Henrique Wagner: Sobre o Sacanagem é Coisa Séria – O Salva-vidas

O lançamento do livro "Sacanagem é coisa séria " é nesta terça-feira (18/12), às 19h, no Oásis do Porto, próximo ao Instituto Mauá, Porto da Barra. Trata-se da coletânea de crônicas, artigos e histórias sobre o tema, divulgados nas redes sociais pelo organizador Geraldo Galindo. Vale a pena conferir.

O artigo é o prefácio da coletânea, escrito pelo poeta e crítico Henrique Wagner.

"Sobre o sacagem é coisa séria – O Salva vidas

Henrique Wagner (*)

Consta que Marighella, guerrilheiro, deputado federal, fundador da ANL, foi um sujeito extremamente bem-humorado e adepto do epigrama.

Ficou famoso seu soneto em resposta a uma questão da prova de Física em curso ginasial. E gostava de garatujar umas quadrinhas. Ou seja: um homem absolutamente comprometido com questões de urgência, questões sérias, digamos, jamais deixou de temperar sua vida – e a dos outros – com o bem maior da humanidade que é o estado de espírito alterado pela visão redentora de uma vida marcada por mazelas sociais.

E como se não bastasse o envolvimento com as tais questões sérias, o militante político vivia cada dia como se fosse o último, uma vez que era perseguido por sanguinários assassinos da ditadura. Mas riu, riu o tempo todo, divertiu-se muito, e consta que gostava de uma cerva.

Li pela primeira vez os textos satíricos de Galindo Luma pela internet mesmo. Alguns dos textos eram mandados pelo autor a amigos, sem jamais invadir a caixa de mensagem de desconhecidos ou detratores, acontecimento absolutamente comum no estranho mundo virtual da grande rede de Bil Gates.

E o que muito me impressionava era o absoluto desprendimento do autor, uma vez na condição de cronista ou autor de histórias engraçadas, em relação a seu posto político, sua vida política e, ainda mais sério, sua vida pessoal, marcada por uma tragédia dupla: o assassinato de sua irmã e cunhado e a impunidade do crime.

Talvez ainda mais forte que o homem que supera essas tragédias seja o homem que leva corno (tema caro a Galindo, que é adepto da liberdade sexual e irrestrita) e torna pública essa fatalidade, com todos os detalhes “sórdidos” e a graça em circunvoluções que acabam por defender a independência feminina – ouso dizer, sem medo algum, que Galindo Luma e Odinilag Amul são homens feministas, mais do que muitas feministas que conheço, ou de quem ouvi falar. Digo que talvez seja ainda mais forte o corno conformado porque vivemos numa cultura machista em que o corno é tragédia digna dos dois nelsons: Nelson Rodrigues e Nelson Gonçalves. Galindo os supera em coragem e flexibilidade.

Nascido em Montes Claros, terra de mestre Darcy Ribeiro mas, sobretudo, nascido em Minas Gerais, terra dos maiores cronistas do Brasil – é estranho lembrar que Rubem Braga, o maior de todos, era capixaba; tenho para mim que foi seu único erro em vida: nascer capixaba –, Galindo Luma vive na chamada Terra da Felicidade há cerca de trinta anos.

Desse modo, é perceptível o cruzamento dessas duas culturas em seus textos cínicos, em que a sutileza dos mineiros se engalfinha, se enrosca e se encaixa ao azeite dos baianos, à malícia (sempre recôndita, marca dos mineiros) dos soteropolitanos e dessa gente morena. Gosto de pensar que Galindo é mestiço: do pãozinho de queijo e do acarajé ele constrói

uma figura a um só tempo híbrida e homogênea, que produz os textos mais engraçados e coerentes em suas loucuras, de que há muito tempo não leio em minha vida.

Suas histórias mirabolantes, todas sem detetives ou inspetores (os crimes de Galindo são hilários, de modo que um inspetor jamais o prenderia; antes, o convidaria a tomar um chope num boteco chinfrim do bairro Dois de Julho), e das quais é sempre personagem, me parecem, às vezes, dar continuidade às invenções engenhosas dos mestres do conto policial.

Fiquei anos encucado com o famoso conto de Poe, dir-se-ia insolúvel, chamado Os assassinatos da rua Morgue: quem ousaria pensar num macaco imenso como autor da morte daquelas mulheres? Quem ousaria pensar qualquer coisa, depois de introduzida a história, cada vez mais “confusa” e quase sobrenatural, enquanto Sherlock, com seu indefectível

e famigerado nonchalance, dava continuidade a sua investigação como quem, pacientemente, anda prestes a concluir uma resenha para o jornal do condomínio?

O fato é que, diante de uma história de Galindo Luma, fico tão envolvido com a sucessão de acontecimentos absolutamente improváveis e cômicos – mas sempre coerentes, repito, e solucionados de maneira absolutamente crível –, sempre contados de maneira coloquial, extremamente acessível, comunicativa mesmo, que nem consigo tempo para pensar na verossimilhança da história:

quando dou por mim, já me encontro com dores no estômago de tanto rir com as situações e a linguagem cinicamente suburbana, de homem que se mistura integralmente ao povo da cidade, entre um sangue e outro etílico, criando no leitor imediata identidade com seu texto, dada o caráter de cotidiano de sua imaginação ou registro.

Galindo Luma é uma espécie de Woody Allen do conto policial, porque ele desanca tudo o que possa ser considerado sério em função das circunstâncias e das pessoas envolvidas. E não por acaso, o autor é fã do comediante americano. Ambos são ateus, ambos apaixonados pelas mulheres, ambos cáusticos e ambos… americanos! Sim, cada qual com sua América, e não se fala mais nisso.

A luta armada de Galindo é com a piada, o que me faz pensar num famoso episódio do grupo inglês Monty Python: um homem matava as pessoas de rir contando uma piada tão engraçada que se tornou a grande arma numa guerra atroz entre alemães e ingleses.

Por isso é que sempre levei Galindo Luma a sério: ele baixa a guarda de qualquer um, faz com que homens de direita, extrema direita, o admirem, e pessoas estressadas descansem um pouco de suas contas no fim do mês. Os textos de Galindo são a prova de que sacanagem é coisa mais que séria: nessa antiga ou hodierna guerra entre homens que não se entendem a partir de suas filiações, podem salvar vidas."

(*) Henrique Wagner é poeta e crítico de literatura