Audifax Rios: A arte entre tintas e letras

Ele pinta, ilustra, desenha, escreve… Considera-se mais escritor que pintor, mas diz já ter uma exposição pronta para 2013. Tem queixas, mas não mágoas. Fomos a casa-ateliê de Audifax Rios e trouxemos de lá um pouco do homem artista. Leia a seguir a íntegra da entrevista realizada pelo jornal O Povo e publicada nesta segunda-feira (21/01):

“Casa de artista é essa bagunça mesmo, não repare”, avisa Audifax Rios, enquanto tenta organizar a varanda. Pintor, escritor, ilustrador e xilógrafo de 67 anos, o homem de nome curto e pouca fala nos recebe com a timidez e a simpatia dos sertanejos que nunca deixaram a aura do interior. A influência de Santana do Acaraú, a cidade que ele tanto ama e teve de deixar no começo da juventude, continua viva nas memórias, nas referências artísticas, como lugar para onde olha quando precisa encontrar a si mesmo. Espiando por dentro de si, ele vê Santana e o colorido do Nordeste, característico de suas telas; o fantástico das histórias populares narradas nas crônicas, romances e contos. Menos pintor que escritor, ele se reconhece artista nos gestos dos que lhe são caros. “Sou um homem sério”, diz, resistindo à lente do fotógrafo. Mas o sorriso escapante, a cada história resgatada, diante do aconchego da família que tem ao redor, contradizem a aparente sisudez. Ao longo de duas horas e meia de conversa, percebe-se que a alma do homem se confunde com a de sua arte: simples, alegre e firme.

Vou começar perguntando sobre o seu tempo em Santana do Acaraú. A cidade continua muito presente na sua vida, no seu trabalho. Quais memórias o senhor guarda dessa época?

Na verdade, eu nasci num distrito de Santana, que hoje já é município, Marco. Mas eu digo que sou de Santana, porque só fiz nascer em Marco. Mamãe (Rita Moreira Rios) me pariu lá porque tinha umas irmãs pra tomar conta. Papai (Antônio Sales Eudes) era tabelião, e eu fui criado dentro de um ambiente muito católico. Ia pro seminário, mas aí inventaram um Ginásio (como era chamado o curso secundário) lá na minha terra e eu me livrei dessa. Minha mãe pintava, como toda mulher de prendas domésticas daquela época. Minha irmã mais velha era pintora profissional.

Essa irmã influenciou muito o começo da sua relação com a pintura, não é?

Ela bordava, pintava, desenhava. Foi minha professora de desenho e trabalhos manuais. E eu passei por um pedaço meio ruim aí porque diziam: “Ah, ganhou 10 porque é irmã”. Mas não tinha nada disso. (risos) Ela dava dez pra todo mundo.

E como era o Audifax desse tempo de criança?

Eu era meio molengão. Dentro de casa, meio sisudo, estudioso, ouvia muito, não falava. Inclusive eu chorava muito, qualquer apelidozinho que a ‘negada’ botava, eu saía pra casa, chorando. Era muito tímido. Superei muito, tanto que estou aqui conversando numa boa, mas sou super tímido ainda. O que me ajudou um pouco a não dizer besteira, a ficar calado, a escutar mais do que dizer.

Além das aulas de arte no colégio, tem uma história de que você ajudava a sua irmã a pintar em casa…

Ajudava. Ela pintava em disco, azulejo e tela também. E quando viu que eu estava pronto me mandava pintar o ‘céu’. Era um tempo que tinha muita encomenda. E ela foi jogando pra mim. Só que ela passava o mais chato pra mim. Tinha uma tinta feita com base de óleo de banana e óleo de linhaça, com secante e purpurina dourada. Não tinha pronta. Eu tinha de fazer. E era chato de fazer. Demorava a enxugar. A gente chamava de tinta do sétimo dia, porque passava sete dias pra enxugar. (risos) Aí, sem me dar conta, já estava pintando. Isso eu com dez anos.

Dez anos?

Antes ainda, com uns sete anos, já ajudava minha irmã. Eu não sou apegado a dinheiro, mas ganhar umas moedinhas da minha irmã era incrível! Então eu comecei a ser o irmão da pintora. Eu não tinha noção de como era o preconceito. Era colocado como se aquilo fosse coisa pra caboclo, pra pobre. Logo eu que sou mais caboclo do que eles até, e com muita honra. Mas pelo fato do papai ser tabelião, era tratado como casta. O papai fazia uns saraus de música. Era um cara extremamente religioso, pra ele as músicas naquele tempo eram quase profanas, mas, mesmo assim, ia um oficial de Justiça tocar violão, uma senhora cantar. E eram músicas dos anos 1940. As que eram sucesso na época, Nelson Gonçalves, Cauby (Peixoto), ele não permitia porque eram profanas. Falavam em beijo, em amor, “tuas carícias”. Isso aí era pecado. Lá em casa ninguém dizia nem ‘diabo’, era proibido. (risos)

Como foi o encontro com a Valda, sua esposa? Vocês se conheciam desde criança?

