O sambista do Bixiga

Está na certidão de batismo: Edimar Tobias da Silva. Na escola primária do Jardim Pery, zona norte de São Paulo, já o chamavam apenas de Tobias. Puxador do samba-enredo do Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Vai-Vai, infiltrou um "h" no segundo nome e mudou o sobrenome. Thobias da Vai-Vai explica: "O sobrenome segue a tradição de personagens do samba brasileiro, Paulo da Portela, Martinho da Vila, Jorginho do Império, Neguinho da Beija-Flor.

Thobias da Vai-Vai

Todos do Rio, por sinal. Mas foi lá que as escolas de samba nasceram com Ismael Silva na década de 20 do século passado.
 – E o "h"?
– É a oitava letra do alfabeto. Dizem que prenuncia progresso financeiro. Ainda estou esperando, mas melhorou um pouco.

O negro alto e robusto, agora com 55 anos, chapéu panamá para fazer tipo e esconder a calvície total, diz que queria ser cantor desde criança e nunca se incomodou de o chamarem de "puxador de samba", mesmo depois que o seu amigo, ídolo e maior de todos os puxadores, Jamelão, da Mangueira, renegou a alcunha e exigiu o tratamento de "intérprete".

Aos 22 anos, Thobias entrou na ala dos compositores da Vai-Vai – "nunca compus, mas cantava desde criança, e cantor entra na ala dos compositores" – e pelos 20 anos seguintes comandou o carro de som nos ensaios e nos desfiles. Em texto de 11.511 palavras sobre o Carnaval de São Paulo (com fotos, 235.679 bytes), a Wikipedia dedica a Thobias um só qualificativo: "fenômeno". Falar de Thobias é falar da Vai-Vai. E falar da Vai-Vai é falar de um estranho lugar quase no centro de São Paulo apelidado de "Bixiga".

Enquanto foi puxador, Thobias ajudou a Vai-Vai a conquistar 8 dos seus 12 títulos de campeã até então. O décimo terceiro campeonato do grupo especial das escolas de samba de São Paulo conquistaria em 2008 já como presidente da Vai-Vai num mandato de quatro anos. Presidente de honra desde 2010, no ano seguinte chegaria ao décimo quarto. E nesta sexta-feira, em transmissão ao vivo pela Globo, pretende alcançar o décimo quinto, com um enredo do carnavalesco Cahê Rodrigues, de nome quase tão longo quanto a letra do samba: "Vinhos do Brasil, Sangue da Terra, Videira da Vida, um Brinde de Amor em Plena Avenida" – como se percebe, sob patrocínio da indústria do vinho nacional.

A Vai-Vai é a mais premiada das escolas de samba de São Paulo – a segunda, Nenê da Vila Matilde, tem 11 títulos – e nunca foi rebaixada para o segundo grupo. "Quando a Vai-Vai vai mal, ficamos em terceiro, como no ano passado", diz Thobias, provocador.

Para ele, a Vai-Vai é também a mais popular das escolas de samba de São Paulo, afirmação difícil de comprovar sem uma pesquisa séria. Mas basta uma visita à sua sede em noite de ensaio para constatar que é das mais pobres. O casarão de 600 metros quadrados, com uma pista de dança e um jirau, não comporta os mais de 3 mil sambistas – "por favor, não os chame de foliões; é ofensa" – que leva para o sambódromo. Os ensaios são ao ar livre, numa confluência de ruas que vão dar na praça 14 Bis, embaixo do viaduto da avenida 9 de Julho, região central de São Paulo, num enclave do bairro Bela Vista que os moradores insistem em chamar de Bixiga, pois aquelas terras, um dia, no século XIX, pertenceram a um português com marcas de varíola. Autoridades municipais curvaram-se à grafia popular e, assim, com dois "i", o meio-bairro já aparece em registros oficiais.

Não houve reciprocidade. Ninguém em São Paulo, no Bixiga ou fora dele, adotou o nome oficial do sambódromo, Polo Cultural Grande Otelo, meritória homenagem ao grande ator mineiro. O máximo aceito é chamá-lo de sambódromo do Anhembi, o bairro.

Enquanto o samba rola lá fora, com compromisso rígido de a bateria do Mestre Tadeu fazer silêncio às 22h30, e calar-se o atual puxador, Wander Silva, com o samba-enredo repetido, repetido, para a escola toda não esquecer a letra, Thobias circula pelo salão da sede da Vai-Vai, recebe abraços, beijos; conhece todo mundo. Seu sucessor na presidência, Darly Silva, o Neguitão, 2 metros de puro músculo, é agora quem administra os problemas da escola, desde a contratação do carnavalesco e a caça ao patrocinador até a briga final no dia da apuração. Nesta noite o ensaio parece tranquilo e Neguitão relaxa batucando o surdo no meio da bateria; foi por ali que entrou na escola.

O salão, porém, está agitado. Presidentes e "presidentas" das alas acertam a venda das fantasias aos integrantes de seus grupos. O comércio de fantasias tem suas particularidades. O carnavalesco desenha a fantasia de cada ala. A direção da escola confecciona modelos, expõe-nos no jirau e vende os direitos de reprodução aos presidentes das alas, que contratam costureiras para terminar o trabalho. Em um mesinha no salão abaixo do jirau, Dona Penha, de 84 anos, que preside a Ala Curtissamba há 41 anos, aponta para cima – "aquela é a nossa fantasia" – e a vende, R$ 500 à vista, ao folião, perdão, sambista, com entrega à véspera do desfile. Num canto do salão há modelos de fantasias para quem vai povoar os carros alegóricos em torno do "destaque": R$ 2 mil à vista e R$ 2,5 mil em duas vezes – pagos obviamente até o dia da entrega. Esses são os preços do varejo, não há informação sobre o valor das transações internas. Os destaques providenciam a própria fantasia.

