Entrevista – Jorge Mautner: um homem a frente do seu tempo

Do encontro entre um judeu austríaco e uma católica iugoslava, nasceu o músico brasileiro que misturou a pluralidade de suas referências e influenciou grandes artistas. Em entrevista ao jornal O Povo, do Ceará, Jorge Mautner fala sobre sua da cinebiografia e outros temas.

Fazer parte de um grupo indesejado pelo regime nazista era sinônimo de extermínio na década 1940. Fugidos desse contexto nada pacato, um judeu austríaco e uma católica iugoslava quase tiveram o filho no barco, a caminho do Brasil. Depois da longa viagem em busca da vida, a família aportou no Rio de Janeiro e nasceu o menino que se tornou uma das maiores referências da música brasileira. O documentário Jorge Mautner – O Filho do Holocausto, lançado nacionalmente na última semana, é o mote para a conversa com o homem que nasceu brasileiro por acaso, mas que carrega consigo toda a brasilidade sonora que o País tem como identidade.

O documentário, produzido pelo Canal Brasil e dirigido por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt, parte da biografia homônima, escrita pelo próprio Jorge. As obras, audiovisual e literária, perpassam momentos que retratam os infortúnios da fuga, o nascimento em terras estrangeiras, a infância e a adolescência no Rio e em São Paulo, a detenção na ditadura, o exílio nos Estados Unidos (EUA) e Inglaterra. Tudo sempre em estreita relação com uma música ousada, que misturava estéticas nacionais e estrangeiras. Difícil foi condensar essa trajetória de 46 anos de carreira em apenas 90 minutos de película. “No livro, você consegue contar muito mais. Na cinebiografia, juntamos as peças do quebra-cabeça de como esse artista foi formado”, explica Heitor.

Aos 72 anos, o compositor, cantor, violinista e escritor foi figura fundamental para o movimento tropicalista brasileiro. Militante filiado ao Partido Comunista, Mautner foi detido durante o golpe militar. Quando foi solto, ficou em liberdade vigiada. A vida nos EUA, na década de 1960, foi a opção que lhe restou. De lá, seguiu para Londres, onde se aproximou de Caetano Veloso e Gilberto Gil e dirigiu o filme O Demiurgo (1970).

Produção e roteiro do documentário

A construção do roteiro do documentário começou ainda em 2010. De lá até aqui, um árduo processo de pesquisas, resgate de imagens históricas da Segunda Guerra Mundial, entrevistas com familiares, amigos e nomes célebres da música brasileira. “Caetano e Gilberto estavam saindo do tropicalismo. Exilados na Inglaterra, conheceram Jorge Mautner e houve uma empatia imediata. Jorge trouxe muita luz pro caminho deles. Os dois o têm como mestre”, afirma o diretor. Aquele era um momento de transição. A partir do encontro, Gil começou a ser mais pessoal em suas canções e Caetano passou a fazer uma imersão na obra de sambistas como Noel Rosa ou Aracy de Almeida.

O documentário conta com um show exclusivo, montado para as gravações. Nelson Jacobina (guitarra), Kassin (baixo), Pedro Sá (guitarra), Berna Ceppas (teclados e efeitos) e Domenico Lancellotti (bateria) são os músicos que o acompanharam. A harmonia de canções se emaranhando à narrativa didatiza melhor a obra, segundo Heitor. Um dos maiores intuitos dos diretores é visibilizar Mautner, dando-lhe o destaque que merece como figura que contribuiu intensamente com a música brasileira.

Leia abaixo a entrevista:

Apesar de ser baseado na sua autobiografia, o documentário foi dirigido por Bial e Heitor. Como foi ver toda sua vida contada por outras pessoas? Que avaliação você faz?

O livro não é toda minha vida. O documentário foi baseado no livro com fatos de 1941 até 1958. O resto são pedacinhos fundamentais, que aconteceram após a publicação, como o nascimento da minha filha em 1974 ou meu encontro com Gil e Caetano no exterior. E eu achei o filme genial, foi além das minhas expectativas, que já eram as melhores. Toda vez que eu assisto, eu enxergo algo novo. É impressionante. É uma obra de rigor máximo e de emoção maior ainda.