Eu ia sempre a um dentista que era vizinho à casa dela. Primo do pai dela. Era um casarão grande. Tinha uma placa: “Mulheres casadas têm preferência”. Eu chegava ao meio-dia, aí chegavam as mulheres casadas, entravam primeiro, às vezes eu saía de lá às 17h. Enquanto isso, eu ficava jogando com as meninas, que eram minhas colegas de colégio. Ela (Valda) também jogava. Mas nessa época eu nem… Depois teve umas férias lá que a gente começou a dar aquelas voltinhas na pracinha, o velho flerte dessa época. Foi um lance de amor mesmo muito legal. Essa coisa transferiu pra eles (filhos e netos). A gente é muito unido. São todos muito amigos, não por serem família. Por acaso são família.

Por que o senhor veio para Fortaleza?

No meu tempo, quando terminava o primário, tinha de se ir para um centro maior, continuar os estudos. Vim com 19 anos, pra estudar e trabalhar. Foi o tempo que eu entrei na TV Ceará.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar na TV Ceará?

Mas antes de ir pra lá rejeitei muito emprego. A família achava um absurdo ficar dispensando, mas eu dizia: “Não, eu vou trabalhar com uma coisa que eu queira!”. Aí um dia eu estava passando pra casa dos meus colegas pra tomar a malvada da cachaça e um homem dito Zé Arcanjo, que tinha sido meu professor de Ciências e era político lá em Santana, me chamou. A mulher dele (Maria Nogueira Machado), que tinha sido minha professora de Literatura, fez uma carta pra eu pedir emprego na TV. Ela achava que lá era a minha cara porque tinha cenários pra pintar… Outro dia, eu ia passando pela calçada deles, me pegaram e foram me deixar lá na televisão. “Tu não entregou aquela carta, não?”. “Não, entreguei não.”. Tinha vergonha, achava que não tinha capacidade para fazer um negócio desses. Aí a gente chegou lá, o Zé Arcanjo perguntou quem era o diretor da TV, disseram que era o Guilherme Neto. Quando ele chegou, disse pro Guilherme Neto: “Eu trouxe aqui não foi um rapaz pra você dar um emprego, eu trouxe foi um presente pra vocês. Eu não estou pedindo nada não, eu estou dando.”. E o cara, sem entender nada, perguntou quem ele era, e ele: “Eu sou médico, fui professor e diretor do colégio dele, conheço desde pequeno”. Foi embora e me deixou lá. O Guilherme disse: “Ei, aquele senhor disse que você pinta”. E eu, assustado: “Não, aquilo é invenção dele”. E ele: “Mas rapaz, você pinta ou não pinta? Você faz o que mesmo?” E eu disse que ajudava no colégio, fazia uns jornaizinhos, umas pinturas, ajudava minha irmã, mas não era profissional. Foi quando ele disse que precisava de alguém pra pintar cenários, umas coisas grandes. Ele me perguntou se eu queria fazer o teste e eu pensei foi ligeiro: “Eu faço o teste, não passo e acabou com essa história”.

Como foi o teste?

Ele marcou pro dia seguinte, às 9h. Passei a noite sem dormir. Então eu cheguei lá: “Que é que eu faço?”. Aí ele: “Traga aí um painel menor, 3m x 3m” (risos). E eu pensando: “Vixe, se o menor é esse, tô lascado!” (risos). E era o menor mesmo. Ele perguntou se eu queria uma referência e trouxe, de propósito, uma rua tortuosa de São Luís de Maranhão. Foi embora e eu fiquei fazendo. Ainda hoje tenho fama de rápido, mas a TV me auxiliou muito a ser rápido. Eu sou ariano, acho que era isso, a coisa de acabar logo, e eu estava assustado, queria me livrar. Aí terminei. Quando chegou 15h, ele passou por mim e disse: “Você não é o rapaz que estava pintando?”. E eu: “Sim, já pintei”. E ele deve ter pensado: “Isso não pode ter prestado”. Aí fomos ver. Quando terminou a avaliação, ele disse pra eu pegar a carteira (de trabalho) e assinar, que eu ia começar naquela hora mesmo.

Como foi a transição dos cenários na TV para a publicidade nos jornais?