– Fantasia de destaque custa pouco, pois as moças economizam bastante no pano – observa o repórter.
– Não é barata, não. Cada pluma, cada pena de faisão, custa em torno de R$ 90. Vão 300 penas aqui atrás – diz Elizeth Rosa, integrante da Vai-Vai desde criança e, há 25 anos, companheira de Thobias. Mais discreta, cantora e compositora, Elizeth prefere o samba no pé e desfila no asfalto.

A escola banca as fantasias da bateria, da comissão de frente, das baianas, dos casais de mestre-sala e porta-bandeira. Thobias ensina: "É porta-bandeira, mas a bandeira se chama 'pavilhão', não a chame nem de estandarte; pavilhão é o certo". Os carros alegóricos, cada vez mais ricos e maiores, são montados num galpão perto do sambódromo. "Tudo isso custa dinheiro. Há verba da prefeitura, direito de imagem da televisão, arrecadação de bilheteria, mas é impossível fazer bonito na avenida sem patrocínio."

Thobias e Elizeth moram no Bixiga, têm quatro filhas e duas netas. "Agora finalmente vai nascer um hominho, um neto de nome francês, Didier", anuncia Elizeth. O casal se conheceu na Vai-Vai. Ele, neto de escravos. Ela, neta de italianos. Os avós, em gerações que se sucederam, trabalharam nas fazendas de café do interior e, como muitos negros e italianos, migraram para o Bixiga. No bairro continuaram a serviço dos antigos patrões, barões do café moradores nas mansões da avenida Paulista, ali perto, que empregavam os negros no trabalho doméstico e os brancos nas primeiras fábricas que São Paulo conheceu. Os negros criaram a Vai-Vai e os brancos aderiram – alguns e algumas até com leveza de cintura e quadril e destreza de calcanhar e sola do pé.

Apesar de fundada na República (1930, como cordão carnavalesco), a Vai-Vai exibe em seu pavilhão preto e branco uma coroa imperial sobre ramos de café entrelaçados. Não há muitas explicações para a simbologia, mas Thobias, sem se comprometer, arrisca: "É uma tradição. Os cordões saíam com negros e negras vestidos de reis, rainhas, roupas de veludo, tudo muito bonito, muito nobre. É como se, passada a escravidão, eles agora é que se sentiam reis e rainhas. Na Bahia até hoje as pessoas chamam as outras de 'meu rei'."
Em torno da Vai-Vai, negros e descendentes de italianos conviveram e convivem em aparente harmonia. Até hoje umbandistas vão à festa de Nossa Senhora da Achiropita na igreja da rua 13 de Maio, e católicos frequentam terreiros, ladeiras abaixo. O pároco da freguesia da Achiropita abençoa a Vai-Vai uma semana antes do Carnaval. E o kardecista, militante do PCdoB, Thobias da Vai-Vai, é cantor na procissão da Achiropita em todos os agostos. Adoniran Barbosa nunca morou no Bixiga – também não morou em Jaçanã -, mas frequentava os botequins do Bixiga e dizia-se feliz no sincretismo: seu nome verdadeiro revelava as origens – João Rubinato

"No rio Saracura [hoje canalizado] mulheres negras e brancas lavavam roupa para as famílias da Paulista. E cantavam. A Vai-Vai tem um samba lindo que fala dessa integração", lembra Elizeth. "Bixiga é um bairro afro-ítalo-brasileiro", diz Thobias. "Construíram-se edifícios, avenidas, viadutos, alguns moradores se mudaram, foram atrás de uma casinha melhor em outro bairro ou do Minha Casa Minha Vida fora da cidade, mas o estado de espírito permanece." Bixiga tem samba e cantinas, fusão natural.

Por isso Thobias, na companhia de Elizeth, escolheu para este "À Mesa com o Valor", se não a mais italiana, pelo menos a mais italianamente barulhenta das cantinas do Bixiga, a C… Que Sabe, na rua Rui Barbosa. Thobias anda por entre as mesas como se estivesse na Vai-Vai, conhece os garçons, o dono, o cardápio, os personagens das fotos nas paredes e o cantor Marcelo – pronuncie-se Martiêlo – de violão bem dedilhado e voz afinada, cujas cançonetas em dialeto napolitano Elizeth acompanha baixinho, a lembrar-se da mãe e da avó. Terminada a cantoria, os garçons jogam as bandejas no chão, assustam os "habitués" até que estes se habituem com a algazarra. O cantor atende a pedidos e o proprietário, Bruno Stippe, senta-se à sua mesa e escreve à mão a receita do seu prato, se você pedir, ou se estiver, é claro, acompanhado pelo Thobias. O C… Que Sabe não é lugar para convidar a moça para jantar com a intenção de conquistá-la. É lugar para levar namorada já conquistada, ela vai se divertir.

Por Paulo Totti, do Jornal Valor Econômico