Márcia Denser: Balanço de dez anos de governos pós-neoliberais

A última coluna de Emir Sader traz observações muito oportunas para o ano político que começa, justamente ao fazer um balanço de dez anos de governos pós-neoliberais, a partir da posse de Lula, com continuidade em sua reeleição em 2006 e na eleição de Dilma em 2010.

Por Márcia Denser*

Assim, se completa uma década de governos que buscam superar os modelos centrados no mercado, no Estado mínimo, nas relações externas prioritariamente voltadas para os Estados Unidos e os países do centro do sistema.

Segundo Emir, são governos que, para superar a pesada herança econômica, social e política recebida, priorizam um modelo de desenvolvimento intrinsecamente articulado com políticas sociais redistributivas, colocando a ênfase nos direitos sociais e não nos mecanismos de mercado. Buscam o resgate do Estado como condutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais a toda a população. Colocam em prática políticas externas focadas nos processos de integração regional e nos intercâmbios Sul-Sul e não nos Tratados (unilaterais) de Livre Comércio com os EUA.

Os resultados são evidentes: o Brasil, famoso por ser o país mais desigual do continente mais desigual do mundo, vive, pela primeira vez, profundos processos de combate à pobreza, à miséria e à desigualdade, que já lograram transformar de maneira significativa a estrutura social do país, promovendo formas maciças de ascensão econômica e social, com acesso a direitos fundamentais para dezenas de milhões de brasileiros.

Dotando o Estado brasileiro de capacidade de ação, estamos podendo reagir aos efeitos recessivos da mais forte crise econômica internacional das ultimas oito décadas, mantendo o crescimento da economia e estendendo, ainda que em situações econômicas adversas, as políticas sociais redistributivas.

Por outro lado, políticas externas soberanas projetaram o Brasil como uma das lideranças emergentes em um mundo em crise de hegemonia, com iniciativas coletivas e solidárias, com propostas que apontam para um mundo multipolar, centrado em resoluções políticas pacíficas dos focos de conflitos e em formas de cooperação solidária para o desenvolvimento das regiões mais atrasadas.

No entanto, esses governos recebem uma pesada herança de um passado recente de enormes retrocessos de todo tipo. O Brasil – assim como a América Latina – passou pela crise da dívida, que encerrou o mais longo ciclo de crescimento econômico da nossa história, iniciado nos anos 1930 com a reação à crise de 1929. Sofreu os efeitos da ditadura militar, de mais de duas décadas, que quebrou a capacidade de resistência do movimento popular, preparando as condições para o outro fenômeno regressivo. Os governos neoliberais, de mais de uma década – de Collor a FHC – completaram esse processo regressivo do ponto de vista econômico, social e ideológico.

Assim, Lula não retoma o processo de desenvolvimento econômico e social onde ele havia sido estancado, mas recebe uma herança que inclui não apenas uma profunda e prolongada recessão, mas um Estado desarticulado, uma economia penetrada pelo capital estrangeiro, um mercado interno escancarado para o mercado internacional, uma sociedade fragmentada, com a maior parte dos trabalhadores sem contrato de trabalho.

Sader ensina: “O segredo do sucesso do governo Lula, seguido pelo de Dilma, está na ruptura em três aspectos essenciais do modelo neoliberal:
– a prioridade das políticas sociais e não do ajuste fiscal, mantido em função dessas políticas;
– a prioridade dos processos de integração regional e das alianças Sul-Sul e não de Tratado de Livre Comércio com os EUA;
– a retomada do papel do Estado como indutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais, deslocando a centralidade do mercado pregada e praticada pelo neoliberalismo.”

Essas características constituem o eixo do modelo pós-neoliberal – comum a todos os governos progressistas latino-americanos – que faz do continente um caso particular de única região do mundo que apresenta um conjunto de governos que pretendem superar o neoliberalismo e que desenvolvem projetos de integração regional autônomos em relação aos EUA.

E conclui: “Foi uma década essencial no Brasil, não apenas pelas transformações essenciais sofridas pelo país, mas também porque reverteu tendências históricas, especialmente quanto à desigualdade, que tinham feito do Brasil o país mais desigual do continente mais desigual do mundo. A década merece uma reflexão profunda e sistemática, que parta da herança recebida, analise os avanços realizados e projete as perspectivas, os problemas e o futuro do Brasil”.

Até porque, lembrando em certo pensador francês cujo nome agora me escapa: “Quando o passado não ilumina o futuro, o homem tateia no escuro”.

* Márcia Denser é jornalista e colunista do Congresso em Foco.

Fonte: Congresso em Foco