Otávio Dias de Souza Ferreira: Um museu para o ‘nunca mais!
A instalação da Comissão da Verdade no Brasil em maio de 2012, apesar de grande atraso em relação às de outros países que atravessaram períodos autoritários recentes, merece comemoração e constitui um inegável avanço para a consolidação de nossa democracia.
Por Otávio Dias de Souza Ferreira*
Publicado 05/02/2013 12:24
As investigações estão sendo conduzidas com certa confidencialidade, a exemplo de muitas outras dessas comissões, e há grande expectativa sobre os resultados a serem futuramente apresentados. A forma de divulgação desses trabalhos é uma questão fundamental que deve ser pensada desde já.
Sabe-se que será apresentado um grande relatório em ato oficial. Trará provavelmente milhares de páginas reunindo documentos, depoimentos, fotografias, notícias e registros distintos. A imprensa fará várias reportagens no calor desse acontecimento, mas provavelmente seus holofotes brevemente serão voltados para algum outro evento de grande repercussão. E se assim ocorrer, há um risco grande de todo o trabalho ser relegado ao esquecimento.
Não basta somente um relatório!
O Chile nos traz um precioso exemplo de como perpetuar a memória produzida sobre esses tempos autoritários. No governo de Michelle Bachelet, em janeiro de 2010, foi inaugurado um imenso museu para expor, entre outros materiais, os resultados das investigações de Comissões de Verdade realizadas naquele país(1): o "Museo de la Memoria y los Derechos Humanos”.
Organizou-se uma grande licitação que contou com 407 inscritos de todo o mundo. Cinquenta e seis projetos foram enviados, um mais impressionante do que o outro. O vencedor foi um escritório de São Paulo, Brasil, do arquiteto Mario Figueroa e o projeto de outro escritório paulistano –de Victor Paixão– recebeu menção honrosa.
Em um terreno imenso, ocupando todo um quarteirão próximo ao centro de Santiago, exatamente ao lado de uma estação do metrô e de uma bela praça, foi erguido em apenas um ano um enorme edifício moderno que compreende um cubo retangular na horizontal disposto sobre colunas em duas de suas extremidades, formando um amplo vão livre sobre um terreno escavado na profundidade de doze metros. O complexo construído do museu ocupa 5.300m2 distribuídos em três andares mais o piso térreo e um subterrâneo onde funciona uma biblioteca e um centro de documentações.
Logo na entrada há dezenas de placas com breves narrativas sobre experiências de Comissões da Verdade em países de Ásia, África, Europa e América. A do Brasil ainda não está exposta. Há por todo lado uma farta utilização de recursos tecnológicos e interativos. Uma grande parte é dedicada à ditadura e outra à transição. Traz uma infinidade de vídeos curtos com imagens de televisão, depoimentos e documentários em diversos recintos, cada qual focado em determinado assunto ou período. Tocando nas telas, o visitante pode selecionar o que pretende assistir. É preciso horas, talvez dias, para ver tudo. Há também sequências de impressionantes notícias de jornais e fotografias de diversos períodos. Vários livros sobre temáticas específicas estão expostos. Merecem destaque um sobre a deturpação de fatos pela mídia que apoiava o regime e outro que destaca a atuação de diversos militares que combateram a ditadura, defendendo a ordem democrática rompida pelo golpe militar. Há um mapa enorme indicando dezenas de locais de tortura espalhados por todo o país. É particularmente curiosa a parte dedicada ao plebiscito de 1988, o qual versava sobre a permanência ou não de Pinochet por mais oito anos. Diante de assentos confortáveis, uma grande tela alterna seguidamente inúmeras propagandas das campanhas pelo "si” e pelo "no”, algumas divertidas, outras assustadoras.
Sobretudo por se tratar de um museu que se ocupa de assuntos tão trágicos, espinhosos e indigestos, o cuidado com a forma de transmissão dos registros, com a estética e com o conforto do visitante é ainda mais imperativo.
