Nepomuceno: 37 anos depois da quarta-feira maldita na Argentina

No domingo (24) celebrou-se mais um Dia Internacional do Direito à Verdade. Na Argentina, o dia marcou mais um aniversário – o de número 37 – do golpe de Estado que na quarta-feira, 24 de março de 1976, derrubou o governo de Maria Estela Martínez de Perón, figura macabra, e instaurou um tempo de breu e horror que duraria até 1983.

Por Eric Nepomuceno, na Carta Maior

Desaparecidos

Paradoxos da vida real: o Dia do Direito à Verdade foi instituído em homenagem a monsenhor Oscar Romero, assassinado em El Salvador no dia 24 de março de 1980. Quando monsenhor Romero foi morto, a Argentina já padecia quatro anos de ditadura.

Em sua busca aflita e sem tréguas para fazer valer o direito à verdade, à memória e à justiça, milhares de pessoas saíram às ruas de Buenos Aires para se reunir na Plaza de Mayo nesse domingo de sol e temperatura amena. É muito possível que nem se lembrassem de monsenhor Romero naquele pequeno e ensangüentado El Salvador de 1980. Bastava, para elas, recordar o que aconteceu em seu próprio país depois da quarta-feira maldita, 24 de março de 1976.

Nos grupos que chegavam à Plaza de Mayo havia fotos de assassinados pela ditadura. Muitos que levavam fotos são filhos de desaparecidos. São, hoje, mais velhos do que eram seus pais e suas mães quando sumiram no breu de um massacre meticulosamente calculado e eficazmente executado.

Haveria o que celebrar, nesse domingo de Buenos Aires que marca mais um aniversário de um golpe de Estado que instaurou o horror no país? Sim. Havia e há: o direito à Verdade, à Memória, à Justiça.

Desde que, em 2003, o então presidente Néstor Kirchner deu espaço para que o advogado Eduardo Luis Duhalde, seu secretário nacional de Direitos Humanos, reabrisse as causas judiciais contra os responsáveis pelo genocídio que se abateu sobre a Argentina entre 1976 e 1983, a anistia e o indulto concedidos por Carlos Menem foram anulados. E não há um só dia em que nos tribunais do país os que cometeram crimes contra a humanidade não sejam julgados. E não há um só dia em que a verdade não venha, aos pedaços, à superfície, que se recupere a memória, que se imponha a Justiça.

Agora mesmo, por exemplo, surgem novos indícios e provas concretas sobre a enredada trama financeira que beneficiou os protegidos pela ditadura na base do saqueio direto de bens e empresas de empresários que se mostraram pouco ou nada complacentes. Empresários e banqueiros foram seqüestrados, torturados, espoliados. No total, uns 130. Deles, pelo menos onze nunca mais apareceram.

Houve um sistema financeiro paralelo, com a missão de redistribuir bens apropriados de empresários de maneira absolutamente ilegal. Dois altos funcionários de estrita confiança do malfadado ministro de Economia da ditadura, José Alfredo Martínez de Hoz, Juan Alfedo Etchebarne e René Garris, respondem à Justiça por uma série de delitos financeiros e também por haver presenciado interrogatórios, ou seja, sessões de tortura.

A própria CNV – Comisión Nacional de Valores – agiu com total autonomia, invadindo empresas, promovendo auditorias, determinando intervenções que resultaram, invariavelmente, em algum grupo se apoderar do patrimônio e do controle sem que os verdadeiros proprietários fossem indenizados. Rapinagem pura, ao amparo do terrorismo de Estado.

A desculpa inicial era detectar onde as organizações armadas – Montoneros e ERP (Exército Revolucionário do Povo) – haviam investido os milhões de dólares obtidos com seqüestros de grandes empresários e assaltos a bancos. Mas em seguida, a partir de 1978, avançou-se sobre empresas e bancos que "atentassem contra a economia argentina", ou seja, que contrariassem os ditames de Martínez de Hoz e os interesses da oligarquia que apoiava (e deles se beneficiava) os militares.

Muitas das vítimas integravam a elite financeira e empresarial (houve donos de bancos seqüestrados e torturados, por exemplo) e mantinham laços próximos com setores das Forças Armadas. Com isso, houve divisões entre os próprios militares, mas que de nada adiantaram para evitar que a roda-viva do horror seguisse seu rumo.

Tudo isso está vindo à superfície, conforme avançam os julgamentos sobre os crimes cometidos durante a ditadura. Da mesma forma que já emergiram os primeiros casos, com provas que não permitem dúvidas, do indecoroso papel desempenhado pela Igreja Católica argentina durante a ditadura. Agora mesmo, com a escolha do bispo Jorge Mario Bergoglio, cardeal de Buenos Aires, para virar o Papa Francisco, esse aspecto bem pouco edificante da hierarquia eclesiástica voltou a ser tema de debate.

É impressionante a mobilização unânime dos grandes conglomerados de comunicação que correm atrás de quem apóie o Papa, inclusive mudando radicalmente de opinião e desmentindo o que dizia há poucos anos. O Vaticano, como era de se esperar, conseguiu achar tempo e espaço, entre um escândalo e outro, para correr em defesa do Papa Francisco, assegurando que as acusações são "caluniosas e difamatórias". Jornalistas se lançam, ávidos, à cata de quem desminta as acusações e jure que o Papa Francisco não fez o que dizem ter feito então padre Bergoglio.

Curiosamente, o próprio Bergoglio pediu perdão em nome da Igreja Católica, há treze anos, quando nem sonhava em virar Francisco. Com todas as letras admitiu, em 2000, que a Igreja "não fez o suficiente".

Ora, isso é e sempre foi claro. O que se quer saber não é o que a Igreja deixou de fazer, e sim o que ela fez. Porque, na verdade, fez e fez muito – e não para o bem.

Talvez não seja por acaso que, em seus primeiros pronunciamentos e celebrações religiosas, o Papa fale tanto na necessidade de perdoar. Afinal, não deixa de ser uma maneira de falar da necessidade de ser perdoado.