Quando terminou a telenovela, veio o videotape, eu fiquei engajado no departamento de arte e aí foi que eu arranjei emprego em propaganda. Teve um tempo que eu tive quatro empregos. Numa agência de propaganda, na TV Ceará, no Correio do Ceará e no O Unitário (jornais impressos da época). Eu comecei fazendo a parte artística, depois passei pro comercial e fiquei fascinado por propaganda.

E o senhor continuou conciliando o trabalho de publicitário e de artista?

Eu pensei em fazer Arquitetura, Letras para ter um diploma, depois foi História… Acabou que eu nunca nem terminei o 3º (ginasial). Mas não posso nem reclamar, porque toda vida fiz o que eu gostei, trabalhei no que eu quis, nunca precisei estar explicando o que eu sei. Minha produção às vezes me assusta: “Já fiz isso tudinho?”. A maioria ninguém nem conhece. Mas todo dia eu desenho, escrevo. Um dia vão reconhecer. Tem gente que quer ser reconhecido em vida. O Lustosa (da Costa, jornalista) brigava comigo por causa disso. Eu quero é que meus netos se alegrem comigo. Meu pai, meu avô foi isso. Não que eu queira receber alguma coisa. Não, eu nem vou. (risos)

O senhor falou da escrita, que já escrevia, lia. Quando começou a relação com a Literatura e em que momento o senhor passou a levar a escrita mais a sério?

Foi, de novo, minha professora de Literatura, Maria Nogueira Machado. No ginásio, ela revolucionou as aulas. Ela viu que eu tinha talento pra escrever e começou a me botar pra fazer as coisas. Meu primeiro O Conde de Monte Cristo (do escritor francês Alexandre Dumas) foi ela quem me deu. Ela me orientou muito, me incentivava muito a escrever, levava recortes que falassem de Literatura, me escolheu pra ser correspondente do jornal O POVO.

O senhor já escrevia enquanto trabalhava na TV Ceará e depois nos jornais O Unitário e Correio. Como nasceu seu primeiro livro, Bar Peixe Frito, na década de 1980?

Um dia, eu bebendo cachaça num barzinho do Centro, fiz uma crônica sobre o bar. E um colega meu perguntou: “Rapaz, por que tu não continua fazendo essas crônicas?”. Faz um livro. Aí comecei a fazer todo dia uma, ilustrava, e chegou uma hora que eu tinha um livro. Foi um livrinho que serviu de experiência, mas na época deu uma repercussão danada. Depois disso fiz o segundo, com 25 contos ligados a animais do Jogo do Bicho.

Depois o senhor fez uma trilogia em forma de romance. Como conciliou os diferentes gêneros na sua Literatura?

Eu me acostumei a mexer com tudo, tanto na Literatura quanto na Pintura, como na vida mesmo. Até as cachaças eu tomava tudo. Talvez, como Luís Fernando Veríssimo disse, eu procurasse ser um homem que toca sete instrumentos, mas quem toca sete instrumentos termina não tocando nada que preste. Eu faço de tudo um pouco, eu gosto de fazer artesanato, desenho, eu tenho dois desenhos diferentes, um influenciado pela xilogravura, pesado, duro, preto, chapado, e tenho um desenho mais leve, com influência do Aldemir Martins (pintor cearense falecido em 2006). A minha pintura, não, hoje é uma só, é quase o meu desenho pintado. E a minha escritura tinha, no começo, essa coisa sincopada, influência do Graciliano Ramos, mas, depois, fiquei fascinado pelo Jorge Amado, que ainda hoje gosto muito. Em seguida conheci e me fascinei pelos latinos como Gabriel García Márquez.

E como procurou conciliar o trabalho como pintor e como escritor?

Vou confessar uma coisa que nunca disse: “Eu não me sinto mais pintor, não”. Eu só estou pintando por encomenda. Primeiro, ninguém reconhece a minha pintura. O pessoal daqui tem vergonha porque eu só pinto pássaro, peixe, cactos. Eu pinto a minha terra. Eu não sou vanguardista. Me condenam porque eu parei no tempo. Então tá bom. Ninguém me quer, eu vou deixar de pintar. Eu escrevo hoje mais do que pinto. Mas, sem mágoas.

Como é sua relação com os pintores da sua geração? E das gerações mais novas?

Nunca tive amizade com os pintores, de andar encangado com eles, não tolero essa coisa não. Nem com escritor. Eu nunca fui de grupinho. Acho que não devo estar dentro dos padrões e o pessoal exige muito que a gente seja de vanguarda ou que esteja em escola tal. Se aparecer uma novidade, eu tenho de estar lá pra dizer que sou moderno. Não. Eu estou fazendo a minha coisa e eu tenho consciência dela, e ela vai ficar, eu sei disso. Este ano eu quero fazer uma exposição, pra dizer que não morri ainda.

Como é o seu processo de criação na pintura, no desenho, na escrita?