O que mais o emociona no documentário?

É difícil. Tudo me emociona muito. Cada coisa ali parte da minha vida. Tem depoimentos, declarações de pessoas muito amigas. Acho que o que mais me emociona é o depoimento do músico Nelson Jacobina. Ele faleceu no ano passado, era meu amigo. No filme, é a coisa mais importante pra mim.

O que você acha quando dizem que você é um artista a frente do seu tempo?

Logo cedo, fui descoberto por Vicente Ferreira da Silva (filósofo paulista). Oswald de Andrade dizia que ele era o maior pensador do Brasil. Quando me descobriram, fui encaminhado para essas conversas sobre a sociedade. Eram pessoas da maior generosidade e de uma paixão e amor pelo Brasil inigualáveis. Toda a minha obra Mitologia do Kaos (Editora Azougue, 2002) tem um pouco desse pensamento a frente do tempo. Traz influência de todos os conhecimentos e os pensadores do Brasil. Nessa época, muitos cronistas faziam o Brasil de coitadinho, mas o tropicalismo acabou com todos os preconceitos. A indústria caipira era tida como um horror. Foi o Jorge Ben Jor que trouxe a igualdade sobre tudo isso.
O Brasil é mais forte que os preconceitos.Esse futurismo está muito além da música, da miscigenação.

Após o Golpe Militar de 1964, você exilou-se nos Estados Unidos, depois foi pra Inglaterra. Como ficou sua relação com o Brasil morando fora?

O tempo todo eu estava ligado ao Brasil, tanto que fui secretário da Unesco. Na embaixada dos Estados Unidos, eu trabalhei como secretário literário. Fui contratado para revelar os mistérios do Brasil. Lia para eles, em português, Os Sertões, de Euclides da Cunha, não é maravilhoso? Todo o mundo ama o Brasil. Barack Obama já chegou a dizer que era baiano, em uma entrevista. Isso mostra a importância da nossa cultura. A revista Time Life fez uma matéria de capa: ‘Em breve, todos seremos brasileiros’. No filme O Demiurgo, gravado na Inglaterra, eu não mostro as paisagens, mostro os artistas. O que realmente importava era aquela cúpula de brasileiros que queriam voltar para sua terra, mas não podiam.

Ruth Mendes (esposa) e Amora (filha) mostram seu lado pessoal no filme. Como você se sente com sua intimidade retratada em um documentário?

Eu acho isso ótimo. Tá tudo ali. Envolver questão pessoal faz parte. Mesmo você falando de Filosofia, o mais importante é sua vida. Jesus de Nazaré inventou o romantismo, os direitos humanos, a democracia, o liberalismo e o socialismo, mas o que vale é a sua vida. A gente aprende tudo através da afetividade, do perdão, da vida pessoal, da conciliação, do amor. Tudo isso é o amor. Toda a nossa jurisprudência é baseada no amor. Eu faço isso, falo da minha vida pessoal e isso reflete outras coisas.

Já são quase 50 anos de carreira e muitas realizações. O que podemos esperar para os próximos anos?

Hoje minha vida está um turbilhão de coisas, estamos finalizando um CD oriundo do show documentário e estou fazendo palestras em vários lugares. Tem um trabalho importante, paralelo, que eu fiz mostrando a importância dos Pontos de Cultura, do Ministério da Cultura. Fui para Nazaré da Mata, em Pernambuco. Lá fiz um CD com Mestre Duda e o Maracatu Estrela de Ouro de Aliança. Estou com um programa na TV Brasil chamado “Oncotô?”, que é uma expressão mineira equivalente a “onde que eu estou?”. O programa tem participações de Caetano, Bethânia e outros músicos. Vou também inaugurar um portal daqui há dez dias. Lá vai ter toda minha obra. Fui nomeado consultor cultural do Ministério dos Esportes para irradiar essa amálgama cultural que somos nesse período pré-Copa e pré-Olimpíadas. Quero mostrar nossa cultura para o mundo, a cultura brasileira é a salvação da espécie humana (Danilo Castro).

Trailer do filme


Fonte: O Povo