Antonio Carlos Campelo: A defesa do Cocó

Quem acompanhou o crescimento e a expansão de Fortaleza assistiu ao formidável impacto das transformações ocorridas por aqui nas quatro últimas décadas.

Antonio Carlos Campelo Costa Junior, Suplente de vereador em Fortaleza (CE)

Entre as principais evidências, afirma-se que tais mudanças ocorreram (1) pelo êxodo ocasionado pela concentração da propriedade fundiária, pela destruição da agricultura e pelo inadequado tratamento do Estado à questão da seca e variações climáticas: e (2) pela concentração das terras urbanas, sua ausência de finalidade social, seu tratamento especulativo como “reservas de engorda”, pela pressão do capital imobiliário e dos interesses privados acerca do seu aproveitamento.

Nessas condições, a demanda do mercado por novas unidades habitacionais não pode prevalecer como princípio e essencial argumento para justificar a edificação de prédios — que nem sempre apresentam boa qualidade —, gerando distorções à expansão da malha urbana.

Esse tipo de ação pauta de modo indevido e socialmente ilegítimo o Direito à Cidade sem vínculos com os postulados do Estatuto da Cidade, de um Plano Diretor democraticamente estabelecido e que ofereça à sociedade um justo e ordenado uso social e espacial de elevada finalidade coletiva.

Os prejuízos há tempo são visíveis, destacando-se: a ausência de espaços públicos, crescimento indesejável dos índices de adensamento, de ocupação e impermeabilização do solo, perda da cobertura vegetal e outros aspectos que decorrem da ocupação das bacias fluviais, a exemplo do espaço dos rios como o Cocó e o Ceará-Maranguapinho — um fenômeno típico das capitais brasileiras em cada geografia específica. Além da absurda verticalização de qualquer pedaço desse chão em uma cidade outrora tão encantadora, assiste-se ao lento sufocar de valores simbólicos importantes, o desaparecimento de marcos referenciais significativos para a memória da cidade e, por fim, a gradual perda de sua identidade.

Hoje, Fortaleza, à exceção de poucos locais, assemelha-se a qualquer cidade não planificada do mundo em sua aparência e superfície. Uma cidade que pertence ao seu povo deve dispor, além de um tratamento justo no plano da oferta e expansão habitacional, de praças, parques e jardins consagrados como lugares de encontros, de permanência e de troca. Neste espaço qualificado deve ser contemplado o aspecto da concentração das atividades múltiplas e devem se constituir em remansos paisagísticos efetivamente belos e democráticos.

Claro que a paisagem e o urbanismo isoladamente não respondem pelas transformações de uma cidade. Ainda assim, representam pontos fortalecidos e significativos de uma ecologia social e econômica. Integram-se à vida na cidade, tanto pela via das inovações formais, quanto no papel humanizado de espaços diversificados, públicos e generosos — os quais estabelecem , adotam e valorizam marcos visuais fundamentais para a qualidade da paisagem e se enquadram numa mesma visão de conjunto, atenta às demandas sociais mais urgentes da vida civilizada: a defesa do patrimônio ambiental.

No meio dessa desarrumação feroz da vida urbana fortalezense é que se insere nosso articulado propósito de defender e preservar na sua totalidade o Parque Ecológico do Cocó, o primeiro de Fortaleza enquanto marco histórico conquistado.

Um equivoco das gestões municipais admitiu que a cidade deveria se desenvolver espontaneamente com a supremacia dos empreendimentos privados, com operações imobiliárias que se concentram nos eixos territoriais onde o retorno do investimento é mais garantido. Com essa política, o interesse público subordinou-se aos interesses unicamente alinhados à pauta dos negócios imobiliários lucrativos. Em consequência dessa política, a cidade passou a acumular conflitos sob a gestão privada e a acumular contradições com o equilíbrio necessário às expectativas de todas as pessoas — e independente de sua condição social.

Se a parceria do município com a iniciativa privada é uma necessidade posta pelo poder público municipal para potencializar seu desenvolvimento, por outro lado, privilegiar somente projetos privados, sem planejamento e amplo debate, condena Fortaleza a tornar-se refém do impacto do seu crescimento “espontâneo” decidido apenas segundo interesses particulares. Nenhum projeto deve, desse modo, se impor ao planejamento da cidade, posto que implica na quebra de hierarquia e responsabilidade dos órgãos públicos no disciplinamento e proteção ao patrimônio coletivo. Sob a livre hegemonia dos negócios imobiliários a cidade fica à mercê dos previsíveis impactos resultantes.

Por outro lado, a política pública vigente no país, configurou em Fortaleza outra hegemonia: a da prevalência dos meios exclusivos de mobilidade, de uso pessoal ou familiar, sobre o transporte público de qualidade, favorecendo o individualismo e a exclusão social, desestimulando ainda o uso social do espaço público e favorecendo a degradação dos seus componentes, a exemplo das calçadas e do mobiliário urbano. Além disso, facilitou a violência pela falta de usos que promovam a ocupação, preservação e vitalidade do espaço construido. A degradação do espaço urbano, com sua configuração de muros altos, portões e guaritas, determinam comportamentos sociais pautados pelo medo e a insegurança. Esta é a arquitetura que prevalece na cidade até hoje.

Enfim, reforça-se a necessidade de revigorarmos e apoiarmos criteriosamente, em conjunto com os urbanistas, ambientalistas, a pertinência dos movimentos ecológicos e sociais historicamente protagonistas das grandes lutas em defesa de um projeto democrático para Fortaleza: o IAB, o Crea, a Federação das Associações de Bairros e Favelas de Fortaleza, entidades não governamentais sucedâneas da Sociedade Cearense de Defesa do Meio Ambiente (Socema), entre outras.

Um projeto de cidade voltado para o fomento à qualidade das ações do planejamento urbano como instrumento essencial de gestão de nossa cidade, exige uma postura nova e diferenciada do atual governo municipal. Esta postura deve sinalizar efetivamente para uma mudança de paradigma quanto às gestões passadas, mediante a efetiva implantação do planejamento como prioridade deste governo — que deve se colocar à disposição da sociedade para somar solidariamente com as suas iniciativas inclusive no plano judicial contra os pareceres obscuros precedentes, favoráveis à especulação imobiliária.

Neste projeto de cidade devemos priorizar e privilegiar a preservação, ampliação e regulamentação do Parque do Cocó e as iniciativas que promovam seu uso como lugar de recreio, turismo e lazer para Fortaleza, um marco atual do nosso patrimônio ambiental.

(Título original "A defesa do Cocó: por uma Fortaleza digna do seu povo" alterado por redação do Vermelho)