Pedro Benedito Maciel Neto: Pactos, teorias e nulidades

“[A] posição hierárquica não fundamenta,
sob nenhuma circunstância, o domínio do fato.
O mero ter de saber não basta.
Essa construção [“dever de saber”]
é do direito anglo-saxão
e não considero correta. (…)”. (Claus Roxin)
 
Por Pedro Benedito Maciel Neto*

Antes de partir para Portugal o Rei D. João VI teria dito seu filho que tomasse ele a coroa “antes que algum aventureiro lance mão”.

Essa frase foi repetida, irrefletidamente, como algo positivo ao longo do tempo e todos nós a ouvimos desde os bancos escolares.

Mas quem eram os aventureiros?

Os aventureiros – aos olhos do colonizador português – éramos nós, o povo brasileiro.

Gente como Tiradentes no Brasil e Simon Bolívar, Artigas, Sucre, San Martin, O´Higgins pela América Latina, eram o temor de D. João VI. O colonizador do século 19 temia heróis que liderassem revoluções de independência nos seus países, expulsando-os, o que ocorreu em processos articulados em vários países da região.

Talvez esse tenha sido o primeiro pacto de elite da nossa história, no qual elas [as elites] mudaram a forma da dominação, para imprimir continuidade, sob outra forma política. Por conta desse primeiro pacto a partir de 1822 a monarquia ganhou quase sete décadas de sobrevida no Brasil.

Por conta dessa decisão articulada da nobreza, da aristocracia e dos comerciantes o Brasil teve dois monarcas descendentes da família imperial portuguesa, ao invés de uma República, perderam-se décadas de avanço institucional e atrasou-se a construção de um Estado Nacional independente, os nossos colonizadores não foram expulsos, mantiveram-se “pessoas de bem” e influenciam até hoje o país.

E como sempre acontece com os pactos de elite, o povo é quem paga o seu preço.

Enquanto nos outros países do continente, as guerras de independência terminaram imediatamente com a escravidão, esta se prolongou no Brasil até 1888, fazendo com que fossemos o último país a terminar com ela (uma vergonha que interessava às elites, afinal o negro escravo era estoque de riqueza e mão de obra barata).

Nesse intervalo de tempo foi proclamada a Lei de Terras, de 1850, que legalizou a grilagem, aquela falcatrua em que o documento forjado é deixado na gaveta e o cocô do grilo faz parecer um documento antigo, todas as terras nas mãos dos latifundiários, bem diferente do que aconteceu nos EUA, por exemplo, sob a orientação da república e da democracia.

Ai veio o segundo pacto da elite: a República foi proclamada como um golpe militar, que a população assistiu “bestializada”, segundo a crônica da época, sem entender do que se tratava – o segundo grande pacto de elite, marginalizou, mais uma vez, o povo das grandes transformações históricas.

Outros pactos se seguiram a esses dois (a História está aí para ser conhecida e compreendida, vou escrever sobre eles um dia) e todos eles buscaram atender os interesses da elite nacional, conservadora, preconceituosa e sem qualquer compromisso além da manutenção de seus privilégios.

Estamos vivendo mais um pacto da elite que busca, com o diligente concurso de parcela da mídia, desqualificar o governo de esquerda, suas realizações e conquistas e criminalizá-lo.

Por enquanto temos que dar os parabéns aos desqualificados e malfeitores da elite colonizada! Bem como à imprensa marrom, que não tem compromisso com nada além dos seus lucros, eles venceram essa batalha, conseguiram pressionar e influenciar parcela do Supremo Tribunal Federal e condenar sem provas o ex-ministro Zé Dirceu após campanha midiática e demonstrações de absoluta ausência de princípios e valores.

Mas para banir pela segunda vez Zé Dirceu, o STF teve de “importar” uma teoria, jamais aplicada antes no, ou pelo, Supremo… Tudo para justificar a condenação sem provas de Zé Dirceu, uma vergonha a submissão da mais alta corte do país aos interesses da elite. Que interesses são esses? Eles que respondam.

E nesses nossos dias de unsicherheit (termo alemão que funde experiências como incerteza, insegurança e falta de garantia) vejo que a injustificada e equivocada aplicação da “Teoria do Domínio do Fato”, pode representar mais um pacto da elite, uma elite que perdeu três eleições presidenciais consecutivas e que busca por outros meios vencer seus adversários.

