Samuel Sérgio Salinas: Justiça e classe social

A disputa entre as classes sociais adquire, no recente processo do mensalão, nítida transparência política que extrema os aspectos profundos de uma crise permanente entre duas grandes linhas de opção política, tangenciadas por um conflito peculiar aos regimes capitalistas, ou seja, o inegável confronto de interesses opostos das classes sociais em que se estrutura a nossa sociedade.

Por Samuel Sérgio Salinas, especial para o Vermelho

De um lado, a grande burguesia, alimentada pelos notáveis e modernos meios de informação, a elas pertencentes, aptos e dispostos a exercer o papel de interveniente imediato e seguro para dobrar os poderes do Estado ao seu dispor. De outro, as estritas opções que as camadas populares dispõem para enfrentar o poder estatal, organizado a partir de leis constitucionais, votadas por parlamentos conservadores, escolhidos em eleições onde o dinheiro é uma expressão magnificente da conquista do voto em nosso País, mormente como acontecia antes da prática democrática ensejar, nas últimas décadas, uma valorização maior do voto livre.

A constituição dos poderes busca a sua forma democrática, entorpecida pela dificuldade em estabelecer critérios que permitam democratizar os órgãos de Estado e sua representação política. A eleição do Poder Executivo, embora assediada pelo dinheiro dos muito ricos, ainda responde à participação popular em igualdade de condições, um cidadão, um voto. No Congresso rege o mesmo princípio acrescido da maior proximidade entre o eleitor e os candidatos. Para ambos os poderes, Executivo e Legislativo, antecede uma campanha onde se podem estabelecer as premissas do atuar dos eleitos. A transparência e a visibilidade do Poder Judiciário, e o fato de que seus membros são escolhidos por uma só pessoa, o presidente da República, esmaece o vigor simbólico da representação popular. Os ministros do Supremo Tribunal Federal e de outros postos de idêntica natureza, não são eleitos, mas indicados para aprovação legislativa. Procedimento em que a vontade popular não se oferece de forma imediata e direta. Ainda mais se distancia do povo quando essa indicação exige para os 11 ministros do Supremo, “notável saber jurídico e reputação ilibada”, artigo 101 da Constituição da República Federativa do Brasil. A indicação, portanto, circunscreve a escolha a aspecto assaz subjetivo: a aferição desse saber , adquirido por uma parcela selecionada da nossa intelectualidade que o adquiriu nas melhores escolas do País, e o exercício desse saber em profissões que os distinguem por essas qualidades, intelectuais e morais.

O saber jurídico é uma restrição que revela a origem social dos ministros, pois depende de requisitos específicos que não são oferecidos à população em geral. A restrição “saber jurídico” remete a uma parcela circunscrita de sabedores, nem sempre os dotados de qualidades intelectuais que os distingam além desse aspecto parcial do conhecimento, o jurídico. O velho saber bacharelesco estendia-se ao conhecimento em direito e ciências sociais. Até isto foi subtraído do currículo dos candidatos a ministros do Supremo, circunscrevendo os presidentes da República a um circulo muito estreito de raríssimos que revestem a qualidade do saber e da reputação ilibada.

Exigir desses ministros que repudiem a sua classe, ainda mais restrita ao extrato superior, é acreditar no sexo dos anjos. Surgindo a oportunidade, como agora ocorreu, a ideologia a que pertencem, ou seja, a crença de que os políticos de esquerda são os inimigos do povo, desmancha-se nos interstícios das decisões para o caso e se encaminham para o pior dos totalitarismos, em que a vítima sempre será a justiça.

Diz a Constituição no parágrafo único do seu artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” O Poder Judiciário encontra-se muito longe do povo, pois desconhece que a maior injustiça e a inominável corrupção é a parte do salário que não se destina ao trabalhador, mas ao dador do emprego, ou seja, a paradoxal injustiça de que o dador recebe e não dá, injustiça que resulta do roubo institucionalizado, a forma de corrupção que comanda todas as demais , embora abrigada no seio das constituições . A corrupção, vista pelos supremos, é somente um tipo penal, nunca uma calamidade social decorrente dos despautérios da riqueza produzida pelo trabalho, riqueza infinitamente mal divida no mundo ocidental capitalista.

O saber “puro” é um mito do pensamento ocidental. Foucault afirma que esse grande mito deve ser liquidado. Foi esse mito – diz o pensador francês – que Nietzsche começou a demolir ao nos mostrar, em numerosos textos que, por trás de todo saber, de todo o conhecimento, o que está em jogo é a luta pelo poder O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.

Wilhelm Reich ensina que o interesse de classe e a luta de classes determinam a nossa existência presente, mas também a filosofia e a ciência, por trás da sua “objetividade” atua o interesse de classe. A presença das classes está em todo o espectro social, político, econômico e cultural. Esteve e estará presente nos poderes e se manifestará, como ocorreu no Supremo, em vozes exaltadas. Fúria condenatória que revela muito mais do que a mera aplicação da lei, mas um alvo maior, a própria estabilidade da vida política, invadida por uma decisão judiciária que ameaça transformar um poder, que se se reputa eminentemente técnico, em agente decidido de uma classe que se sente ameaçada pela ascensão do povo. Classe disposta a evitar o recomeço da vida democrática, ainda tênue, mas em ampla e completa recuperação depois de 25 anos de uma voraz ditadura de classe que ainda, neuroses a parte, percorreu alguns juízes do Supremo, a ponto de um deles reputar os réus do recente processo penal, de subversivos. Se os acusados supunham que estavam servindo uma linha política justa, da qual resultaram o estado atual da Nação, acolhido nacional e pelas demais nações do globo, não acreditavam eles que este é o caminho dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja, l/, construir uma sociedade livre, justa e solidária;2/ garantir o desenvolvimento nacional; 3/ erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;4/ promover o bem de todos , sem preconceito de origem, raça , sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, artigo 3º da Constituição Federal. Os meios não justificam os fins, princípio da ética que em relação ao processo mencionado foi ignorado pelos ministros que empregaram meios de não acolher o princípio fundamental do direito positivo penal que demanda prova, não suposições, para condenar acusados. Faltou aos juízes agirem como estadistas da toga, apurando os dados sem paixão para dosar penas, se necessário, adequadas ao momento histórico e social que definiram eventuais transgressões.

A preocupação com o Supremo Tribunal é a sua capacidade de interferir, como ocorreu na Alemanha, em questões relacionadas com a vida democrática e social do País. Vivemos uma crise que interfere em todos os momentos da atividade social, como se verifica na Europa, no Japão e nos Estados Unidos. Esforços e uma visão atenta da conjuntura internacional impediu que sofrêssemos os efeitos de uma crise que, na Europa, em pouco tempo, desbaratou conquistas muito antigas da classe operária. Nesse contexto, as disputas judiciárias podem adotar posições contrárias a esses progressos sociais, principalmente na sensível área da legislação trabalhista e de proteção social. A luta pela Justiça não pode esquecer a existência de instituições que respondem pela aplicação concreta da lei. A recente manifestação de alguns ministros do Supremo denota a existência de uma preocupação em corresponder à melhor análise e interpretação dos fatos. Já tivemos momentos em que esse mesmo tribunal esteve em harmonia com decisões que sinalizavas para o progresso das questões que nele foram examinadas. A luta é judicial, pelo judiciário, mas presente, pois é o nosso futuro democrático que está em cena, onde e quando se questionar a Justiça.

Samuel Sérgio Salinas é procurador de Justiça aposentado, colaborador do Vermelho