de casa no dia 23 de fevereiro de 1974, às 16h, e nunca mais voltou – na verdade, nunca mais teve a chance de voltar. O rapaz de 26 anos saiu da casa de seus parentes no Rio de Janeiro para encontrar o companheiro de militância política Eduardo Collier, deixando apenas um recado: se não voltasse até às 18h, é porque teria sido preso pelo aparato da ditadura militar.

Não, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira não voltou às 18h, nem em nenhum momento daquele dia. E é por isso que ainda hoje sua mãe, Dona Elzita, com 99 anos, leva consigo o peso de uma pergunta sem resposta, estampada no relato de Onde está meu filho? (Cepe Editora, 317 páginas), que ganha lançamento nesta quinta (22), às 19h, no Museu do Estado de Pernambuco, no Recife.

O livro, escrito a doze mãos pelos jornalistas Chico de Assis, Cristina Tavares, Gilvandro Filho, Jodeval Duarte e Nagib Jorge Neto e pela advogada Glória Brandão, é um relato forte e bem documentado da busca de Dona Elzita pelo paradeiro do seu filho. Trata-se não apenas de uma forma de tentar fazer justiça histórica a mais um dos grandes absurdos do regime militar: é uma demonstração de como a ditadura negou até mesmo direitos essenciais.

Fernando não foi apenas morto covardemente (e possivelmente torturado); não foi só o que o direito à vida que lhe foi arrancado. Foi negado a ele algo tão grave quanto: não teve o direito de ser declarado morto – de certa forma, é como se sua agonia continuasse até o devido registro – e de ser reconhecido como vítima de um assassinato do estado brasileiro.

“O livro foi feito originalmente em 1984, para lembrar os 10 anos do sumiço de Fernando. Na época, a ideia era fazer apenas um panfleto, que depois virou um folder e mais tarde, um livro”, conta Gilvandro, relator do Grupo de Produção do Jornal do Commercio. Segundo ele, foi a partir do envolvimento da então deputada federal e jornalista Cristina Tavares que se formou uma equipe de trabalho para criar o relato da luta incansável de Elzita, que chegou a ser duas vezes indicada por instituições de direitos humanos ao Nobel da Paz.

A edição ganha diversos acréscimos e atualizações em relação à original. Além de um caderno de fotos, foram incluídas revelações sobre o caso de Fernando, como a descoberta da vala de Perus, em São Paulo, e o reconhecimento do governo brasileiro da existência de desaparecidos políticos. A principal novidade é recente, feita pelo ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra em uma biografia, em que ele cita o nome de Fernando e Eduardo entre os 11 presos que foram torturados, mortos e incinerados no Rio de Janeiro.

Segundo Chico de Assis, que coordenou a nova edição, a ideia é que a obra sirva de subsídio para o momento em que o Brasil busca revelar a verdadeira história do período ditatorial. “Estamos chegando atrasados a um momento fundamental da nossa história política, de um resgate simbólico que pode chegar depois à justiça. O livro e a Comissão da Verdade são formas de finalmente expor aqueles que estavam acostumados a usar capuz para torturar”, conta.

Veja abaixo um trecho de Onde está meu filho?:

Desaparecimento e busca

Quando saiu no dia 23 de fevereiro, às quatro da tarde de um sábado de Carnaval, para um encontro com o companheiro Eduardo Collier Filho em Copacabana. Fernando deixou a indicação do local e uma advertência: se não voltasse até ás 18 horas, teria sido preso.

Não voltou e, desde então, começa, para seus familiares e amigos, um tormento que atingiu e marcou tantas outras pessoas neste País, lembrando Sísifo, personagem lendário grego, que foi condenado a empurrar eternamente uma pedra para o topo de um monte. Sempre que estava prestes a concluir a tarefa, a pedra resvalava e ele tinha que começar tudo de novo.

Existe, pois, alguma coisa da angústia de Sísifo na procura dos desaparecidos no auge da repressão do movimento militar de 1964. Caminhadas intermináveis, informações que, seguidamente, caem no pantanal dos equívocos, horas dolorosas de apreensão nos corredores e nas antessalas da tortura e da morte. Esse clima angustiante, tenso, marcou a busca de Fernando Santa Cruz desde o início, confrontando mãe, irmão, irmã, parentes e amigos com os que se elegeram juízes e executores, rasgaram textos legais e zombaram de resquícios de leis que deveriam assegurar aos detidos, pelo menos, a sobrevivência.

Era a "pedra no meio do caminho", pedra que começou a ser empurrada logo depois do dia 23 de fevereiro de 1974 (final do Governo Médici), quando Fernando foi visto, pela última vez, por seus familiares. A primeira denúncia, levada ao conhecimento do grande público, saiu do dia 2 de março de 1974, quando os jornais O Dia e O Globo publicaram notas sobre o desaparecimento.