Estou falando de fatos concretos. A elite a que me refiro é poderosa e dissimulada e, segundo matéria jornalistica, oferece aos juízes do estado de São Paulo “brindes”, coisas simples como automóveis, cruzeiros, viagens a Paris, hospedagens em resorts (evidentemente com direito a acompanhante). Como é possível à sociedade confiar nesses senhores e em suas decisões?

Quando o colegiado do STF ignora as advertências do ministro Ricardo Lewandowski em outubro, acerca do erro que seria a aplicação da teoria de Claus Roxin e que se o jurista alemão fosse chamado a dizer se sua tese "poderia ser aplicada ao caso presente", em referência à Ação Penal 470, Lewandowski foi demonizado pelos milicianos da direita.

Foi contestado por três ministros e desrespeitado de forma desconcertante, mas passado apenas um mês do fato o jurista alemão critica o "mau uso" da teoria em entrevista à imprensa brasileira.

Isso mesmo, Claus Roxin é o jurista alemão que criou e aperfeiçoou a “Teoria do Domínio do Fato”, (teoria que possibilitou a condenação sem provas do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu), manifestou preocupação com o alcance indevido que alguns juristas e certas cortes de justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal alemão, estariam dando à sua teoria, especialmente ao estendê-la a delitos econômicos ambientais, sem atentar que os pressupostos essenciais de sua aplicação que o próprio Roxin havia estabelecido, dentre os quais a fungibilidade dos membros da organização delituosa.

No caso do mensalão a “Teoria do Domínio do Fato” não poderia ser aplicada, pois não há fungibilidade, porque os réus são nominados, identificados, eles têm nome, RG, endereço, não há uma razão, a meu ver, para se aplicar a teoria do domínio do fato. Não há porque aplicá-la, não há uma situação excepcional, como uma guerra por exemplo.

Roxin foi contundente e afirmou que “Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido ordem. Isso seria um mau uso”, ou seja, ninguém poderia ser condenado apenas pela sua posição hierárquica, porque a “posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter de saber não basta. Essa construção [“dever de saber”] é do direito anglo-saxão e não considero correta (…)”.

Noutras palavras, Zé Dirceu, herói de uma geração, foi condenado pela pressão sobre os ministros do STF e isso, data vênia, não corresponde ao Direito. Quem pressionou? Setores da imprensa, representantes dos derrotados nas urnas.

Tenho refletido muito sobre a questão da liberdade e dos direitos e garantidas individuais, motivado especialmente sobre a recente relativização do Princípio in dubio pro reo, princípio de Direito Processual Penal que recomenda ao juiz, na incerteza quanto à materialidade ou à autoria da infração, absolver o réu e chego à conclusão que eles [a liberdade e os direitos e garantias individuais] só podem ser garantidos coletivamente, ou seja, através da Politica. Por quê? Porque eles estarão sempre e apenas subordinados ao interesse coletivo.

O interesse coletivo é definido através da Polity (normas constitucionais e princípios), da Politics que decorre do legitimo e legitimador “jogo político” (são as leis complementares e leis ordinárias) e da Policy que emerge como resultado do “jogo político” (são as normas de Direito administrativo, são as políticas públicas) e não das decisões do Poder Judiciário, especialmente porque elas [as decisões] também estão subordinadas a eles, sob pena de nulidade das mesmas.

A elite e seus vassalos desqualificados e malfeitores empunharam as bandeiras da versão, da mentira e condenaram antecipadamente pessoas, mas não se enganem, o povo enquanto povo é muito melhor que a elite enquanto elite, afinal nossos sonhos e desejos aproximam-se genuinamente daquilo que chamamos de Deus, já os privilégios e interesses que são e estão condenados, afinal são o que são: estragados, corrompidos, estão em decomposição, estão deteriorados, fétidos.

*Pedro Benedito Maciel Neto, 48, advogado, sócio da Maciel Neto Advocacia, pós-graduado em Direito Processual Civil, Filosofia Politica e Planejamento Fiscal pela PUC-SP e pós-graduando em Economia no IE da Unicamp, autor de Reflexões sobre o estudo do direito, ed. Komedi, 2007