João Quartim Moraes: Os neoliberais e a pujança chinesa  

Dias depois do golpe de 1964, os esbirros da ditadura prenderam um grupo de chineses que compunham uma delegação comercial em visita a nosso país. Os energúmenos fardados que para gáudio dos milionários, das marchadeiras e outros clérico-fascistas, tinham derrubado o que chamavam o governo comuno-peleguista de João Goulart, anunciaram tratar-se de mais uma prova do perigo de uma“ditadura comunista”.

Por João Quartim Moraes* 

Esse mesmo argumento de porta de quartel foi recentemente utilizado por eminente togado da Corte Suprema, o ministro M. A. Mello, o qual, respondendo a um estafeta da mediática televisiva sobre o golpe de 1964, comentou: “Tendo em vista o que se avizinhava, teríamos que esperar para ver; foi melhor não esperar”.

É o mesmo argumento surrado e vicioso reiterado em 1964: “vamos almoçar os comunistas antes de que eles nos jantem”. Se o ministro ultra-reacionário não podia saber “o que se avizinhava”, menos ainda os chineses, vindos para examinar as possibilidades de fazer negócios. A ideia era boa, mas tendo desembarcado justo no momento em que Deus, a Pátria e a Família estavam sendo salvos pela contra-revolução, os visitantes do Oriente foram expostos à sanha da imprensa golpista como malignas expressões do Anticristo. 

Meio século depois, a China havia se tornado a segunda potência econômica mundial e o mais importante parceiro comercial do Brasil. Não podendo deixar de constatar o extraordinário e prolongado desenvolvimento das forças produtivas sociais chinesas (crescimento anual médio de 9% durante trinta anos seguidos, feito sem precedente na história da economia mundial), os porta-vozes do carcomido “pensamento único” neoliberal alegam que ele ocorreu a despeito da “ditadura comunista”. Seria mais lógico examinar a hipótese de que foi justamente o comando central da economia exercido pelo Partido Comunista da China que permitiu manter esse ritmo ciclópico, em contraste frontal com a longa estagnação dos países membros do cartel hegemônico OTAN, a despeito de neles se concentrar parcela considerável da riqueza material e financeira do planeta.

Sem dúvida, esperar honestidade intelectual por parte dos estafetas da mediática imperialistaé querer tirar leite da pedra. Ainda assim merece registro a insolência com que pretendem, nem mais nem menos, explicar aos chineses como eles devem proceder. Não somente The Economist, mas toda a imprensa bem pensante do bloco liberal-imperialista prodiga-lhes ensinamentos não solicitados.

Em junho do ano passado, Time consagrou um “special report” à China. Sem surpresa, lemos ali que a economia chinesa não pode mais prosperar ao impulso de investimentos coordenados pelo Estado e que os burocratas devem cessar de manipular os preços, deixando agir livremente as forças do mercado. Em resumo, recomendam à China que abandone o controle do mercado pelo planejamento central, que lhe assegurou êxito econômico prodigioso, para adotar a liberdade de mercado sob a ditadura do capital financeiro.

A petulância desses escribas seria apenas ridícula se esquecêssemos da herança histórica de que eles são continuadores: o colonialismo crapuloso que com sanha genocida e artilharia pesada inundou a China do ópio que os ingleses produziam em suas plantações do Afeganistão. Foi o que lembrou Domenico Losurdo na conclusão do relato de um “instruttivo viaggio in Cina”, que realizou em julho de 2010:

“O “século das humilhações” da China (o período que vai de 1840 a 1949, a saber, desde a primeira guerra do ópio à conquista do poder pelo PCC) coincidiu historicamente com o século da mais profunda depravação moral do Ocidente: guerras do ópio com o ultraje infligido a Pequim no Palácio de Verão e com a destruição e pilhagem das obras de arte nele contidas, expansionismo colonial e recurso a práticas escravistas ou genocidas em prejuízo das “raças inferiores”, guerras imperialistas, fascismo e nazismo, com a barbárie capitalista, colonialista e racista que atingiu o auge.

Pelo modo como o Ocidente souber encarar o renascimento e o retorno da China, poderemos avaliar se ele está decidido a acertar realmente as contas com o século da sua mais profunda depravação moral. Que pelo menos a esquerda saiba ser o intérprete da cultura mais avançada e mais progressista do Ocidente!”.

*João Quartim Moraes é cientista político.