O Brasil também tem plenas capacidades de construir tamanha estrutura e de organizar nela exposições espetaculares. Museus como o do futebol e o da língua portuguesa, ambos em São Paulo, são referências internacionais de tecnologia interativa.
Um museu dessa natureza deverá atrair pessoas de todas as classes sociais, categorias profissionais e idades – principalmente os mais jovens que não viveram aqueles anos obscuros. Assim como a entrada no museu chileno é gratuita, será de bom tom que a do nosso também o seja. O local deve ser muito bem localizado e propiciar facilidade de acesso.
Algumas das instalações poderiam ser voltadas exclusivamente para os movimentos culturais de resistência – com destaque para a música popular de protesto.
É interessante que também seja frequentado por militares e para tanto seria recomendável formular um espaço com referências positivas para eles, ressaltando figuras que resistiram ao grupo que subtraiu –e conservou por décadas– criminosamente para si o poder. Porque uma parte de quem agora está no topo dessas hierarquias –e que por isso tem um potencial de servir de referência aos mais novos–, envolveu-se diretamente com delitos cometidos na ditadura, gozando de completa impunidade e alguns deles até ousam comemorar anualmente o dia 31 de março –data do Golpe– dentro de clubes militares Brasil afora. Tal exposição seria também uma forma de resgatar a legitimidade da instituição, tão abalada naquele período. Talvez visitas periódicas de oficiais pudessem ser atreladas a estágios de formação e promoção na carreira militar.
Embora haja diversas formas de se difundir o conteúdo das investigações da nossa Comissão da Verdade, um empreendimento da natureza e do porte de um magnífico museu provavelmente seja aquele mais apropriado para a ambiciosa pretensão de influenciar na consolidação de nossas instituições democráticas e na redução de numerosas sequelas legadas por um período autoritário desfeito de forma tão difícil e excessivamente lenta.
Alguém poderá dizer que os números de vítimas fatais da ditadura chilena foram piores que os da nossa. Mas atrocidades são atrocidades. O período de terror por aqui foi enorme e há muito para contar. Só as mentiras produzidas pelo regime com a cumplicidade da mídia e os relatos de torturas cometidas seriam capazes de preencher intermináveis instalações. Quanto maior o espaço e os recursos disponíveis, maior será a possibilidade de se resgatar as múltiplas histórias de angústia e dor, corrigindo inverdades e atenuando injustiças. A consciência e a reflexão sobre esses conteúdos é fundamental para o amadurecimento da vida democrática.
E uma vez que as violações de direitos humanos não se esgotaram em um passado remoto, deve ser reservado um espaço para exposições temporárias que contemplem o presente, mostrando a crua realidade de execuções sumárias em conflitos no campo e nas periferias das grandes cidades, a utilização da tortura contra suspeitos como método rotineiro de investigação policial e a situação de perseguição sistemática a alguns movimentos sociais na sua luta por direitos.
Assim como Michelle Bachelet, Dilma Rousseff sofreu na pele as agruras da ditadura de seu país. Assim como a ex-presidenta chilena se imortalizou com a criação e fundação desse importante museu em seu mandato, quando proferiu com entusiasmo em um discurso a expressão "nunca más”, a atual presidenta brasileira tem nas mãos a oportunidade histórica de realizar semelhante empreendimento, consagrando em sua biografia uma contribuição notável para a defesa e promoção de direitos humanos em seu país.
Nota:
(1) Em 1990, logo que foi restaurada a democracia no Chile, foi constituída a "Comisión Nacional de Verdade y Reconciliación”, também conhecida como "Comisión Rettig” e, entre 2003 e 2005, funcionou a "Comisión sobre Prisión Política y Tortura”, também conhecida como "Comisión Valech”, cujos trabalhos foram posteriormente retomados para a produção de um segundo informe acerca de novas investigações realizadas entre 2010 e 2011 (in http://www.museodelamemoria.cl/el-museo/sobre-el-museo/comisiones-de-verdad/).
* É advogado e mestrando em Ciências Sociais pela Unifesp