Eu me condicionei a ter uma disciplina caótica, mas organizada. Eu ilustro a minha matéria, a dos outros, ao mesmo tempo eu estou ilustrando o livro de alguém, um infantil, são facetas distintas, um é colorido, outro é preto e branco. Sou muito levado pelo desafio. Não tem aquela hora pra escrever, aquela pra pintar. Eu deixei de trabalhar à noite pra trabalhar de madrugada. Ninguém perturba, não tem telefone, não tem barulho. Eu sou rápido, hoje eu não faço nem esboço. Pra escrever, escrevo à mão, deitado, pra acompanhar o pensamento. Quando eu vou pro computador, eu já estou revisando.

Sobre a relação entre Literatura e Visualidade. O que o senhor acha que a Literatura pode dizer que a Visualidade não alcança e vice-versa? Como essas duas vertentes se encontram no seu trabalho?

Eu acho que é uma coisa só. No meu caso, um complementa o outro, tanto que eu gosto do livro ilustrado. Pra mim a Pintura é uma descrição da vida, um libelo do pensamento, como a Literatura é, só que são linguagens diferentes. A influência do cenário em si me dá uma visão mais cinematográfica na hora de escrever. Uma preocupação que eu tenho na Literatura, mais do que na Pintura, é resgatar umas coisas que estão se perdendo. No caso, as palavras, as expressões, os pensamentos, os hábitos. Por isso eu misturo o erudito com o popular, de propósito, e porque também dá um jogo bonito de estilo. Sempre estou recorrendo a uma coisa e outra para não deixar morrer o popular.

Saiba mais

Logo no começo da conversa com equipe do O POVO, Flora, uma das netas de Audifax, interrompeu a entrevista. Uma menina linda, de sorriso doce e cabelos encaracolados, que derreteu a equipe e o avô, até então tímido. Ganhou abraços e beijos na bochecha e de vez em quando voltava para ficar espiando Audifax dando entrevista.

7 Anos – idade em que Audifax começou a ‘ganhar uns trocados’ com a pintura

3X3 metros – o menor painel que ele pintava quando começou na TV Ceará era de 9m2

Perfil

Audifax Rios é cearense de Marco, município que já foi distrito de Santana do Acaraú (a 249,1km de Fortaleza). Foi lá, na cidade instalada na microrregião de Sobral, que viveu a infância e boa parte da adolescência. Ariano do dia 17 de abril de 1946, ele é o quarto dos seis filhos dos tabeliães Rita Moreira Rios e Antônio Sales Eudes. Apesar de uma educação rígida, pautada pelo respeito à tradição católica e aos costumes da época, cresceu em contato com a arte e a cultura. A irmã mais velha o iniciou na Pintura, o pai promovia saraus de música em casa e o irmão lhe apresentou o amor pelo futebol com o time carioca Vasco da Gama. Quando migrou para Fortaleza, encontrou uma capital que respirava boemia. Quase sem querer, achou emprego na TV Ceará e, graças ao talento com os pincéis, aprimorou o traço e foi se moldando pintor. Depois dos cenários para as novelas estreladas por Ary Sherlock e Emiliano Queiroz, passou a pintar a paisagem que melhor conhecia e sempre carregou consigo: a querida Santana do Acaraú. Presente até nos nomes das filhas: Suzana, Mariana e Juliana (o sufixo Ana é a referência). Só Antônio, o filho mais velho, não herdou a menção à santa. Casado há mais de 40 anos com Valda, ele é avô de três netos. Aos 67 anos, não se considera mais pintor, embora o Nordeste retratado por ele tenha ganhado mais vivacidade e delicadeza, mas continua escrevendo e desenhando e inventando.

A entrevista aconteceu na segunda-feira, 14, no final da manhã. Havia sido marcada na sexta-feira anterior, por telefone. Perguntado sobre o melhor local para a conversa, a casa ou o ateliê, Audifax respondeu de pronto: “Pode vir, aqui a casa é o ateliê”.

A conversa foi na varanda da casa de Audifax, na Praia de Iracema. A assinatura do artista, acima do número, ajuda a identificar o endereço. De todo modo, quando chegamos, ele estava à nossa espera, já na calçada.

Por ser ateliê do artista, o espaço estava levemente bagunçado com os materiais e obras. Foi chegarmos para ele e o filho, Antônio, começarem a ajeitar o ambiente. Arrumação sob a supervisão de André Salgado, que queria aproveitar a “desordem” para as fotos.

Além da neta Flora, os filhos Juliana e Antônio, e a esposa, Valda, também apareceram durante a conversa. Valda fez questão de oferecer água e refrigerante à repórter e ao fotógrafo já que passava do meio-dia e o calor maltratava.

Fonte: O Povo